domingo, 31 de janeiro de 2021

Nordestino, o povo que virou suco: ensaio sobre o preconceito regional como expressão do ódio de classe

 Nordestino, o povo que virou suco: ensaio sobre o preconceito regional como expressão do ódio de classe 

 

Wescley Pinheiro

Professor da UFMT

paulowescley@gmail.com

 

Parte 1  - Nordestino/a, o capital de São Paulo

 

No dia 21 de janeiro de 2021 uma revista semanal de grande circulação nacional, em sua versão (ainda mais ) voltada para a classe média paulista, realizou uma capa especial destacando o protagonismo dos nordestinos na megalópole paulistana. Como não poderia deixar de ser “São Paulo: a capital do Nordeste” suscitou críticas e defesas acaloradas como tudo que acontece nas redes sociais.

Capital é a pena máxima; é a cabeça; é o centro administrativo, político, financeiro e histórico de uma unidade federativa; é riqueza acumulada e investida. Capital é um termo com muitos significados e o principal deles é aquele que nomeia a forma de sociabilidade dos últimos séculos da humanidade, onde centramos nossa capacidade coletiva de produção na exploração da maioria das pessoas para a riqueza de uma ínfima parcela de indivíduos que detém os meios de produção. Assim, diante de tantas linhas no dicionário, é fundamental sempre desvendar que o que cria riqueza, portanto, o que cria capital, assim como o poder de uma capital, é o trabalho.

Entre caricaturas apresentadas na capa da Veja SP, entre o foco na minoria nordestina “empreendedora” e o desfoco na maioria intensamente explorada na capital paulistana, a intensidade do debate surge num tempo histórico onde se explicita as tensões sociais de um país marcado por cisões. Vivemos uma crise marcada pela ampliação da desigualdade, pelo crescimento da explicitação do preconceito e da discriminação, inclusive contra o povo nordestino, que não raramente é percebido como a parcela de sujeitos miseráveis, preguiçosos, analfabetos políticos que atrasam o desenvolvimento do país.

Nesse mês a capital do estado de São Paulo fez 467 anos, presenteando o país com seu protagonismo histórico, amassando quase treze milhões de habitantes na sua imensa capacidade cosmopolita de produzir riqueza e concentrar desigualdade. Se ela não é o resumo do Brasil, é verdade que ela é o retrato do que resultou o capitalismo brasileiro.

Essa capital atravessa sua história afirmando os velhos mitos que encobrem a complexidade de sua formação e de sua manutenção, entre eles de que essa é a “cidade que carrega o Brasil nas costas” quando, na verdade, ela foi construída, em seus defeitos e qualidades, nas costas daquilo que alguns intelectuais do eixo RIO-SP gostam de chamar de Brasil Profundo.

Nesse tema se perpetua o silenciamento da centralidade da classe trabalhadora nordestina para o entendimento da formação do Brasil contemporâneo e de como a perpetuação do protagonismo político, econômico e social do Sudeste desvenda a temperatura conjuntural, mas mascara aquilo que aparece apenas na superfície sob forma de preconceitos.

Num país de proporção continental o que acontece na parte de baixo do mapa ainda ganha contorno privilegiado e, não por acaso, a política formal hoje permanece tendo a extrema direita fascistóide, o ultraliberalismo tucanóide e o reformismo social-liberal paulistano como as principais alternativas para a crise em curso. Às margens disso há a essência: as pessoas que carregam nas costas o campo e a cidade, o centro e a periferia, a capital e o interior, a produção e a reprodução de uma sociedade que serve ao lucro de poucos.

Tratar, ainda que panoramicamente, da questão do nordeste brasileiro revela dimensões importantes do antagonismo de classes no país. É preciso refletir as expressões da questão social e os mitos construídos sobre o povo nordestino, produzidos dentro da naturalização da ideologia burguesa, que acabaram encobrindo a complexidade dos processos de exploração e também de resistência que fizeram parte da formação histórica da região, da identidade do seu povo, das contradições em sua auto-imagem e do modo como é retratado pela hegemonia em diversas práxis como a política, a arte, a ciência e o senso comum.

No belo (e já clássico) filme O Homem que Virou Suco (1981), o “operário modelo” e o “poeta popular” são sujeitos idênticos e estranhos, nordestinos espremidos até o bagaço pela Selva de Pedra que transforma corpos de pele escura, corpos femininos e corpos vindos de outras partes dos territórios do país como mercadorias baratas, descartáveis e facilmente substituíveis.

A discriminação contra o povo nordestino é a síntese do ódio de classe que consubstancia elementos do racismo estrutural, da xenofobia internacional, da cultura da burguesia brasileira e sua essência dependente e autoritária. A repulsa às pessoas trabalhadoras do Nordeste, sua cultura e sua forma de ser é a recusa do Brasil.

É preciso, pois, antes de falar da Capital e do Capital, falar do trabalho e demonstrar como o preconceito regional e todo o ódio ao povo nordestino, ora direto nas piadas sobre a cultura nordestina em sua diversidade, ou na violência social cotidiana, ora travestida de condescendência pela admiração mitológica e instrumentalizada das realizações do povo do Nordeste, são elementos de um conjunto complexo de naturalização do ódio de classe, de criminalização da pobreza e de moralismo pequeno-burguês.

Parte 2 - Nordeste, exploração-opressão e resistência no capitalismo brasileiro

 

Tradicionalmente os movimentos sociais que pautam as opressões, os partidos de esquerda e as organizações sindicais pouco deram importância para a constituição estruturante que determinou a migração interna no País e desenvolveu as possibilidades de exploração intensa da classe trabalhadora nordestina, estruturando a modernização brasileira junto das raízes escravocratas e patriarcais.

Da marginalização ao moralismo, do assistencialismo à romantização da pobreza, da invisibilização midiática e política à caricatura mais bizarra, a classe trabalhadora nordestina teve e tem sua condição de trabalho precarizada e naturalizada, sua cultura, ora mercantilizada ora subjugada, criminalizada e patologizada. . Assim, não há como entender o Brasil, suas lutas e contradições, sem desvendar a essência do que se expressa fenomenicamente no preconceito contra o povo nordestino.

O rebaixamento e obscurecimento da temática reproduz deformações, referenda preconceitos e advém de um conjunto de fatores que processam essa síntese naturalizada sendo composta pela falta de trato da unidade entre questão urbana e rural no Brasil, pelo histórico tratamento da questão de classe de forma abstrata, pelo falta de desenvolvimento de uma tessitura entre classe, raça/etnia e gênero/sexo como unidade e com mediações mais profundas, pelo trato raso sobre o complexo migratório internacional e nacional.

A cordialidade brasileira é uma característica laminada pela contradição. Macia na aparência, ela esconde direções tortuosas, sentidos incoerentes e significados diversos que miram seu corte preciso naquilo que nos acostumamos a achar normal em nossa forma de atuar, seja para viver, seja para sobreviver. Na esteira do mito cordial o apassivamento confundido com pacifismo e o amortecimento dos conflitos transmutado como suposta tolerância, foram acobertando e reproduzindo o cerne de uma estrutura capitalista calcada no racismo, no patriarcado e na subserviência ao imperialismo.

Um passo importante para aprofundar esse entendimento é lançar mãos das reflexões que aprofundam a unidade entre os processos das opressões socialmente construídas e a exploração da força de trabalho e que ganham substância notória nos últimos tempos. A lente sobre o capitalismo dependente e as particularidades da formação do Brasil e da América Latina como pilares para o entendimento das suas expressões cotidianas contribuem para uma perspectiva de totalidade no reconhecimento de uma classe trabalhadora diversa, sem a reprodução de noções abstratas da luta de classes em territórios fora do eixo do capital.

O modelo colonial promovido no Brasil faz parte de um processo mais amplo de estruturação da acumulação originária do capital internacional que particulariza um movimento fundacional de subsunção ao imperialismo desde de seus primórdios.

Essa característica vai sendo constituída de diferentes elementos que permitem um processo de desenvolvimento dependente e combinado, com formas rebaixadas aos interesses europeus que, entre tantas questões, fortalece uma estrutura de rebaixamento do valor da força de trabalho quando se hegemoniza uma estrutura de trabalho assalariado nos anos da República.

Entre diferentes formas de existir no tramitar histórico dos anos de colônia, de império e de modernização conservadora republicana, há um nó do tradicional metamorfoseado que referenda o trabalho não remunerado, a violência nos espaços produtivos e uma cultura de desumanização das pessoas que foi construída e reproduzida no genocídio e etnocídio dos povos indígenas, na instrumentalização forçada via escravidão da população negra, no acobertamento da importância das atividades realizadas pelas mulheres no processo de reprodução social e, em determinado período e particularidade, na naturalização de práticas análogas à servidão em espaços rurais.

O debate sobre as desigualdades do desenvolvimento regional interno no Brasil, suas consequências econômicas, sociais e culturais tem costumeiramente apagado a discriminação regional que articula e expressa a dimensão de classe, raça/etnia e gênero, expressando condições singulares na exploração de uma parcela de pessoas da classe trabalhadora e reproduzindo elementos específicos em valores preconceituosos com tons análogos à xenofobia imperialista, mas sob expressão interna no território nacional.

A seiva e o suor da seca produzida e reproduzida como fenômeno social constrói as possibilidades para os setores dominantes se apropriarem das condições da natureza, constituindo relações sociais como verdadeiras cercas para a reverberação de um instrumento fundamental para o Brasil moderno: a exploração intensa da força de trabalho oriunda do Nordeste do país. Essa exploração, no entanto, não é somente material e nem poderia se estabelecer somente no campo da produção, sendo condimentada por fundamentos políticos e culturais que retroalimentaram a naturalização das condições historicamente determinadas sobre o preconceito geográfico brasileiro.

A ideia de que uma região do país, em especial a megalópole paulistana, responsável por carregar o país nas costas esconde o fato de que seu apogeu econômico foi construído sobre as costas do povo negro escravizado, centro da objetificação radical de seres humanos oriundos do continente africano e, posteriormente, jogados para às margens do Brasil moderno; do povo nordestino migrante e imposto ao subtrabalho e o não-migrante imbuído à uma vida sob a sorte da ausência de políticas estruturantes do Estado nacional, preocupado apenas na manutenção da ordem e no desenvolvimento econômico da região bandeirante; e, por último, completando as costas proletárias, o acolhimento de parte sobrante do exército industrial de reserva europeu, paulatinamente chegando no final do século XIX e progressivamente aumentando nas duas grandes guerras do século XX.

Passam-se décadas de pauperização e o “paraíba” e o “baiano” no cotidiano das periferias do Rio de Janeiro e de São Paulo são naturalizados, vistos como instrumentos, adjetivados de forma preconceituosa, carregando uma história de invisibilidade e imposições.

Em tempos de crise a barbárie inflama as contradições. De repente pulsa um escândalo aqui ou acolá, revelando as discriminações cotidianas. A enxurrada de depoimentos reacionários numa eleição presidencial, culpando os “ignorantes e famintos da parte de cima do mapa país” por não optarem majoritariamente por um projeto ultraliberal e profofacista; ou um tuíte mais específico mandando “afogar os nordestinos”; uma provocação de torcedores de futebol chamando nordestinos de miseráveis ou uma “brincadeira” de um colega de trabalho que foi documentada e viralizou são os recortes escritos do tratamento às trabalhadoras domésticas, aos porteiros, aos garçons, aos garis, aos peões, ou seja, aos sujeitos que estão realizando atividades socialmente tidas como trabalhos de nordestinos no Sudeste.

Enfim, o que parece ser algo muito circunstancial do ódio do presente é, na verdade, manifestação de uma construção histórica que não é somente no campo da cultura, mas que se constitui do ódio de classe.

Assim como a escravização dos povos africanos e dilapidação dos povos originários do continente americano foram centrais para a possibilidade de hegemonia burguesa europeia, a desigualdade interna do Brasil criou as bases para o desenvolvimento sudestino, promovendo a desvalorização da força de trabalho e ofertando possibilidades mais amplas para a exploração.

A monocultura produtiva dos séculos de colonização estruturaram as possibilidades e impossibilidades infraestruturais e as bases culturais que sedimentaram os estereótipos presentes no século XX. O Brasil marginalizou os negros pós-escravidão, absorveu os sobrantes do exército industrial de reserva europeu via imigração e sentou em cima da desigualdade interna do país que a República Café-com-leite e sua industrialização débil constituiu na condição das pessoas fora dos ciclos aburguesados e das camadas médias.

É nesse processo que a ignorância alimenta a compreensão nacional sobre o ser nordestino, reconhecido como um todo abstrato, sem sua diversidade, disputas e contradições. O reacionarismo das elites rurais agrárias do Nordeste foram tomadas como a cultura universal do povo nordestino, ao passo que se marginalizou cada vez mais a cultura popular da região.

Esse é um processo clássico que vai instrumentalizando valores e formas de vida dos sujeitos explorados enquanto perpetua os valores funcionais para as classes hegemônicas. A autoimagem viril — do cabra macho e da paraíba masculina — também reproduzida por parcelas dos/das nordestinos/as como parte de sua identidade é produto disso e é, em essência, autofágica, pois o orgulho historicamente construído pelas elites do Brasil Colônia com sua estrutura escravocrata e patriarcal é mascarada de suposta cultura identitária de rusticidade, de centralidade fálica e que referendou opressões ao longo dos tempos.

Fora do reducionismo popularesco e de referências caricaturas reproduzidas pelas hegemonias regionais (e ainda mais rebaixadas no âmbito nacional) há o sufocamento da riqueza cultural da classe trabalhadora nordestina, produto da resistência cotidiana frente ao processo de exploração, opressão, apropriação e dominação. O saber popular, a linguagem, os meios de solidariedade de classe, a inventividade diante da precariedade e da precarização são marginalizados pelos setores da monocultura de valores sociais.

A forma de falar e agir dos centros urbanos e, dentro deles, dos setores exploradores, assumiram cada vez mais o protagonismo do que é correto, saudável e legalmente aceito. Não por acaso há uma linguagem, um sotaque e determinados hábitos tido como normais em detrimento da “cultura marginal” do resto do país. Capital x interior, litoral, x sertão, centro x periferia, sudeste x nordeste são reproduções de uma lógica hegemônica, irremediável e abstrata do estranhamento capital x trabalho.

O ódio ao povo nordestino e a sua forma de existir no mundo é, na verdade, o ódio ao trabalhador, sua própria desumanização, a expressão da alienação promovida de cima para baixo pela cultura burguesa, pelas raízes aristocráticas do Brasil e também promovida entre os de baixo, no não reconhecimento da diversidade e na tentativa de sobreposição ideológica frente às questões estruturais.

 

Parte 3 - Esteriótipos e discriminação contra o povo nordestino: afirmação da desigualdade, negação da diversidade

 

É próprio do individualismo burguês promover a concorrência, o estranhamento da própria vida e de suas capacidades, além da coisificação do outro e, ainda assim, cultivar a crença formal da possibilidade de superação individual dos seus problemas pela ascensão de classe. Os valores tradicionais das elites arcaicas, da burguesia nacional subsumida ao capital-imperialismo e das camadas médias antenadas com a lógica neoliberal consubstanciam o mundo míope que não enxerga humanidade nem em si e nem o outro.

As parcelas da classe trabalhadora sudestina que expressam repulsa aos nordestinos o fazem pela reprodução alienada de sua própria coisificação. No campo imediato as expressões da questão social vão tomando o cotidiano de todos os sujeitos explorados e oprimidos. Quando não há direção e sentido emancipatório coletivamente organizado, os indivíduos olham a pobreza, o desemprego, a violência, a falta de moradia digna, a luta diária por uma vaga no transporte público e enxergam “o outro” como empecilho.

O ser humano que não se reconhece no que faz, em como vive e no que produz, que não se reconhece naqueles que comungam da mesma condição e que não tem como se reconhecer em quem o explora repulsa as manifestações imediatas da alienação sob formas alienadas como a discriminação e o preconceito. A lógica de consolidação da desigualdade e sufocamento da diversidade é própria da sociabilidade capitalista e é ela que direciona a marginalização de tudo que representa o Nordeste.

A modernização conservadora do Brasil foi um projeto de “unidade de contrários” entre a burguesia subimperialista e as elites reacionárias buscando sufocar os setores explorados e oprimidos. A eugenia, a “higiene social” e as teorias funcionalistas, o moralismo judáico-cristão e o autoritarismo militar caminharam por décadas buscando a “europização” brasileira, num processo à brasileira, sem realização de reformas estruturais do liberalismo romântico, mas adequando a manutenção das raízes coloniais para a economia de mercado, mantendo o patrimonialismo, o racismo e o machismo sempre no centro das possibilidade de manutenção e ampliação da exploração.

Não por acaso o preconceito regional vem sempre reproduzindo elementos de racismo e não raramente também revela a ideação das camadas médias e até de setores pauperizados de uma autoafirmação pequeno burguesa pela proximidade territorial dos setores estratégicos do sistema produtivo e das possibilidades mais amplas de acesso aos bens de consumo.

O ethos do povo trabalhador nordestino, do povo preto, das mulheres e da população lgbt da classe trabalhadora foi patologizado, moralizado, criminalizado, existindo um processo de higienização discriminatória por décadas, que se traduziu nas periferias, nos manicômios, nas penitenciárias. Assim, a normalização, a normatização e o protagonismo sudestino vai pautando uma importância autocentrada e narcísica de suas questões enquanto produz reducionismos sobre o que é aparentemente alheio a si.

E é também por isso que o Sudeste olha no espelho e tenta, em vão, enxergar todo o país. Enquanto isso traça rascunhos e garranchos mistificando as particularidades tão diversas dos outros territórios, implicando em limites de princípios para possibilidade de um projeto de nação que propicie desenvolvimento socialmente referenciado, igualdade substantiva, autodeterminação e soberania nacional.

Por isso, vai se produzindo a lógica de protagonismo que direciona o monólogo que sufoca a diversidade brasileira e permite também não enxergar as contradições dos seus próprios processos. Nesses reducionismos as formas políticas e as oligarquias arcaicas são sempre aquelas distantes e nunca os conchavos dos poucos sobrenomes que batem bola na política bandeirante, fluminense e/ou mineira.

As revoltas populares dos outros lugares são sempre realizadas por famintos desesperados, sob liderança espontaneísta dos fanáticos religiosos, muito diferente da forma civilizada, moderna e urbana de reivindicar. O protesto pacífico é sempre atrapalhado pela “ralé”, pelos “bárbaros”, o não civilizado, aquele que vem de fora da cultura de cidadania macula a limpeza tão bem estabelecida pelas estruturas vigentes.

A monocultura grita. Existe a mídia nacional — leia-se sudestina — e as mídias regionais; existe a música popular brasileira — leia-se aquela abençoada pelo Sudeste — e música regional; existe o sotaque esquisito, o sotaque “do outro” e a forma “normal” de falar. O regionalismo é sempre do outro. O poderio econômico de São Paulo é lido como uma grande meritocracia histórica de sua coletividade quando nada mais é que um produto da lógica de uma burguesia dependente.

O caldo cultural desse processo que se espalha por todas as classes fundamenta estereótipos conhecidos: o/a Nordestino/a exótico/a”: estranho, pois é tido como antagônico ao padrão de civilização; o/a “Nordestino/a batalhador/a” que possui a bravura que desculpa o resto do país da falta de acesso aos seus direitos; o/a “Nordestino/a engraçado/a e prestativo/a”, aquele/a que aceita a servidão como condição e tem seu dom natural assimilado sempre com sorriso no rosto; o/a “Nordestino/a preguiçoso/a” com a malandragem natural e a inaptidão para as regras do “trabalho moderno”.

Os chichês retroalimentados do exótico e do arcaico caminham de mãos dados. O Nordeste mistificado se transforma no não-lugar, no território paradisíaco onde sujeitos passarão férias, acessarão para serem servidos, podendo gozar do tempo livre. O Nordeste mistificado se transforma no não-lugar, um espaço inóspito, animalizado, sem lei, um deserto habitado por famintos onde se pode fazer caridade.

A política que promove o Nordeste como um setor de serviço turístico no litoral é a mesma que solidificou a indústria da seca, que naturalizou desigualdades e que reduziu possibilidades dos “sobrantes úteis”, sendo acompanhada pela hegemonia cultural que condiciona a moral e os costumes. O Brasil Oficial que amarra o que chama de Brasil Profundo é resultado da miscelânea das elites que passaram pela Colônia, pelo Império, pela República Café-com-leite, pelo Estado Novo, pela Ditadura civil-militar de 1964 e se perpetua até hoje calando a diversidade ou a reduzindo a mercadorias.

O nordestino, antes de tudo um forte, é essência contraditória de quem precisou e precisa ser forte para continuar existindo e resistindo, a mística que vai sendo mascarada e se mascarando de uma fortaleza forjada, sobre seus ombros, no seu sangue e no suor.

O simplismo estereotipado vai jogando o Nordeste, em sua diversidade e complexidade, em suas contradições e potencialidades, em seus mitos auto construídos e resistência coletiva, como uma abstração rasa. A discriminação regional é potencializada na conjuntura atual pela xenofobia reproduzida mundialmente e aponta dentro do capitalismo brasileiro para o “tipo ideal” de trabalhador precarizado.

Numa sociabilidade desumanizada os sentimentos desumanizados são a hegemonia. Numa sociabilidade de classes o ódio é essencialmente de classe. Não necessariamente ele tem teleologia, é direcionado, organizado e aponta para a essência do que produz a desumanização.

Pelo contrário, quando os processos privilegiam a naturalização é no cotidiano que o ódio se destila. O ódio ao próximo, ao outro, ao diferente e a si mesmo, a sua forma de existir no mundo, à forma do mundo existir sobre si.

Na falta de um projeto profundo, de uma política por outra hegemonia que se enraíze na vida concreta das pessoas, na ausência de sentido e de demonstração das possibilidades de uma vida radicalmente diferente do que vivemos, o Deus Mercado prevalece com seus mitos e seus postos, desde o cotidiano, passando pela presidência da república, pelos ministérios, pelos programas de tv, pelas as músicas e pelas redes sociais.

Como nossa indignação não é direcionada para quem efetivamente produz nossa tragédia acabamos por caminhar sobre um chão movediço de um país quebrado não economicamente, mas em pedaços de potencialidade coletiva, um todo desumano, em frangalhos, partes que sufocam sua diversidade com a monocultura do capitalismo dependente.

O brasileiro olha no espelho e odeia seu reflexo. Quer destruir a desigualdade sem saber onde ela começa, onde se estrutura, onde se amplia e onde se manifesta e, por isso, aceita quem aponta com o dedo para a imediaticidade. O desespero e a desesperança viram o combustível moralista, individualista, segregatório e elitista entre setores explorados.

O ser hegemônico burguês, que é branco, cis, hétero, adulto, europeu, judáico-cristão, defensor da razão formal-abstrata e, na particularidade brasileira, sul-sudestino, reverbera sua lógica para além de quem tem essas características e transforma diversidade em desigualdade, absorve desigualdades culturais dentro da estrutura econômica e finca a alienação como natural. Ela não é e pode ser superada. E será.

 

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*Atenciosamente,*
*Paulo Wescley Maia Pinheiro*
*Professor do Departamento de Serviço Social da UFMT - Universidade Federal
de Mato Grosso.*
*Doutorando em Política Social - UnB

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