A mensagem chegou para mim através do chat do Facebook, e era uma oferta irrecusável. Minha amiga Eliza Capai, documentarista independente, dizia estar acompanhando meu trabalho e pedia que eu “avisasse para os de cima”: se precisassem de editor de vídeo voluntário, estava à disposição.
Eliza estava certa. Havia sem dúvida uma revolução em curso. A velha ordem começara a ruir no norte da África, ainda no final de 2010, quando os documentos diplomáticos puseram a nu a corrupção escandalosa do regime de Zine el-Abidine Ben Ali na Tunísia. “Seja dinheiro, terras, propriedades e até mesmo o seu iate, a família de Ben Ali é conhecida por conseguir tudo o que quer”, dizia um telegrama. Em dezembro, assolado pela repercussão, o governo tunisiano censurou os sites do WikiLeaks e dos jornais Al Akhbar e Le Monde. Um site local passou a traduzir os telegramas. A ira da população culminou em um gesto dramático: em 17 de dezembro, um jovem vendedor de frutas, Mohamed Bousazini, desesperado com o assédio de fiscais corruptos, morreu após atear fogo ao seu corpo. A rebelião tomou as ruas. E no dia 14 de janeiro, derrubou o governo de Ben Ali.
Pouco antes o Departamento de Estado americano iniciou uma turnê que a própria Hillary Clinton chamou de “turnê de desculpas” pelo Oriente Médio. Ela desabafou a jornalistas durante uma parada nos Emirados Árabes: “Eu disse à minha equipe que quero comprar uma dessas jaquetas bacanas que as bandas de rock 'n' roll usam nas suas turnês. E eu poderia ter uma grande foto do mundo, e poderia dizer ‘A Turnê das Desculpas’, porque eu tenho estado muito, muito envolvida em procurar líderes que estão preocupados sobre a questão mais ampla das nossas comunicações confidenciais sendo expostas desse jeito, ou questões específicas sobre seus países ou sobre eles mesmos”, explicou.
“Eu acho que vou ficar respondendo sobre preocupações relativas ao WikiLeaks até o fim da minha vida, não apenas até o fim do meu mandato como Secretária de Estado dos EUA”. Ela nem imaginava como estava certa – seis anos depois, vazamentos de comunicações do Partido Democrata publicados pela organização tiveram impacto na campanha presidencial que ela disputava com Donald Trump.
Enquanto Hillary Clinton explicava como o governo americano possibilitou esse enorme vazamento – vale lembrar que pelo menos 3 milhões de soldados americanos, assim como Chelsea Manning, tinham acesso a toda essa comunicação – a revolta se espalhava.
Onze dias depois da queda do governo Tunisiano, a agitação civil se alastrou para o Egito. Em janeiro e fevereiro, houve protestos contra o governo e as elites no Iêmen, Líbia, Síria, Bahrein, Argélia, Iraque, Jordânia, Kuwait, Marrocos, Sudão, Arábia Saudita e Omã. A Ásia foi o primeiro continente a ser varrido por uma onda de despertar político que trouxe, como reação, enorme repressão policial e golpes de Estado.
A onda de agitação política chegou no meio do ano de 2011 à Europa, com ocupações de estudantes na praça Puerta del Sol em Madrid, na Espanha, no movimento que ficou conhecido como 15-M. Londres, Grécia e Portugal também foram palco de manifestações. Em setembro, os protestos chegariam ao coração do poder financista global, com as manifestações de Occupy Wall Street. Finalmente os jovens que viram seu futuro roubado em 2008 podiam expressar sua frustação.
Todos esses protestos eram organizados online, demonstrando que a nova hiper conectividade mudaria para sempre a maneira como se faz política. E davam corpo à rebeldia do WikiLeaks, que mostrava ao mundo como era irreversível a mudança que a internet trazia no balanço de poderes que dirigem a opinião pública; em como se define o que deve causar escândalo; e até no que as pessoas acreditam que é a verdade.
Nada voltaria a ser como era antes.
A mensagem de Eliza chegou na melhor hora, porque de fato precisávamos de editores de vídeo para a próxima etapa dos vazamentos. Eliza estava morando na Espanha, o que facilitaria tudo, e era uma globetrotter com liberdade para ir pra qualquer lugar. E, além do mais, era divertidíssima e ia se encaixar muito bem naquela mansão inglesa. Apresentei-a à equipe e comecei a preparar a minha volta ao Reino Unido.
Depois de tudo o que tinha acontecido – Julian sob toque de recolher, os fundos do WikiLeaks cerceados, o relacionamento com jornais em ruínas – eu estava preocupada com a equipe, queria dar uma força e relembrar que o mundo inteiro estava do lado deles.
Quando me apanhou na estação de trem, no final de Março, com Sarah ao volante, Julian reclamou: “engordei muito”.
Envelhecera. Estava claramente cansado, um tanto mais abatido, mas continuava energético, seguro, como um animal acuado que esperava a sua vez de atacar. Trazia a barba mal feita, os cabelos brancos em desalinho. Não era só ele que havia mudado. Sarah, normalmente elétrica, já estava aborrecida com o cenário – e já então maldizia o pequeno e “horrível” lugar, na sua mediocridade interiorana: as mesmas casas cor de tijolo, os mesmos paralelepípedos, as mesmas lojas – Woodsworth, H&M, Sainsbury’s, as mesmas lojinhas off license de absolutamente qualquer recanto do interior da Inglaterra.
À luz da primavera, a cidade parecia outra. Já não andávamos às escondidas, à noite. Julian tinha que se fazer presente e visível – por lei, pela fama, e por necessidade.
Era comum, também, receber visitas-surpresa de fãs, quase devotos. Um Rock Star que, diferente de Clinton, já tinha sua jaqueta marrom de couro, com a qual posava para a infinidade de jornalistas do mundo todo que passavam por ali para entrevistá-lo.
Um jornalista do semanário dominical The Observer descreveu: “Levou 15 minutos até Assange reconhecer minha presença, na sala de estar de Vaughan Smith. ‘O que você está fazendo?’, perguntei. Sem tirar os olhos do keyboard, ele me disse que estava, junto com outros, hackeando as comunicações por satélite de uma empresa de eletrônicos para fornecer internet aos manifestantes no Cairo”.
Uma certa manhã, uma fã deixara uma carta amorosa convidando o líder do WikiLeaks para jantar. Suplicando. “Ela pegou um avião dos Estados Unidos para vir me ver”, dizia Julian com indisfarçado orgulho. “Chegou um dia lá em Ellingham Hall, querendo falar comigo. É rica, quer ajudar”.
Não era a primeira, nem a última fã. Desde que Assange se tornara famoso, e desde que o caso de abuso sexual na Suécia virou notícia, centenas de mulheres escreviam para ele. Uma delas, auto-denominada “delícia” escrevia sacanagens todos os dias. Uma tarde, a advogada sul-africana Stella Morris – que hoje é noiva de Assange e mãe de dois filhos com ele – gritou assustada ao abrir o email oficial do WikiLeaks: a moça mandara fotos da vagina dizendo: “espero que você goste”.
O caso da Suécia havia tomado uma proporção inimaginável. Julian estava em liberdade condicional e com uma tornozeleira eletrônica porque a Suécia queria extraditá-lo por uma série de acusações de crimes sexuais que fugiram inclusive do controle das vítimas. Não havia um caso, propriamente dito; o Ministério Público da Suécia queria interrogá-lo para decidir se o denunciava ou não. Ao longo dos anos, os advogados de Julian ofereceram dezenas de vezes fazer esse interrogatório na Inglaterra ou online; a Suécia sempre negou, e em 2019 encerrou o caso sem jamais Julian Assange ter se tornado réu.
Mas esse não é o único problema da investigação cuja cobertura fez com que até hoje muita gente acredite que Julian estuprou alguém. Isso não aconteceu, não há nenhuma prova de crime sexual. É como resume Nils Melzer, o relator para tortura da ONU: “Imagine ser acusado de estupro por nove anos e meio por todo um aparato de Estado e pela mídia, sem nunca ter tido a chance de se defender porque nenhuma acusação formal foi feita”.
Na origem, a investigação é extremamente suspeita. As duas mulheres que haviam dormido com Assange em agosto de 2010 foram até a delegacia de polícia. Elas não queriam prestar uma queixa, mas pedir um teste de HIV. A polícia então decidiu que isso pode ser um caso de estupro. A primeira mulher se recusou a colaborar com essa versão dos acontecimentos, foi para casa e escreveu para uma amiga que a polícia queria “colocar suas mãos” em Assange. Duas horas depois, o caso estava em todos os jornais da Suécia. Mesmo assim, a queixa foi descartada pela promotora-chefe de Estocolmo, que avaliou que não havia indícios de crime sexual. Depois disso, o depoimento de uma das mulheres foi reescrito sem a sua anuência, e outro promotor reabriu o caso.
É por isso que Julian sempre se recusou a ser extraditado para a Suécia e sempre disse que, uma vez naquele país, ele seria enviado para os EUA. Julian já sabia que ele já estava sendo investigado secretamente nos Estados Unidos desde meados de 2010. Foi acusado de paranoico por toda a imprensa, e eis que, dez anos depois, está claro que Julian estava carregado de razão. Desde 2019, não há nenhum motivo para ele estar preso a não ser o desejo de vingança do governo americano.
Mas voltemos a Ellingham Hall, em março de 2011, onde tudo girava em torno da rotina da prisão domiciliar, que obrigava Julian a estar todas as manhãs, incluindo sábados e domingos, na delegacia de Diss, cidadezinha de 7 mil habitantes, antes das 11 da manhã, e dentro da casa, impreterivelmente, às 22h da noite.
Quando Julian entrou em prisão domiciliar, todos entraram com ele, o que levaria com o tempo, a um torpor profundo, uma espécie de cabinet fever, a síndrome de quem fica trancado por muito tempo no mesmo lugar. Quando eu comentei sobre o lado bom dele estar preso naquela mansão e com tantas pessoas que o apoiavam e muito trabalho a fazer, ele respondeu secamente: “É uma gaiola dourada. Ainda assim é uma gaiola”.
Certa manhã, foi a minha vez de ser a encarregada de acordar Assange para ir até a delegacia. Como sempre, todos haviam ido dormir tarde, e levou uns bons minutos até que eu conseguisse tirá-lo da cama. A cena era já corriqueira. De um pulo, ele saía correndo, desacostumado de acordar cedo, enfiando a blusa na calça, escada abaixo. Enfiava-se em um par de botinas de borracha qualquer, dentre as enfileiradas ao lado da porta, e mergulhava no carro. Sarah dirigia afobada. A fazenda não ficava muito longe da delegacia, cerca de 20 minutos. Chegando ali, o policial era chamado por uma campainha e comparecia ao balcão desanimado, o ar típico de funcionário público. Trazia um livro, páginas e páginas e páginas com data, hora, e a assinatura repetida: Julian Assange, Julian Assange, Julian Assange, Julian Assange...
Julian Assange se apresenta na delegacia - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública
Parecia que Assange era a única coisa que acontecia naquela sonolenta cidadezinha inglesa. “Ellingham Hall fica na divisa dos condados de Norfolk e Suffolk, e os moradores de um lado e de outro disputam entre si quem pode dizer que está nos abrigando”, explicou, rindo.
Naquele fim de semana, o porta-voz do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, enfrentava pela primeira vez, publicamente, os editores do Guardian diante da plateia em uma conferência de jornalismo investigativo na Noruega.
O Guardian havia publicado um livro a jato, no final de janeiro, sobre a experiência das parcerias – que o WikiLeaks tinha denunciado publicamente. A tensão era tanta que, ao apresentar o jornalista Nick Davies, que buscara Julian em meados do ano anterior para costurar o primeiro acordo com o jornal, e David Leigh, que chefiava a equipe de jornalismo investigativo, o apresentador garantiu que os presentes haviam prometido que não haveria luta corporal. Mas a paz durou pouco. David Leigh acusou o WikiLeaks de colaborar com um “notório anti-semita” e o WikiLeaks acusava o Guardian de “censurar” alguns documentos que prejudicavam os EUA. Durante a apresentação, ao relatar que havia vendido os direitos do seu livro ao estúdio de produção Dreamworks, de Steven Spielberg, David Leigh alfinetou: “Não sabemos como vai sair o filme, mas suspeitamos que seja algo assim” – mostrando, na tela de projeção, uma imagem de Shrek. Ainda deixou claro: “Julian é uma pessoa impossível”. Kristinn, por sua vez, acusou-o de mal agradecido. “Eu tenho vergonha por vocês”, bradou Leigh. “E eu tenho vergonha por vocês”, respondeu Kristinn. “Pronto, taí a sua luta corporal”, encerrou ele.
Em Ellingham Hall, Julian e Sarah e acompanhavam pelo live streaming, e ligaram para Kristinn assim que o embate acabou “você foi muito bem contra esse canalha”, disse a voz aguda da inglesa. “Nós te amamos”.
O melhor do debate, no entanto, ficou com Nick Davies, não à toa um dos maiores jornalistas investigativos do Reino Unido. Nick relembrou a primeira reunião que tivera com Assange, cerca de um ano antes quando avaliaram as reações que viriam após a publicação. “E é aí que as coisas dão errado, porque nós sabíamos que estávamos provocando um ataque da maior máquina de manipulação midiática na história da humanidade. É a operação óbvia de manipulação, todas aquelas assessorias de imprensa de todos os departamentos do governo americano, em todo o planeta, e atrás deles a máquina de propaganda montada pelas agências militares e de inteligência que usa essa estrutura de relações institucionais para alimentar ficção para as redes mundiais de informação. Nós sabíamos que os estávamos provocando. E essencialmente o que aconteceu como resultado da publicação é um exemplo da sua força e da nossa fraqueza”, disse.
“Há uma expressão no Oriente que diz, quando um dedo aponta para a lua, o idiota olha para o dedo. E o que aconteceu foi que nós, todos nós, publicamos informações fantasticamente importantes, e devemos nos orgulhar disso, mas não houve quase nenhuma consequência no mundo real. Porque essa máquina de manipulação de informações conseguiu persuadir todo mundo a olhar para o dedo. WikiLeaks, Guardian, New York Times... Who gives a fuck?”.
Quem se importava, de fato? Talvez fosse isso que levasse Julian a concentrar toda sua energia no seu novo projeto, o Cablerun, entregando os documentos diplomáticos para veículos de centenas de países que ainda não os tinham recebido. Era por isso que estávamos ali, e por isso a casa estava em polvorosa. Em algumas semanas três equipes seriam enviadas para regiões diferentes do globo – Ásia, Caribe e África – armados de alguma parafernália eletrônica, audácia, e um passo-a-passo para novos veículos iniciarem parcerias com o WikiLeaks.
Já estava decidido que a equipe Caribe seria eu e a Eliza - que faria toda a filmagem da aventura. Mas havia ainda um problema: como iríamos pagar por tudo aquilo? Ainda no Brasil conseguimos uma solução engenhosa: decidimos levar um jornalista para acompanhar a aventura, em troca da exclusividade da história. No próximo episódio...
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