Política
Proposta de fim da estabilidade de servidores afeta políticas e reforça clientelismo
Oposição no Congresso vê política ideológica de destruição do Estado e fará disputa na sociedade contra mito de que o funcionalismo ''ganha muito e trabalha pouco''
BRASÍLIA – Os primeiros dias de tramitação oficial da proposta de Reforma Administrativa, enviada pelo governo federal ao Congresso na última quinta-feira (3), já mostram que a disputa a ser travada no Parlamento contra mais este ataque de Bolsonaro aos servidores públicos não será fácil. Enquanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), afirmou que vai dar celeridade às discussões sobre o texto, os partidos de direita e a base do governo se apressaram em manifestar apoio às medidas. Na chamada mídia tradicional, gráficos e analistas se multiplicam para “comprovar” como o Estado brasileiro é “inchado”, como o funcionalismo é “repleto de privilégios” e para opinar que “já passou da hora de reduzir os gastos públicos” – como afirmam os comentaristas da GloboNews.
Segundo o ministro da Economia, a proposta redefine toda a trajetória do serviço público. “Serviço público de qualidade, com meritocracia, com concursos exigentes, promoção por mérito", disse Paulo Guedes, durante o anúncio das medidas. Por integrarem uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), elas precisam do apoio de dois terços do Congresso. Se forem aprovadas, serão seguidas por um conjunto de projetos de lei, que terão o papel de regulamentar as mudanças constitucionais.
O caminho é longo e o segundo semestre será curto no Parlamento, com o funcionamento das comissões ainda comprometido pelo isolamento social e as eleições municipais se aproximando. A Oposição se prepara, assim, para mais uma maratona. Mas ela vai muito além de alterações nas regras de funcionamento do serviço público. Trata-se de mais uma disputa contra o desmonte do Estado.
Na opinião de Fausto Augusto Junior, diretor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o que o governo propõe é uma reforma de Estado, que deve avançar por dentro nas privatizações e venda das empresas estatais, para o governo financiar parte do seu deficit. “É uma visão do governo de organizar a discussão do serviço público a partir da discussão da redução do papel do Estado”, declarou. “E a retomada de uma visão de governo de que o direito social deve ficar a cargo da iniciativa privada, cabendo ao setor público só carreiras típicas do Estado”, afirmou o diretor do DIEESE em um podcast do órgão nesta quinta.
“Você atinge os servidores para desmontar o Estado, se livrar dos serviços públicos, avançar na lógica de mercantilização daquilo que é direito social e mudar a estrutura do Estado”, disse a líder do PSOL na Câmara, deputada Sâmia Bomfim. “O perigo é transformar a Reforma Administrativa, que é algo que deve ser debatido com a sociedade, em uma política ideológica de destruição do Estado. Em uma crise como esta, onde a situação da economia tende a piorar, privatizar e reduzir o tamanho do Estado não é uma boa alternativa”, acrescentou o deputado Enio Verri, líder do Partido dos Trabalhadores.
Enio Verri: “O perigo é transformar a Reforma Administrativa em uma política ideológica de destruição do Estado". (Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
Fim da estabilidade e favorecimento político
Apesar que não valer para os servidores atuais, a proposta vai, se aprovada, acabar com o Regime Jurídico Único, criando diferenças dentro do funcionalismo e instituindo regras específicas para cada “tipo” de servidor. Somente aqueles com cargos típicos de Estado – que precisariam ser definidos em lei específica – teriam mantido o direito à estabilidade. Os outros quatro grupos seriam de funcionários com cargo com vínculo por prazo indeterminado, vínculo por prazo determinado, vínculo de experiência e cargo de liderança e assessoramento (atuais cargos de confiança). Ou seja, outras formas de ingresso e contratação no serviço público seriam possíveis, incluindo a celetista, que também sofre flexibilizações e precarizações por parte do governo federal.
“O ataque à estabilidade, num contexto de governo Bolsonaro e de “guardiões do Crivella”, é mais uma forma de substituir funcionários de carreira por funcionários indicados, fortalecendo a lógica do compadrio, da rachadinha, do apadrinhamento, das relações fisiológicas com o Congresso para avançar na base de apoio do Centrão, do que resolver o que para eles é “o grande mal das contas públicas”, que é o funcionalismo”, critica a deputada Sâmia Bomfim.
Para o líder do PT na Câmara, a estabilidade é uma necessidade. “Acabar com a estabilidade é acabar com a estrutura do Estado, é enfraquecê-lo. E o Estado passa a ser subordinado ao governo. Tem que ser o contrário. O governo é temporário; o Estado fica. E ao acabar com a estabilidade você inverte essa prioridade. Isso custará muito para as políticas públicas do país”, avalia Enio Verri. O parlamentar alerta que a situação de continuidade de programas e políticas como as voltadas para a proteção ambiental, por exemplo, seria muito mais difícil no atual momento se os servidores do setor não tivessem estabilidade.
“Quando você mistura a política partidária com a execução dos direitos, vemos um clientelismo que se implementa e um fortalecimento dos poderes dos mandatários que, historicamente no Brasil, foram os senhores feudais, que permanecem. A racionalização do Estado, a organização das carreiras, o concurso público, tudo isso dá espaço para construir um Estado de direitos”, explica Fausto Augusto Junior, do DIEESE.
Sâmia Bomfim: "O ataque à estabilidade é mais uma forma de substituir funcionários de carreira por indicados, fortalecendo a lógica do compadrio e das relações fisiológicas" (Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
A Reforma Administrativa de Bolsonaro também visa facilitar demissões no serviço público, e aí o impacto passa a ser para todos. O Ministério da Economia estaria elaborando um PL complementar para regular o desligamento por “baixo desempenho”. Na opinião de especialistas ouvidos pela CARTA MAIOR, é fundamental discutir qualidade no serviço público e pensar mecanismos de avaliação dos servidores. Mas, menos do que fazer uma discussão sobre gestão eficiente do Estado, o objetivo atual do Planalto é demitir profissionais e enxugar sobretudo o que seria base do funcionalismo – professores, profissionais de saúde, da área de assistência social, etc –, já que juízes, promotores, procuradores e militares, que acumulam os maiores salários, não são abarcados pela proposta.
De acordo com dados do IPEA, os maiores salários no funcionalismo estão nos poderes Judiciário e Legislativo em nível federal. E é nos Executivos municipais, onde está a maior parte dos servidores, por conta da descentralização dos serviços, que se concentram os menores salários. Ali, 50% dos servidores tem remuneração de até R$ 2 mil. Dois em cada seis servidores do Brasil ganham até dois salários mínimos. Desde 1986, a presença do setor público no conjunto da população brasileira caiu de 0,69% para 0,57% dos postos de trabalho, e o gasto com servidores civis ativos em relação ao PIB teve um crescimento na base de apenas 0,02% no período.
O discurso do governo e da imprensa, entretanto, desconsidera as desigualdades dentro do funcionalismo e segue trabalhando para consolidar, junto à população, a ideia de que todo servidor público ganha muito e trabalha pouco. Entre os destaques da proposta enviada esta semana ao Congresso estão, por exemplo, o fim da possibilidade de aumento de salário exclusivamente por tempo de serviço, a proibição de mais de 30 dias de férias por ano e a vedação de aposentadoria compulsória como punição – o que atingiria novos funcionários do Judiciário. Pontualmente, são medidas consideradas interessantes para trazer maior racionalidade ao setor. Mas que escondem, por trás, os reais e danosos objetivos do governo Bolsonaro.
“Se existem excessos no funcionalismo, precisamos mostrar que isso tem a ver com aqueles que ganham acima do teto, que ganham recursos extra para além dos rendimentos em folha, geralmente ligados ao Judiciário. E mostrar a real sobre a base do funcionalismo, que é quem eles realmente estão atacando, que ganham um, dois ou três salários mínimos”, pondera Sâmia Bomfim.
Mais poder para o presidente e ajuste fiscal
Com a justificativa de “agilidade na adequação de estruturas e cargos para melhoria na prestação de serviços públicos à sociedade”, a proposta do Planalto enviada ao Congresso aumenta significativamente as competências privativas do presidente da República. Atualmente, para extinguir cargos e órgãos públicos e mudar a estrutura de autarquias e fundações públicas, o governo precisa de aprovação do Parlamento. A proposta de Reforma Administrativa autoriza que isso seja feito por simples decreto presidencial.
Não será fácil que o Congresso aceite tamanha centralização de poder das mãos de Bolsonaro e abra mão do seu papel de decisão sobre os rumos da administração pública. Para partidos fisiologistas, a mudança reduz inclusive seu poder de barganha junto ao Executivo federal. Por outro lado, alerta o DIEESE, o Brasil terá em breve milhares de prefeitos que tomarão posse num contexto de extrema dificuldade orçamentária, em função da pandemia e da crise econômica, e que pressionarão os parlamentares, a partir de seus estados, para que abracem a ideia da Reforma Administrativa, para poder enxugar sua máquina e fechar as contas. Na lógica do corte de gastos, o Executivo já exinguiu mais de 100 mil cargos nos últimos dois anos.
“Não será nada fácil porque, num contexto de crise, o discurso de que ‘todo mundo tem que dar sua cota de sacrifício’, mesmo que sejam os servidores que ganham menos, está muito forte. Então temos que fugir dessa armadilha fiscal, da agenda da manutenção do teto de gastos. É preciso revisar essa lógica porque ela não é ruim apenas para o funcionalismo, mas porque, com ela, o Brasil nunca vai sair do atoleiro. O país precisa de investimento público, seja em infraestrutura, seja em geração de emprego, e o Estado tem seu papel a cumprir. A lógica do teto fiscalista é o pano de fundo de todas essas propostas, da Reforma Administrativa às privatizações. Precisamos discutir isso com seriedade”, conclui a líder do PSOL.
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