SOB
OS ESCOMBROS,
as
digitais de um responsável[1].
JOSÉ
LUÍS FIORI
Nessa situação que vive o Brasil,
resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem
do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses
pessoais?
Gal Eduardo Villa Boas, in Animus,
Consultor Jurídico 11/11/2018, www.conjur.com.brdeclaração[2]
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A
soma dos fatos e dos números não deixa lugar a dúvidas que a resposta do governo
brasileiro à pandemia do coronavírus foi absolutamente desastrosa, quando não
criminosa; e seu plano de vacinação massiva da população é um caos, quando não
um engodo. Já são 7,5 milhões de brasileiros infectados e cerca de 200 mil morreram
até agora, e as autoridades seguem batendo cabeça diariamente, como se fossem
um bando de palhaços irresponsáveis e debochados. E apesar de tudo isso, o
general Eduardo Pazuello segue ministro da Saúde, sem entender de pandemias, nem
de planejamento, nem de logística. Simplesmente porque ele é apenas mais uma
nulidade de um governo que não existe, que não tem nenhum objetivo nem
estratégia, e que não é capaz de formular políticas públicas que tenham início,
meio e fim.
Por
isso, o fracasso frente à pandemia se repete monotonamente em todos os planos e
áreas de ação de um governo que se contenta em assistir, com ar de galhofa, à desintegração
física e moral da sociedade brasileira, enquanto estimula a divisão, o ódio e a
violência entre os próprios cidadãos. É o mesmo descaso e omissão com a vida que
este governo vem mantendo frente ao avanço da devastação ecológica da Floresta
Amazônica, da Região do Cerrado e do Pantanal, com números que vêm provocando
um levante mundial contra o Brasil.
Basta
olhar os números para dimensionar o tamanho do desastre, começando pela
economia, que já estava estagnada desde antes da pandemia. A previsão do PIB
brasileiro para ao ano de 2020 é de uma queda de cerca de 5%, embora o PIB
brasileiro já viesse caindo em 2018 e em 2019, quando cresceu apenas 1,1%. Mas
o que é mais importante, a taxa de investimento da economia, que foi de 20,9%
em 2013, caiu para 15,4% em 2019 e deve cair muito mais no ano de 2020, segundo
todas previsões das principais agências financeiras nacionais e internacionais.
Para piorar o quadro de desmonte, a saída de capitais do país, que havia sido
de R$ 44,9 bilhões em 2019 – a maior desde 2006 –, quase dobrou em
2020, passando para R$ 87,5 bilhões de reais e sinalizando uma desconfiança e aversão
crescente dos investidores internacionais com relação ao governo do senhor
Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes, apesar de suas festejadas reformas
trabalhista e previdenciária.
Por
isso mesmo, em 2019 o Brasil foi simplesmente excluído do Índice Global de
Confiança para Investimento Estrangeiro publicado pela A. T. Kearney, consultoria
norte-americana que traz o nome dos 25 países mais atraentes do mundo para os
investidores estrangeiros, o mesmo índice segundo o qual o Brasil ocupava a 3ª
posição nos anos 2012/2013. Paralelamente, a participação da indústria no PIB
nacional, que era de 17,8% em 2004, caiu para 11% em 2019, e deve cair ainda
mais em 2020/2021; e o desemprego, que era de 4,7% em 2014, subiu para 14,3% em
2020, e deve seguir subindo no próximo ano.
A
indústria brasileira está enfrentando escassez de matéria-prima e, segundo o
DIEESE, o país já acumula, em 2020, uma taxa de inflação de 12,14% no preço dos
alimentos que afetam mais diretamente o consumo das famílias mais pobres. De
outro ângulo, os especialistas estão prevendo um apagão elétrico para o ano de
2021, como já aconteceu no estado do Amapá. E agora, no final de 2020, o Brasil
está com déficit energético e importa energia do Uruguai e da Argentina, o que
explica a Bandeira Vermelha 2 que começará a pesar no bolso dos consumidores em
2021. Ainda com relação ao estado da infraestrutura do país, a Confederação
Nacional dos Transportes vem advertindo que o estado geral das rodovias
brasileiras piorou em 2019, e 59% da malha rodoviária pavimentada apresentam hoje
sérios problemas de manutenção e circulação. Por fim, como consequência
inevitável dessa destruição física, a economia brasileira sofreu uma das
maiores reversões de sua história moderna, deixando de ser a 6ª ou 7ª maior do
mundo, na década de 2010, para passar ser a 12ª em 2020, devendo cair ainda
mais, para o 13º lugar, em 2021, segundo previsão do Centre for Economics and
Business Research publicada pelo jornal The Straits Times, de Singapura.
As
consequências sociais desta destruição econômica eram previsíveis e inevitáveis:
mesmo antes da pandemia, em 2019, 170 mil brasileiros voltaram para o estado de
pobreza extrema, onde já viviam aproximadamente 13,8 milhões, número que deverá
crescer exponencialmente depois que terminar o “auxílio emergencial”, aumentando
ainda mais a taxa de desemprego em 2021. A nova realidade criada pelo fanatismo
ultraliberal do senhor Guedes já apareceu imediatamente retratada no novo ranking
mundial das Nações Unidas, o IDH, que mede a “qualidade de vida” das populações,
no qual o Brasil caiu cinco posições, passando de 79º para 84º lugar entre 2018
e 2020. No mesmo período, o Brasil passou a ser o país com a segunda maior
concentração de renda do mundo, atrás apenas do Qatar, e o oitavo mais desigual
do mundo, atrás apenas de sete países africanos.
Por
fim, é impossível completar este balanço dos escombros deste governo sem falar
da destruição da imagem internacional do Brasil, conduzida de forma explícita e
aleivosa pelo palerma bíblico e delirante que ocupa a chancelaria. Aquele mesmo
que comandou a tragicômica “invasão humanitária” da Venezuela em 2019, à frente
do seu fracassado Grupo de Lima; o mesmo que fracassou na sua tentativa de
imitar os Estados Unidos e promover uma mudança de governo e de regime na
Bolívia, através de um golpe de Estado; o mesmo que já comprou briga com pelo
menos 11 países da comunidade internacional que eram antigos parceiros do
Brasil; o mesmo que se lançou numa guerra beatífica contra a China, o maior
parceiro econômico internacional do Brasil; o mesmo que conseguiu derrotar, em
poucas semanas, duas candidaturas brasileiras em organismos internacionais; o
mesmo que conseguiu que o Brasil fosse excluído da Conferência Internacional
sobre o Clima realizada pela ONU em dezembro de 2020; e por fim, o mesmo que celebrou
com seus subordinados do Itamaraty, o fato de o Brasil ter sido transformado,
na sua gestão, num “pária internacional”. Algo verdadeiramente sem precedentes
e que dispensa qualquer tipo de comentário adicional vindo da parte de um
rapagão deslumbrado que foi nomeado praticamente por John Bolton e Mike Pompeo,
a dupla de “falcões” que comandou durante alguns meses, em conjunto, a política
externa do governo de Donald Trump.
Ao
final do segundo ano deste governo, compreende-se imediatamente por que a
maioria dos que participaram do golpe de Estado de 2016, e que depois apoiaram o
governo do senhor Bolsonaro, estejam abandonando o barco e passando para a
oposição. Os jovens “cruzados curitibanos”, tendo cumprido a missão que lhes
foi encomendada e depois dos seus cinco minutos de celebridade, estão fugindo
ou voltando para o seu anonimato, enquanto afundam na lama da sua própria
corrupção. A grande imprensa conservadora mudou e hoje dedica-se a atacar o
governo diariamente, enquanto os partidos tradicionais de centro e
centro-direita, que estiveram juntos com o senhor Bolsonaro desde o golpe de 2016,
agora se afastam e tentam construir um bloco parlamentar de oposição. E até
mesmo o “mercado” parece cada vez mais insatisfeito com o seu ministro da Economia,
que já foi comemorado em outros tempos como a Joana d’Arc da revolução
ultraliberal no Brasil. Assim, neste momento o governo só conta com o apoio
político do submundo fisiológico do Congresso Nacional, que a imprensa chama
delicadamente de “centrão”, o mesmo mundo em que o senhor Bolsonaro vegetou durante
28 anos no mais absoluto anonimato, em nove partidos diferentes. Esse grupo
parlamentar sempre esteve e estará pendurado em qualquer governo que lhe ofereça
vantagens, mas nunca teve nem terá capacidade autônoma de constituir ou sustentar
um governo por sua própria conta. Por isso, depois de dois anos dessa
desgraceira, existe uma pergunta que não quer calar: como se sustenta, afinal,
este governo mambembe, apesar da destruição que vai deixando pelo caminho?
Já
foi mais difícil, mas hoje a resposta está absolutamente clara, porque na
medida em que os demais sócios relevantes foram se afastando, o que sobrou de
fato foi um simulacro de governo militar, absolutamente mambembe. Basta olhar
para os números, uma vez que todos sabem que o próprio presidente e seu vice
são militares, um capitão e o outro general da reserva. Mas além deles, 11 dos atuais
23 ministros do governo também são militares, e o próprio ministro da Saúde é
uma general da ativa, todos à frente de um verdadeiro exército composto por 6.157
oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do
governo. Segundo dados extraoficiais, são 4.450 do Exército, 3.920 da Aeronáutica
e 76 da Marinha, número que talvez seja até maior do que o dos militantes
oficiais do PSDB e do PT que ocuparam postos governamentais durante seus
governos em décadas passadas. Por isso, depois de dois anos fica difícil tapar
o céu com a peneira e tentar separar as FFAA do senhor Bolsonaro, não apenas pela extensão
e pelo grau de envolvimento pessoal dos militares instalados dentro do Palácio
da Alvorada, mas também pelo nível e intensidade dos contatos e reuniões regulares
mantidas durante estes dois anos entre generais e oficiais da reserva e da
ativa, dentro e fora do governo, sobretudo entre os altos escalões das duas
instituições. Depois de tudo isso, seria como querer separar dois ovos de uma
mesma gemada.
Isto
posto, o fracasso deste governo deverá atingir pesadamente o prestígio e a
credibilidade das FFAA brasileiras, colocando uma pá de cal sobre o mito da
superioridade técnica e moral dos militares com relação ao comum dos mortais. Agora
está ficando absolutamente claro, e de uma vez por todas, que os militares não
foram treinados para governar. Uma coisa são seus manuais de geopolítica e
exercícios de ginástica e de guerra, outra coisa inteiramente diferente são os
conhecimentos e a experiência acumulada indispensável para a formulação de
qualquer tipo de política pública, ainda mais para se propor a governar um país
com o tamanho e a complexidade do Brasil. Além disso, também ficou claro na
história recente que a presunção da superioridade moral dos militares é apenas
um mito, porque os militares são tão humanos e corruptíveis quanto todos os
demais homo sapiens. Basta lembrar o episódio recente da solicitação
irregular, por parte de centenas de militares, da “ajuda emergencial” destinada
às pessoas mais pobres, na primeira fase da pandemia no Brasil. Estima-se que
foram mais de 50 mil casos de irregularidades denunciadas pelo Tribunal de
Contas da União e que tiveram que devolver o auxílio aos cofres públicos. Mas
mesmo depois da devolução dos valores adquiridos irregularmente, o que esse
episódio ensina é que não existe nenhuma
razão para acreditar que os soldados estejam acima de qualquer suspeita e que
sejam inteiramente infensos às “tentações mundanas”.
Aliás,
não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do
juízo militar do que o que se passou com o próprio ex-Comandante em Chefe das
FFAA brasileiras, que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua
grande “sabedoria moral” decidiu avalizar em nome das FFA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à
presidência do país um psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado de por
um bando de patifes sem nenhum princípio moral, e de verdadeiros bufões ideológicos,
que em conjunto fazem de conta que governam Brasil, há dois anos. Que sirva de
exemplo para que não se repitam estas pessoas que se consideram superiores e
iluminadas, com direito a decidir em nome da sociedade, usem farda, toga,
batina ou pijama.
No século XX, os militares deram uma
contribuição importante para a industrialização da economia brasileira, mas também contribuíram
de forma decisiva para a construção de uma sociedade extremamente desigual,
violenta e autoritária. E castraram toda uma geração progressista que poderia
ter contribuído para o avanço do sistema democrático instalado em 1946. Assim
mesmo, agora no século XXI, a nova
geração de militare, bastante mais medíocre, está se dedicando a destruir o que
de melhor haviam feito no século passado.
Por tudo e com tudo, parece que está chegando
a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses “mitos salvadores” e
devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir
de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade
de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à sua imagem e
semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes. Que
seja um país altivo e soberano, mais justo e menos violento, que respeite as
diferenças e todas as crenças, e que volte a ser mais humano, mais fraterno e
mais divertido. E que o Brasil volte a ser aceito, admirado e respeitado pelo
resto do mundo. Estes pelo menos são meus votos para o ano de 2021.
31
de dezembro de 2020
[1] Em homenagem ao meu grande amigo Luiz Alberto Gomes de Souza, que faleceu no dia 30 de dezembro de 2020, e que foi um grande guerreiro na luta contra a ditadura militar e contra desigualdade a a injustiça da sociedade brasileira.
[2] Declaração do Gal Eduardo Villas
Boas, feita no dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento do pedido de habeas
corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi
lida na época como uma pressão explícita do ex-Comandante em Chefe das FFAA
sobre o STF, a favor da condenação do ex-presidente e pela sua exclusão da
disputa presidencial de 2018.
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