quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Conheça os voluntários que protegem a Wikipédia do negacionismo climático

 


Você já parou para pensar em quem escreve os verbetes da Wikipédia? E se vândalos decidissem editar essas páginas para incluir mentiras e desinformação? Foi para garantir que o conteúdo sobre mudanças climáticas na Wikipédia permanecesse correto que um grupo de voluntários do mundo todo decidiu unir forças, como contamos nesta reportagem

Na newsletter de hoje, a repórter Laura Scofield detalha como funciona este trabalho colaborativo e explica o que motiva os voluntários a dedicarem tempo, pesquisa e paciência em nome deste propósito. 

O que você achou do trabalho dos "guardiões da Wikipédia"? Mande seu comentário para as "Cartas dos Aliados". É só responder a este email!

Um abraço,

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Conheça os voluntários que protegem a Wikipédia do negacionismo climático
por Laura Scofield
 

Ao longo do Ensino Fundamental, e até do Médio, ouvi algumas vezes na sala de aula que a pesquisa para trabalhos escolares não deve ser feita na Wikipédia. Não é confiável, todo mundo pode escrever ali, entre outros argumentos que não deixam de ser verdade — em alguns casos. 

A qualidade dos artigos da Wikipédia varia bastante. Muitas das páginas sobre mudança climática em inglês fogem à ideia que meus antigos professores tinham daquele espaço: são atualizadas, escritas de maneira clara e abordam diversos aspectos dentro do tema, por exemplo, como o aquecimento global se relaciona com gênero. Esse é um objetivo declarado, como me contou o representante da Wikimedia, Alex Stinson. Ele defendeu que o melhor jeito de fazer as pessoas sentirem a urgência da mudança climática é mostrar como ela afeta, na prática, o local onde moramos e as pessoas que amamos. “Mudança climática é sobre experiências vividas por todos”, afirmou. 

A qualidade dos verbetes sobre clima pode ser atribuída ao trabalho do chamado WikiProject Climate Change, um grupo de editores voluntários do mundo todo que se uniu para garantir que as informações sobre o tema na enciclopédia online estejam corretas – e proteger a Wikipédia de quem vandaliza suas páginas espalhando mentiras negacionistas.  

Na semana em que escrevo esta newsletter, por exemplo, a página mais editada pelo grupo é sobre a calota de gelo de Quelccaya, no Peru —  que, mesmo sendo a segunda maior área glacial dos trópicos, eu não conhecia. 

Nos últimos sete dias, o verbete sobre a grande calota peruana foi editado 63 vezes por quatro editores, que discutem cada pequena mudança minuciosamente na página onde as edições são registradas. Discutem tão minuciosamente que às vezes se irritam, como me confidenciou David Tetta, um dos editores que entrevistei para a reportagem. "As discussões são muito interessantes, mas também podem ser frustrantes", disse. "Pode ser divertido, mas pode ser desafiador." 

David não está entre os que escarafuncharam a página sobre a calota peruana para melhorá-la nos últimos dias, mas atua na página principal "Climate Change" [Mudança climática], uma das mais acessadas sobre o tema. Ele dialoga pela Wikipédia com outros cinco voluntários e com a também editora Femke Njisse, esta sim envolvida nas recentes edições sobre a enorme massa de gelo. 

Femke pesquisa assuntos relacionados ao clima na Universidade de Exeter, Reino Unido, e se tornou “uma espécie de líder do grupo” editor do verbete "Climate Change". Quando perguntada sobre quanto tempo gasta editando a enciclopédia, riu e respondeu: “Tempo demais”. 

Por que tanta dedicação? Um editor anônimo (que chamei de Marcelo* e depois fiquei em dúvida se devia ter inventado um nome mais americanizado) respondeu sinteticamente: “Trump vai passar, a Wikipédia fica”. 

As pessoas públicas que pregam o negacionismo não inspiram só os falantes da língua inglesa a se voluntariarem para trazer informação de qualidade sobre as mudanças climáticas no planeta. No Brasil, Tetraktys, o responsável pela principal página sobre o tema na Wikipédia em português, "Aquecimento Global", também se tornou um editor por ver com urgência o fato de vários governantes serem “negacionistas do problema climático”.

Em julho de 2019, Carlos Bolsonaro, vereador no Rio e filho do presidente, questionou no Twitter se o fenômeno mundial do aquecimento global – consenso entre os cientistas – realmente existiria, já que o dia estava frio.

Ao longo da apuração para esta matéria, pensei em me tornar uma editora na Wikipédia. Não só por cobrir desinformação e acreditar na ciência, mas principalmente ao me deparar com a quantidade de acessos diários que a enciclopédia colaborativa recebe. A página "Aquecimento Global" foi visitada mais de 810 mil vezes em 2019, ou seja, muita gente continua buscando informação e formando opiniões ali. 

Ao mesmo tempo, depois de ter batalhado para entender como funciona a plataforma, sinceramente me questionei se teria tempo e disposição para me envolver num espaço de regras tão rígidas, meio burocrático até. Os próprios editores definem as regras de convivência, de escrita e as punições para quem vandaliza — o que inclui escrever informações falsas, seja de propósito ou como uma brincadeira de mal gosto. 

Alex me explicou que é por isso que manter um grupo de editores é importante: "A Wikipédia sobrecarrega os novatos. É tudo conhecimento. A cada tópico.” O coletivo se une e ensina os novatos a se incluírem ali, alguns com mais paciência que outros, como notei durante a apuração. 

Me pareceu bonito e interessante imaginar que pessoas que não se conhecem para além dos nomes se unem e escolhem tutelar alguém para aprimorar um trabalho voluntário e de pouco crédito, movidas apenas pelo sentimento de dever e pela possibilidade de agregar esforços para espalhar informações importantes.

No entanto, mesmo que muito se faça, ainda há muito a ser feito. 

Uma estudante que busque informações em português sobre a calota peruana vai encontrar que é a maior área glacial dos trópicos. Meus professores reclamariam que o verbete está desatualizado. Já faz anos que ela está derretendo e encolhendo, infelizmente. 

Laura Scofield é estagiária de redação na Pública.

Rolou na Pública
 

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