As viagens de ontem e o genocídio de hoje
À espera de lançamento, filmes sobre a expedição de Roosevelt e as viagens de Noel Nutels trazem o testemunho do passado para sublinhar a exploração da terra e o genocídio dos indígenas no presente.
No mês passado, a estátua de Theodore Roosevelt foi removida da entrada do Museu de História Natural de Nova York. Mostrando o ex-presidente americano em pose imponente sobre um cavalo, tendo ao lado um negro e um indígena, foi considerada símbolo de colonialismo e racismo na vaga de protestos que se seguiu à morte de George Floyd.
Mais recentemente, no Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes endossou a afirmação de que os povos indígenas estão sendo vítimas de um genocídio.
Os dois fatos ecoam em dois documentários brasileiros ainda inéditos. Um deles é Rio da Dúvida, de Joel Pizzini, que evoca a expedição de Roosevelt ao Centro-Oeste e à Amazônia brasileira em 1913-1914, ciceroneada pelo Marechal Cândido Rondon. Eles seguiam o curso inexplorado do então chamado Rio da Dúvida, depois batizado por Rondon como Rio Roosevelt.
O outro filme é O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels, de Tiago Carvalho, mergulho intenso nas imagens que o médico sanitarista registrou nas aldeias entre as décadas de 1940 e 1970. No único áudio que sobreviveu de Nutels, ele discorre na CPI do Índio, em 1968, sobre a matança em massa (genocídio, pode-se dizer) dos nossos povos originários pelos bandeirantes e exploradores modernos.
O rio é memória
Rio da Dúvida ainda está à espera de uma chance de distribuição ou lançamento online. Na cena de abertura, uma canoa vazia é levada pela correnteza de um rio. A imagem, recorrente no filme, é uma metáfora da viagem de rumo desconhecido empreendida pela expedição Roosevelt.
Joel Pizzini, cineasta devotado ao Mato Grosso do Sul, onde cresceu, já havia dirigido um documentário sobre o mato-grossense Rondon. Em Rio da Dúvida, o criador do Serviço de Proteção aos Índios divide o protagonismo com Roosevelt, caracterizado mais como um caçador de animais raros do que como um explorador geográfico. De fato, o ex-presidente dos EUA e sua trupe mataram centenas de jacarés e levaram cargas de animais para os museus estadunidenses. Em troca, a expedição possibilitou o conhecimento de várias espécies, além da determinação da nascente do Rio da Dúvida no estado de Rondônia.
Não é fácil fazer um balanço das perdas e ganhos da histórica expedição (científica ou meramente exploratória?). Nem tampouco do papel de Rondon na difícil harmonização entre desenvolvimento e proteção que pautou seu vínculo com os índios. A intenção de criar uma tropa indígena para lutar na I Guerra e a imposição de roupas às tribos são fatores mencionados, mas Pizzini não entra fundo nessas searas. Coloca, sim, em discussão outra conciliação complexa do marechal: o cientificismo positivista e a fé cristã.
A intenção de Pizzini foi sobretudo evocar o caráter épico da aventura e ligá-la ao presente. Ao mesmo tempo, trouxe à luz um acervo extraordinário de filmagens do início do século XX, em sua maior parte feitas pelo Major Tomás Reis na abertura das linhas telegráficas ou pertencentes ao acervo do pioneiro cineasta Mario Civelli, que foi amigo de Rondon.
Um dos mais autenticamente inventivos realizadores brasileiros, Pizzini trabalha na intercessão entre vários tipos de material e várias linhas narrativas. Rio da Dúvida é um filme de camadas, que se alternam num fluxo sempre coerente e atraente.
Os arquivos são a estrela absoluta. Os filmes dos anos 1910 e 1920 foram reenquadrados para a tela panorâmica a fim de restituir a grandiosidade da selva e dialogar sem quebra com imagens recentes. A voz de Rondon, desconhecida até pouco tempo atrás, pontua o documentário com uma gravação encontrada pelo diretor no Museu do Índio. A expedição foi dramatizada com atores (Rodolfo Vaz como Rondon, Xando Graça como Roosevelt e André Guerreiro Lopes como Tomás Reis) em vinhetas rodadas nos mesmos locais por onde passou.
Arquivos, memórias e encenação se entrecruzam, eliminando o vácuo temporal. Os atores, em seus papéis de época, interagem com indígenas contemporâneos, que circulam na fronteira entre a fabulação e a crença mítica na permanência dos espíritos. Assim o filme se coloca num lugar mágico, quase sobrenatural, sem limites precisos.
Como no seu magnífico 500 Almas, Pizzini aciona uma série de vozes narradoras, além da do próprio Rondon e de anotações suas ditas por Élcio Romar. Três netas do marechal contam detalhes de conhecimento familiar. Indígenas idosos do tempo do SPI e líderes das nações Nambikwara, Pareci, Sabanê e Cinta-Larga reafirmam a importância de Rondon (ou “Yhul Turundê” para os Cinta-Largas) na história de suas tribos e relatam mitos fundadores de suas etnias – histórias que Rondon sempre lutou por preservar.
Há também a voz de pesquisadores do Museu do Índio e do Museu Nacional (filmado antes do incêndio), uma vez que, para Pizzini, o âmbito do estudo fica sempre paralelo à instância das manifestações originais. Juntem-se a isso as falas magnas de Darcy Ribeiro – uma espécie de herdeiro de Rondon -, Claude Lévi-Strauss e Orlando Villas-Boas.
Pizzini foge das cabeças falantes como o diabo da cruz. Daí que esse coro de vozes se apresenta como um tecido sonoro quase sempre subjacente às imagens. A voz humana e a música de Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Donizetti por Enrico Caruso, mais a trilha original de Lívio Tragtenberg dão ao filme uma sonoridade de ópera na selva. Fundamental para esse efeito majestoso é também a fotografia deslumbrante de Luís Abramo, com requintes de luz à maneira de Mario Carneiro,
A mensagem de Rondon e os ecos da Expedição Roosevelt ressoam na atualidade das tribos, como se vê na controvérsia do garimpo em terras dos Cintas-Largas ou na opção dos Parecis por explorar o turismo cultural. RIO DA DÚVIDA religa os diversos tempos através da arte do cinema. Apesar da sua canoa estar ao léu nas águas, Pizzini nos restaura um senso de propósito e continuidade muito útil para os desafios que hoje se colocam para os nossos povos originários.
Fome e morte nas aldeias
O título de O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível reúne duas referências, como explica o diretor Tiago Carvalho: “‘Índio cor de rosa’ é o apelido carinhoso que amigos davam a Noel Nutels e foi o titulo do romance biográfico que o Orígenes Lessa escreveu. A “fera invisível” vem do título de um folheto de cordel escrito por João José da Silva a pedido de Noel e que era cantado nas ações de combate à tuberculose realizadas pela equipe do SUSA (Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas) no Nordeste: ‘A fera invisível ou o caso de uma trapezista que sofria do pulmão’. É como vimos o Noel: lutador inesperado, misturado com os índios, brigando contra a fera da cobiça e do desrespeito à vida – a mesma que anda hoje à solta arreganhando os dentes pra nós”.
O filme ainda não tem data de estreia. Com produção executiva de Maria Flor Brasil e patrocínio da Fiocruz, faz uma opção radical pelos arquivos. A imensa maioria das imagens provêm de 21 filmes de Nutels. O restante vem de clássicos como O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, e Ao Redor do Brasil, de Tomás Reis.
Nutels produziu cenas de beleza e dramaticidade inexcedíveis com sua câmera 16mm. Muitas delas são razoavelmente conhecidas por quem consome documentários (especialmente o média-metragem Noel Nutels, realizado por Marco Altberg em 1975), mas vê-las reunidas nesse fluxo é que confere sua justa dimensão. Lá estão os índios caçando, pescando, fazendo trabalhos domésticos, divertindo-se em família, interagindo com o SPI – Serviço de Proteção aos Índios (onde Nutels foi médico e diretor), sendo educados por freiras. Trechos particularmente impactantes são o registro do que parece ser um quase naufrágio e a filmagem de índios Pacaás Novos esquálidos numa aldeia que se assemelhava a um campo do Holocausto (foto abaixo).
Nutels apresentou essas imagens de indígenas em pele e osso na CPI de 1968. Em vez da doença misteriosa de que se falava, os Pacaás Novos estavam morrendo de fome. Em sua fala, gravada por Hermano Penna e que pontua todo o filme, o “índio cor de rosa” denuncia sem papas na língua o que só pode ser chamado de genocídio. Recorda sua decepção com o legado dos bandeirantes, quando compreendeu que na verdade eles escravizavam e matavam os índios. O extermínio continuava na década de 1960 pelas mãos de fazendeiros e industriais com a conivência do estado. “Mata-se não só para explorar as riquezas da terra. Mata-se também com boas intenções”, acusava.
A voz de Nutels às vezes ecoava o mesmo tom assertivo e indignado de Darcy Ribeiro. “O índio é que vem tentando pacificar e civilizar o branco há 500 anos”, disse na CPI. Ali também elogiou Rondon e chamou de “suborno místico” a investida dos catequistas sobre a cultura e a cosmogonia indígenas. Quanto à contaminação com doenças trazidas de fora, essa foi a grande peleja que Noel Nutels e sua equipe travaram durante décadas.
Tiago Carvalho abriu mão de qualquer elemento explicativo alheio ao material original. Os arquivos visuais são fortemente imantados por músicas de Carlos Gomes, Tom Jobim, Villa-Lobos, Bach, Guilherme Vaz e outros. Isso poderia tornar as imagens meramente contemplativas, não fossem as entradas da voz de Nutels para reafirmar o teor de inconformismo e a consciência de que muito daquela beleza foi dizimado, sim, por um genocídio.
Fonte: Blog de Carlos Alberto Mattos
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