Um ano atrás eu estava fazendo as malas para uma viagem mais ou menos longa quando meu telefone tocou. Era o Glenn. Fazia algum tempo que não conversávamos – ele não trabalha fisicamente no site e não temos a convivência comum das redações. “Você está sentado?”, ele me perguntou.
Sentei, e, em poucos minutos, Glenn me contou o motivo da ligação: ele havia recebido um material explosivo de interesse público evidente. Foi a primeira vez que eu soube do conjunto de conversas no Telegram que mais tarde nós batizaríamos de Vaza Jato. Desliguei e imediatamente acionei nossos editores Alexandre de Santi e Rafael Moro Martins para que começassem a analisar o material. Nossa primeira preocupação era checar a autenticidade do arquivo. Não demorou muito para entendermos que as mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato e pelo ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro eram autênticas – e uma bomba na República.
Semanas depois, mais exatamente no dia 9 de junho, publicamos as três primeiras reportagens, traduzidas assim no editorial que assinamos naquele mesmo dia:
A Vaza Jato faz um ano hoje. Foram quase 100 reportagens publicadas – um dos casos jornalísticos mais extensos da história, e isso não é exagero. Parte dos nossos leitores nos pergunta com alguma frequência quais foram os efeitos da série de reportagens. É uma pergunta legítima. Afinal de contas, jornalismo só serve para alguma coisa se tem impacto real na sociedade. Mas, fora a visível e naturalmente midiática soltura do ex-presidente Lula, quais foram os impactos da Vaza Jato?
A mudança sobre a prisão em segunda instância, que acabou por soltar Lula, não foi o único movimento do STF pós-Vaza Jato. Teve também o entendimento de que réus delatados precisam falar por último nos processos. Antes, o réu delatado fazia suas alegações finais ao mesmo tempo que o delator – o princípio da ampla defesa determina que o acusado sempre fale sempre por último no processo. Foi uma aberração que perdurou por muito tempo graças à guerra santa de Moro e seus comandados, que pressionavam o Supremo a condenar pessoas na base do custe o que custar. Graças à Vaza Jato, agora o acusado deve ser o último a fazer sua defesa, depois de todos os delatores. Parece elementar, não? Pois é, mas precisou que o jornalismo mostrasse o caminho.
Quando chegou ao governo, Sergio Moro era o homem mais popular de Brasília. Seu “projeto anticrime”, ninguém duvidava, seria aprovado pelo Congresso com um pé nas costas. E o que tinha naquele projeto? Um mecanismo chamado “excludente de ilicitude”, que basicamente autorizava que as forças de ordem cometessem crimes e que não fossem punidas caso estivessem sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Uma licença para matar em forma de lei. Com as revelações do Intercept e de nossos parceiros, a imagem de Moro e da Lava Jato sofreu abalos inéditos, e deputados puderam alterar o projeto com apoio público. O excludente de ilicitude caiu.
Outra briga comprada pelo ex-ministro de Bolsonaro e pelos procuradores foi o combate à Lei de Abuso de Autoridade. Uma lei que diz, basicamente, que quem abusa de sua autoridade precisa ser punido. Quem era contra ela? Quem provavelmente acha que autoridades podem fazer o que quiserem, ao arrepio da lei. Moro & cia fizeram campanha pública contra o mecanismo e perderam: ela foi aprovada e começou a valer este ano.
Aconteceu o mesmo na disputa sobre o juiz de garantias, uma figura que busca dar mais imparcialidade ao sistema. Ele evitaria, por exemplo, que Moro, depois de ter feito parceria com a acusação, julgasse os casos que ele próprio ajudara a construir. O ex-juiz foi contra, claro. E perdeu mais uma. O juiz de garantias foi criado em dezembro do ano passado, mas sua aplicação está suspensa por uma liminar do juiz do STF Luiz Fux (nele they trust, vocês sabem).
Quando participei de uma reunião com 40 advogados que ofereceram solidariedade ao nosso trabalho, ouvi de muitos deles que a Lava Jato estava destruindo o direito de defesa no Brasil e que nosso jornalismo aparecia como uma luz brilhante no fim de um túnel que antes parecia não ter fim. Os impactos da Vaza Jato, alguns me disseram, seriam mais profundos do que nós mesmos havíamos imaginado. Naquele momento, nenhuma das mudanças que acabei de elencar acima tinha acontecido. Quando as pessoas me paravam em locais públicos para comentar sobre o Intercept, muita gente perguntava quando Moro iria cair, quando Deltan seria afastado, quando Lula seria solto. Eu não tinha essas respostas. O público se acostumou a encarar esse tipo de coisa como o único impacto possível do jornalismo. Hoje, percebemos que a influência do nosso trabalho foi muito além de derrubar um ministro – que, desgastado, caiu de todo modo.
No editorial que publicamos junto às três primeiras reportagens da série, escrevemos no parágrafo final:
“Tendo em vista o imenso poder dos envolvidos e o grau de sigilo com que eles operam – até agora –, a transparência é crucial para que o Brasil tenha um entendimento claro do que eles realmente fizeram. A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”.
Relendo hoje aquele texto, recitei em voz alta a última frase: “A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”. Cada vez mais.
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