quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A violência política mostra que nossa democracia ainda está em construção

 

A violência política mostra que nossa democracia ainda está em construção 
por Giulia Afiune
 

Logo depois do primeiro turno das eleições municipais de 2020, a Pública coordenou uma equipe de nove veículos de todo o Brasil para investigar a violência que permeou o período entre o início das campanhas eleitorais e o fim da votação. No auge da nossa apuração, minha mãe me perguntou por que eu estava tão atarefada sendo que a contagem dos votos já tinha acabado. Quando expliquei, ela me respondeu, surpresa: "Nossa, mas na TV falaram que foi uma eleição tranquila!"

Não foi. Se alguém tinha dúvidas, o mês de novembro de 2020 deixou claro que, no Brasil, a violência é tão banalizada que se torna parte de atos corriqueiros, como ir ao supermercado ou sair para votar. Nosso levantamento mostrou que, na primeira quinzena, a cada três horas, pelo menos um caso de violência relacionado à eleição foi registrado no país. Os 114 episódios não se limitaram a bate-bocas entre apoiadores de diferentes candidatos, e incluíram também agressões severas e até tentativas de assassinato. 

Esse número trágico e impactante mostra a dimensão do problema da violência política no país. E nós só chegamos a ele graças a um tremendo esforço de 34 jornalistas – entre repórteres, editores e infografistas – de nove veículos independentes de todo o Brasil: Agência Pública, Agência Saiba MaisAmazônia RealGênero e NúmeroMarco ZeroPonte JornalismoPluralPortal Catarinas e Projeto #Colabora

A primeira etapa foi o levantamento em si. Durante dias, nós vasculhamos as redes sociais, buscamos notícias em sites de veículos locais, e recebemos uma série de relatos pelos nossos canais de investigação participativa, chegando a quase 150 possíveis casos. Depois, nossos repórteres procuraram falar com as vítimas, com testemunhas, com a polícia, e com órgãos públicos para verificar, um por um, se aqueles casos de violência tinham mesmo ocorrido e se tinham a ver com a eleição. 

Compreendo que os canais de TV muitas vezes não têm nem tempo nem gente para fazer um trabalho como esse porque senti na pele os muitos desafios que ele impôs. Foi difícil, por exemplo, criar um sistema de organização e critérios claros de classificação e checagem para padronizar a apuração de jornalistas que trabalham em nove veículos diferentes. Mas nada se compara à falta de dados confiáveis de órgãos de segurança e à dificuldade em obter informações claras das polícias locais. "O Brasil é um país com baixíssimas taxas de elucidação de homicídios, cerca de 30% a cada ano, e no caso da violência contra políticos é ainda mais difícil se chegar a autores, mandantes e motivações", disse em um artigo na piauí o cientista político Pablo Nunes, que também foi fonte na nossa reportagem.

Ainda assim, conseguimos encontrar tendências assustadoras. Dos 114 casos de violência, 41 foram tentativas de assassinatos, e desses, 14 consistiam em candidatos alvejados por tiros que vieram de carros ou motos – situação semelhante ao assassinato da vereadora Marielle Franco, prestes a completar 1000 dias sem resposta. 

Talvez por isso tenha sido tão complicado para nossos repórteres encontrar vítimas e testemunhas em cidades pequenas que estivessem dispostas a falar sobre esses casos. Muitas vezes as pessoas se recusavam a dar entrevista sobre a violência que sofreram por medo de represálias. Em outras, o telefone nem chegava a tocar. 

Para a nossa sorte, pudemos contar com a ajuda de colegas jornalistas de veículos locais. Quando nossos repórteres ligaram nas redações, muitos se dispuseram a ajudar, compartilhando fontes e informações sobre os casos. E nós só ficamos sabendo de grande parte desses episódios graças à cobertura local. Certamente houve uma série de outros casos que sequer foram registrados em veículos jornalísticos por acontecerem em desertos de notícias, onde não há cobertura noticiosa para fiscalizar o poder e as violações de direitos – situação na qual se encontram 62% dos municípios brasileiros.

A colaboração jornalística, aliás, foi um dos pilares desse projeto. Ainda é raro achar jornalistas que gostem de trabalhar junto em vez de competir. E coordenar mais de 30 jornalistas de diferentes veículos para somar forças em prol de um mesmo objetivo não é nada trivial. Se em uma semana conseguimos publicar uma reportagem tão importante, imagina o que conseguiríamos fazer em mais tempo?

O público também foi um aliado poderoso. Muitos dos casos de violência só chegaram até nós por iniciativa de pessoas comuns que escreveram para o Whatsapp da Pública ou responderam ao questionário em nosso site. Onde não há cobertura jornalística, muitas vezes há cidadãos que querem denunciar os problemas e contribuir para uma sociedade melhor. 

Fazer um trabalho como esse é difícil e cansativo. Exige tempo, dedicação, paciência e rigor jornalístico. Mas vale a pena. Quando nos dedicamos a ouvir o que as pessoas têm a dizer e a unir forças com outros jornalistas que pensam como nós, a gente consegue encontrar as histórias que ninguém te conta. Nem mesmo a TV. 

Este ano assistimos a muitos ataques à nossa democracia saírem da boca de políticos e de grupos extremistas barulhentos. Mas há outras ameaças mais silenciosas, que ficam escondidas dos holofotes e só aparecem aqui e ali, quando alguém se dispõe a procurar. Quando vejo que, apenas nos primeiros 15 dias de novembro, ocorreram mais de uma centena de casos de violência relacionada à política, tenho certeza de que a democracia brasileira ainda está em construção. Enquanto o simples ato de votar ou de discordar da posição política de alguém resultar em morte, enquanto política for caso de polícia, nós não teremos uma democracia plena. Ainda bem que o jornalismo independente e colaborativo existe para nos mostrar isso.

Giulia Afiune é editora de audiências da Pública. 

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