Esperar não é fazer Roberto Amaral O que significa dizer “estamos do lado certo da história e nosso projeto vai voltar”? A frase remete a uma leitura simplória do materialismo histórico, confundindo determinismo (uma pretensão científica) com fatalismo (uma regressão religiosa). Deve ser tomada com cuidado pois pode sugerir à militância que, qualquer que seja o processo social, “nosso projeto” (qual é mesmo ele?) “vai voltar” um dia, inelutavelmente. E se o destino de nosso projeto é “voltar”, após cada derrota, ele voltará sempre, lutemos ou não, já que essa “volta” não depende de nós, das forças sociais, pois estará sempre no regaço da mãe história. Ela será nosso trem e nos levará à Estação Finlândia. A sentença segundo a qual “nosso projeto vai voltar” subentende que já tivemos projeto, que ele foi implantado e, porque vai voltar, necessariamente foi derrotado. Há, pois, muitas dúvidas por sanar. Tratemos, por ora, tão-só, da imperatividade de sua volta. Ela sugere uma sobrevivência que independe da ação das massas: o projeto (indefinido, mas supostamente o da construção de uma nova sociedade) volta, porque esta é a vontade da história, e nós estamos do seu lado. Se assim é, podemos até (sem remorsos) deixar de lutar agora (pela democracia ou pela revolução), quando as condições objetivas são desfavoráveis. O tempo trabalhará por nós, e a nós nada custa esperar, embora custe muita miséria ao povo do qual pretendemos ser a vanguarda. A história, porém, não leva a lugar algum quem estiver parado. Ela não é produto do espírito, nem cai do céu; fruto da luta de classes, está longe de ser uma abstração. Para intervir em seu curso ela nos cobra organização e consciência revolucionária. Tudo de que carecemos. A luta de classes, igualmente, não é obra do acaso, depende de mobilização e da batalha ideológica, a que renunciaram os socialistas pragmáticos. Definitivamente, a história não está, necessariamente, do nosso lado, nem de ninguém; nós é que vamos ao seu encontro quando fazemos o enfrentamento aos nossos adversários, e lutamos pela tomada do poder. E de que lado estamos quando simplesmente esperamos que a história nos leve “lá”? Do lado dos que não querem que cheguemos lá. Ou, seja, dos que não querem que “nosso projeto” volte. A leitura da história como dado metafísico -- e não como produto concreto do processo social, um permanente vir-a-ser trabalhado pelas contradições de classe --, pode pacientar algumas consciências e aplacar angústias, mas consiste em método que nega nossas aspirações dialéticas. Quando alguém diz “estamos do lado certo da história e nosso projeto vai voltar”, está também dizendo que não importa nossa derrota, podemos perder, nem é mau perder, pois, ao final, a história nos salvará! Ou seja, sempre ganhamos, mesmo quando perdemos. Os louros da vitória são trocados pela compaixão cristã que absolve nossos erros, e se os erros são assim perdoados, não precisamos rever nosso desempenho. Com tal metodologia, seguramente, se retornarmos à liça, repetiremos os mesmos erros e colheremos idênticos dissabores. Contudo, nada nos assegura que “nosso projeto voltará” até porque nossas vacilações e nossas divisões de hoje (à margem de discussões doutrinárias) dizem bem que não temos clareza quanto ao que seja esse “projeto” (é desejável, porém, que não seja a repetição de projetos passados). Sequer para as eleições municipais as esquerdas se mostram capazes de convergir em um projeto político comum. E mais não se poderia esperar de um grupamento que até aqui não conseguiu, na sociedade, junto ao povo, concertar um programa de oposição (de bases ideológicas) ao governo que nos malsina. A chamada “anomia das massas”, que tanto tem preocupado, não é um problema em si, mas o efeito da incapacidade de comando e liderança daquilo que no passado foi conhecido como “vanguarda”. Não há qualquer novidade na afirmação de que o bolsonarismo é fruto do processo social e reflete nossa formação histórica, fundada no escravismo, no etnocídio e na expropriação do trabalho pela casa-grande. É mesmo certo que ele atende ao atual desenvolvimento dessas forças e responde aos interesses da classe dominante, especialmente do grande capital internacionalizado, a macabra associação de banqueiros e agiotas com industriais suicidas, a que serve uma coorte de generais desapegados da soberania nacional e dos interesses de nosso povo, presos ao canto de sereia do neoliberalismo canhestro que lhes fornece o ex-"Posto Ipiranga", e à velha arenga do anticomunismo de indústria, recuperado para justificar uma política externa de lesa pátria. Reconhecer o fato objetivo, porém, não é tudo; desse reconhecimento é preciso tirar todas as consequências e a primeira delas é a decisão de intervir na realidade conhecida para modificá-la, o que só será possível mediante a intervenção das forças socialmente revolucionárias, a saber, aquelas que se opõem à conservação do statu quo que impõe a dominação das grandes maiorias de nosso povo, empobrecidas, por uma elite econômica cada vez menor e mais rica. O bolsonarismo é apenas a versão degenerada do regime que a casa-grande controla desde a colônia. Regime que se conserva governo após governo, do império à república, de golpe após golpe, de eleição após eleição, intocado em sua estrutura, hegemônico na economia, senhor de baraço e cutelo dos aparelhos ideológicos, a começar pelos meios de comunicação. Em face de seu poder monopolístico, os governos de centro-esquerda se limitaram a administrar modos de convivência. O pronunciamento do ex-presidente Lula, na tarde do último dia 7, é luz no final do túnel quando aponta para a reunião das forças populares, à sua frente os trabalhadores, em torno de um novo “pacto social” que terá como eixo a luta contra as desigualdades sociais, o que importa a denúncia do capitalismo, nosso inimigo essencial, e a defesa da soberania nacional. É de supor que finalmente foram despachadas para as calendas gregas as ilusões de conciliação de classe, que, desde o varguismo, vêm atrasando a revolução brasileira, entendida em seu sentido mais restrito, como tentativa de salto no processo histórico. O ex-presidente aponta como saída a alternativa do voto, certamente em 2022, quando poderemos nos livrar de modo natural dos atuais ocupantes do planalto, no que simplesmente reitera seus conhecidos compromissos democráticos. Mas, e até lá? O que fazer, hoje e no amanhã imediato? Qual a mensagem objetiva de luta para os trabalhadores e o movimento social, para os brasileiros sem emprego, para a quebradeira das empresas, para a exaustão do SUS? Esperar? Em 2022 provavelmente teremos eleições, mas poderemos não ter mais a Petrobrás, a Eletrobrás, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o BNDES que o ex-presidente muito corretamente quer salvar. E poderemos ter nossos sindicatos ainda mais atingidos. A política cobra um aqui e agora: o que fazer nessa emergência. Todos certamente concordam com a prioridade da organização popular. Mas permanece no ar: quais as tarefas a que se dedicarão os partidos, suas lideranças e as organizações da classe trabalhadora? É o que ainda não ouvimos do ex-presidente, como não ficou clara sua proposta de política de alianças para as forças populares. E Lula precisa dizer claramente se é candidato. Se não tínhamos “projeto”, temos agora, pelo menos uma plataforma de luta, essa anunciada pelo ex-presidente. em torno da qual podemos agregar a maioria da população brasileira, desde que seu horizonte não seja a partir do processo eleitoral em um amanhã ainda relativamente distante. Há uma longa caminhada por ser feita, e ela aguarda seu líder. Devemos, sim, ter como horizonte o voto, nossa grande conquista contra a ditadura. Mas isto não é tudo, pois, para chegarmos às eleições em condições de derrotar o projeto protofascista, precisamos lutar, a partir de hoje. Esta questão, a ação imediata, já tardia, ficou faltando no discurso do ex-presidente. Para que possamos pensar em dias melhores, há que se esperar que Lula exerça na plenitude a liderança que conquistou. O tempo urge. ______________ Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia |
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