Carta de Paris: Tito de Alencar: Biografia do dominicano sai em Paris, quando ele faria 75 anos
Neste 14 de setembro de 2020, o dominicano Tito de Alencar Lima festejaria 75 anos.
Sua vida foi breve.
Morreu pendurado numa árvore, um álamo, no mês de agosto de 1974, na França, perto de Villefranche-sur-Saône, onde encontrara um trabalho de verão, não muito longe do Convento Sainte-Marie de la Tourette.
Tinha apenas 28 anos.
A história de frei Tito é emblemática. Ele foi um dos mártires da ditadura brasileira de 1964 que – por nunca ter julgado os torturadores e responsáveis por execuções sumárias e desaparecimentos de opositores políticos – nunca terminou.
No prefácio que fez para o livro « Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar », que escrevi com Clarisse Meireles (Civilização Brasileira, 2014), o filósofo Vladimir Safatle ressalta a importância de contar às novas gerações a história do engajamento da esquerda católica na luta contra as ditaduras latino-americanas.
A edição francesa do livro sai em outubro em Paris, pela editora Karthala, na coleção “Signes des Temps” com o título : Tito de Alencar. Un dominicain brésilien martyr de la dictature.
A loucura está no torturador
Safatle escreve que a tortura « havia conseguido quebrar Tito psicologicamente, transformando sua vida posterior em um inferno de delírios e alucinações ».
Mas, como salienta o psiquiatra e psicanalista Jean-Claude Rolland, que tratou de Tito, recebendo-o no hospital Édouard Herriot, em Lyon : « A loucura está no torturador. É preciso ver a tortura como uma loucura. Alguns militares que torturaram na guerra da Argélia ficaram loucos. Só se pode fazer isso exercendo uma distorção mental muito grande. O capitão Albernaz, um dos torturadores de Tito, lhe disse : ‘Quando venho para a Operação Bandeirantes, deixo meu coração em casa’. Isso mostra que são realmente seres divididos, como se houvesse uma cisão ».
A famosa Operação Bandeirantes, criada em 1969, foi rebatizada como DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna) no ano seguinte. Essa estrutura do terrorismo de Estado foi dirigida em São Paulo pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, de outubro de 1969 a dezembro de 1973. Segundo o livro « Tortura nunca mais », publicado pela Arquidiocese de São Paulo em 1985, mais de quarenta prisioneiros políticos foram mortos e quinhentos foram torturados no local, também conhecido como « Casa dos Horrores ».
Tito foi um deles.
E foi destruído psicologicamente nas salas de tortura do DOI-CODI, que um de seus torturadores apresentou-lhe como « a sucursal do inferno ». Mas sua primeira fase de tortura já tinha sido feita três meses antes, pelo sinistro delegado Sérgio Fleury.
Não devemos esquecer que a Oban era mantida por contribuições financeiras e materiais de empresários e banqueiros de São Paulo. Caminhões da « Folha de São Paulo » participavam ativamente da repressão da Operação Bandeirantes, numa cumplicidade que marcou a história da ditadura.
Recrutas treinados para torturar
Ao voltar ao Presídio Tiradentes, depois de tentar o suicídio cortando a veia do braço e ser salvo in extremis no hospital militar, Tito contou a seus confrades que nas suas sessões de tortura viu recrutas. Eram jovens imberbes, convocados ao serviço militar por terem completado 18 anos, alheios à conjuntura política, levados à sala de sevícias e forçados a presenciar as torturas e rodar a manivela de choques. Os rapazes tremiam diante do horror, reagiam como autômatos às ordens recebidas.
O Exército os treinava para odiar e punir os dissidentes políticos.
No Tiradentes, Tito e os outros dominicanos viam sempre chegar novos presos. Um deles foi o padre Hélio Soares do Amaral, que começaria pena de 14 meses. Fora condenado pelo sermão de 7 de setembro de 1969 no qual disse que o grito de Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, tinha sido « uma farsa pois o Brasil tinha deixado a dominação portuguesa para se submeter à dominação norte-americana ».
Exilado em Paris, depois de ter sido um dos 70 prisioneiros políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bücher – capturado pela Vanguarda Popular Revolucionária, comandada por Carlos Lamarca – Tito deu uma longa entrevista ao jornalista italiano Claudio Zanchettin. Nela, definiu a ditadura brasileira como um Estado policial, fascista, sobretudo após o AI-5 :
« A única coisa que lhes interessa é a ordem, típico de todas as mentalidades fascistoides. Para eles, o progresso passa pela ordem, garantida pela repressão; e a ordem é o poder estabelecido… Existe um clima de medo no povo. O Brasil é um país angustiado ».
A tortura, as ameaças de fuzilamento e a insegurança permanente – que experimentou em suas passagens pela « sucursal do inferno » - nunca deixaram Tito.
« O torturado jamais esquece. A tortura física acaba um dia, mas a psicológica, não. Essa não acaba”, contou outro dominicano, Fernando Brito, que passou pelas mãos do sádico delegado Sérgio Fleury, de quem ele faz um magnífico perfil no livro “Diário de Fernando”, editado por Frei Betto. Um trecho desse retrato diz : “Se o prisioneiro resiste com o seu silêncio, Fleury passa dos métodos “científicos” – pau de arara, choque elétrico, afogamento – aos brutais : arranca unhas com alicate, fura o tímpano, cega um olho, castra. Nesses casos, quase sempre mata. O único silêncio que não lhe irrita os ouvidos nem lhe instiga a prepotência é o da morte ».
Já exilado em Paris, banido de seu país por decreto, Tito soube que seu relato das torturas publicado na revista americana Look tinha recebido o prêmio de reportagem do ano anterior, 1970, atribuído pelos correspondentes estrangeiros de Nova York.
Não sentiu vontade de comemorar.
Por que festejar um prêmio simbólico por ter sido torturado e ter conseguido narrar com sobriedade e estilo seu calvário?
Na lápide em memória de Tito, no cemitério ao lado do convento de La Tourette, onde ele descansou até 1983, quando foi trasladado para Fortaleza, seus confrades lembram que ele foi “encarcerado, torturado, banido do país, atormentado... até a morte por ter proclamado o Evangelho lutando pela libertação de seus irmãos”.
Leneide Duarte-Plon é co-autora, com Clarisse Meireles, de « Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar » (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, a autora lançou « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado ». Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
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