Três lições da pandemia: diminuir a agressão ao meio ambiente, combater as desigualdades e criar um sistema de saúde público universal. Entrevista especial com Gonzalo Vecina Neto
As únicas alternativas para conter a pandemia neste momento são manter o isolamento social e agilizar a vacinação, diz o médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP
A CPI da Covid que está investigando o colapso da saúde no Amazonas, as omissões do governo federal e possíveis irregularidades, fraudes e superfaturamento nos contratos e serviços, "tem que cobrar do presidente a responsabilidade de não termos comprado vacinas antes e não estarmos fazendo a vacinação", declarou Gonzalo Vecina Neto em sua participação no "Seminário Internacional: Tragédia Brasileira: Risco Para a Casa Comum?", na última quinta-feira, 06-05-2021.
O evento foi promovido pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz - CBJP, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - Conic, Coordenadoria Ecumênica de Serviço - CESE, Fundação Luterana de Diaconia - FLD, FEACT-BRASIL, Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB/Pastorais Sociais, #RespiraBrasil, com apoio do ISER, PAD, CRB e REPAM Brasil, e ocorreu entre os dias 04 e 06 de maio.
Ao analisar a pandemia, a crise sanitária no Brasil e a lentidão no processo de vacinação, o médico sanitarista disse que, “na melhor das hipóteses”, a população brasileira será vacinada em novembro e, na pior, em fevereiro do próximo ano. "Isso significa que até lá, continuaremos registrando casos de mortes de Covid-19, porque não tem milagre. Não tem mágica. Estou falando de fatos. Infelizmente", afirmou.
Segundo ele, se o governo Bolsonaro tivesse assumido outra postura frente à crise, adiantado a compra das vacinas com antecedência e iniciado a vacinação em janeiro deste ano, no mês de maio teria sido possível vacinar toda a população adulta. “O Brasil tem 38 mil salas de vacinação. Se em cada sala de vacinação, funcionando oito horas por dia, 20 dias por mês, for feita uma vacina a cada cinco minutos, o Brasil consegue aplicar, por mês, 70 milhões de doses de vacinas. A população vacinável no país, que são os adultos acima de 18 anos – porque não vamos vacinar jovens e crianças, pois eles não foram testados nas vacinas que conhecemos hoje –, é de 160 milhões de brasileiros. Como a maioria das vacinas é de duas doses – só tem uma de uma dose – vamos imaginar que precisamos aplicar 320 milhões de doses. Essa quantidade, dividida por 70 milhões de doses, dá um pouco menos do que cinco meses. Nós tínhamos vacinas já no final do ano passado e poderíamos ter começado a vacinar em janeiro. Se isso tivesse sido feito, em maio, o Brasil teria 100% da população vacinável vacinada", explicou.
Gonzalo Vecina Neto também pontuou algumas lições que precisam ser aprendidas para enfrentar as desigualdades sociais do país. "Não podemos esquecer as lições da pandemia. Primeira lição: temos que diminuir a agressão ao meio ambiente. É da agressão ao meio ambiente que veio esta peste. Segundo, temos que entender a importância da desigualdade no mundo. Esse vírus nos mostrou que não é ele quem mata. Quem mata é a pobreza. Pobres estão morrendo três vezes mais no Brasil do que os remediados e ricos. Negros estão morrendo quatro vezes mais do que brancos. E não é porque são negros; é porque são pobres e têm que sair na rua todos os dias para buscar comida. Precisamos ter um sistema de saúde público universal financiado por impostos públicos. O SUS salvou o Brasil neste momento e temos que garantir que ele continue existindo", concluiu.
A seguir, publicamos a palestra de Gonzalo Vecina Neto no formato de entrevista.
Gonzalo Vecina Neto (Foto: Reprodução Youtube)
Gonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV EAESP. Atuou como secretário municipal de saúde de São Paulo, secretário nacional da vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. É professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP desde 1988 e superintendente do Hospital Sírio Libanês desde 2007.
No dia 17-06-2021, Gonzalo Vecina Neto participará do IHU Ideias. O evento, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, será transmitido na página eletrônica do IHU e também no Canal do IHU no YouTube.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os principais erros cometidos nesta crise sanitária?
Gonzalo Vecina Neto – Todos os brasileiros estão sendo atingidos, como boa parte do mundo, por esta pandemia. Ela vem nos acordar de algumas coisas que achávamos que eram normais e são absolutamente anormais. Temos que entender isto agora. É anormal a forma como estamos destruindo o meio ambiente, é anormal conviver com a desigualdade da forma como convivemos num país como o Brasil, é anormal termos um exercício da democracia como esse que estamos vendo e com este genocida [Bolsonaro] no comando do país.
Gostaria de fazer dois raciocínios para demonstrar, de maneira cabal, o conjunto de erros que o nosso governo cometeu. O primeiro raciocínio é com relação a quando terminam as pandemias. Uma pandemia termina quando não temos mais suscetíveis, porque todas as pessoas que poderiam pegar a doença já pegaram. Oficialmente, cerca de 14 milhões de pessoas já tiveram a doença no país. Pelos estudos de soroprevalência que temos feito, acreditamos que esse número seja cerca de 20, 25% da população. Portanto, dos 210 milhões de brasileiros, cerca de 45 milhões já tiveram a doença. Essa é uma estimativa mais realista. Para que 45 milhões de pessoas tivessem tido a doença, cerca de 400 mil pessoas morreram, pelas estimativas oficiais. Atualizando esse dado, seguramente, o número de mortos deve chegar a 540 mil. Neste momento, incluindo a subnotificação esperada através de algumas pesquisas que estão sendo realizadas pela Universidade de São Paulo - USP, pela equipe do professor Paulo Lotufo, devemos estar chegando em torno de 540 mil mortos.
Imunidade de rebanho
A imunidade de rebanho para uma doença como essa é alcançada quando cerca de 70% da população já teve a doença. Para cerca de 70% da população ter a doença, quantos mortos temos? Fazendo uma regra de três simples, hoje, 5% da população já teve a doença e, para isso, tivemos 400 mil mortos. Para que 70% da população esteja imunizada, quantos mortos teremos? É só fazer a conta: algo em torno de 1,5 milhão de mortos. Esse é o projeto do nosso presidente.
Para que 70% da população esteja imunizada, quantos mortos teremos? É só fazer a conta: algo em torno de 1,5 milhão de mortos. Esse é o projeto do nosso presidente - Gonzalo Vecina Neto
TweetVeja, ele não quis fazer o isolamento social, que se revelou absolutamente produtivo para diminuir o número de casos. Os países europeus e asiáticos que fizeram o isolamento tiveram sucesso. Araraquara, no Brasil, é um exemplo de que o lockdown diminuiu drasticamente o número de casos e de mortos. O lockdown é fundamental e tem que ser adotado sempre que o número de casos de Covid-19 cresce. Estamos vivendo uma segunda onda avassaladora, com um número de mortos impressionante; em menos de dois meses, duplicamos o número de mortos no Brasil. A única alternativa é o isolamento social. Esta doença – isso já está comprovado – se alimenta de encontros: são os aerossóis, quando falamos e tossimos, que permitem que as pessoas se infectem com este vírus. Então, quando o número de casos cresce, temos que fazer isolamento social; não tem saída.
Posições do presidente
O presidente dá demonstrações diárias de que é contra o uso de máscara. Mas como faz para evitar que as gotículas saiam da nossa boca? É com a máscara. É ela que impede que as gotículas formem o aerossol na nossa frente e infecte outras pessoas. Então, a máscara é fundamental. O conceito é: máscara não me protege, te protege. E quando você me protege, eu te protejo. Então, todos temos que usar máscara, temos que evitar aglomerações e locais fechados, mas o presidente é a favor do culto. O culto ignora a onipotência e a onisciência divina. Nós, sim, temos que orar, mas não em locais fechados. Não temos que orar nas igrejas porque lá é local de disseminação da doença, neste momento em que estamos vivendo uma curva ascendente de casos de Covid-19. O direito ao culto e o direito de ir e vir são precedidos pelo direito à vida. Mas na semana passada, o presidente citou São João, sobre a importância do direito ao culto e do direito de ir e vir, que se sobreporiam, na opinião dele, ao direito à vida. A Constituição de 88 é muito clara ao determinar que antes de todos os direitos está o direito à vida. E entre os cristãos há um razoável consenso sobre essa questão. Então, nosso presidente é contra o isolamento social, contra o uso de máscara e contra as vacinas, que é outra forma de acabar com os suscetíveis, porque cria uma imunidade coletiva.
O Brasil tem 38 mil salas de vacinação. Se em cada sala de vacinação, funcionando oito horas por dia, 20 dias por mês, for feita uma vacina a cada cinco minutos, o Brasil consegue aplicar, por mês, 70 milhões de doses de vacinas. A população vacinável no país, que são os adultos acima de 18 anos – porque não vamos vacinar jovens e crianças, pois eles não foram testados nas vacinas que conhecemos hoje –, é de 160 milhões de brasileiros. Como a maioria das vacinas é de duas doses – só tem uma de uma dose – vamos imaginar que precisamos aplicar 320 milhões de doses. Essa quantidade dividida por 70 milhões de doses, dá um pouco menos do que cinco meses. Nós tínhamos vacinas já no final do ano passado e poderíamos ter começado a vacinar em janeiro. Se isso tivesse sido feito, em maio, o Brasil teria 100% da população vacinável vacinada. O que acontece quando vacinamos? Cai o número de casos, de óbitos. Estamos vendo isso em Israel, na Escócia, nos EUA e até aqui no Brasil, nos grupos etários mais elevados. Vacinou, a doença diminuiu. Acaba? Não, infelizmente não acaba porque o vírus continua circulando no mundo e enquanto não vacinarmos o mundo todo, a doença não irá embora.
Se não tiver vacina para o mundo inteiro, a economia mundial continuará parada - Gonzalo Vecina Neto
TweetO que Joe Biden fez ontem [05-05-2021], [anúncio de apoiar a suspensão de direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas contra a Covid-19], foi de uma inteligência estratégica fantástica para um país que depende da economia mundial para funcionar. Se não tiver vacina para o mundo inteiro, a economia mundial continuará parada. Então, ele não foi bonzinho. Ele fez o que é necessário fazer neste momento que estamos vivendo uma situação excepcional. Ou seja, permitir que todos fabriquem vacinas para que essa doença passe. Se na Índia continuar a produção de variantes, a doença não passará.
Variantes
O que é uma variante? É um erro produzido pela natureza ao copiar o vírus. Esse erro é absolutamente probabilístico e não podemos controlá-lo. Então, vão continuar ocorrendo erros enquanto continuar ocorrendo a mutação viral. Esses erros poderão criar novas cepas resistentes à vacina. A segunda onda que vivemos no Brasil é fruto da P1 de Manaus; isso está comprovado. Se aparecer outra cepa, teremos uma terceira onda. Precisamos tomar muito cuidado com a variante inglesa, com a sul-africana e com a indiana. Temos que diminuir a circulação de pessoas que podem trazer essas variantes para o Brasil. Do jeito que o mundo hoje é globalizado, todas as variantes chegarão aqui. Cada dia que ganharmos de uma variante que não chegue no país, é um dia que pouparemos vidas. Isolar as fronteiras dos países que neste momento podem trazer novas variantes é algo que tem que ser realizado. Lógico que precisamos resguardar as questões humanitárias, tratamento à saúde, questões ligadas ao ensino, mas temos que proteger as populações da circulação de pessoas e de novas variantes. E temos que vacinar.
IHU On-Line – Houve erros em relação à compra das vacinas?
Gonzalo Vecina Neto – Se tivéssemos comprado vacinas, se este facínora [Bolsonaro] tivesse comprado vacinas, mas ele proibiu a compra de vacinas chinesas. E ele continua falando contra a China, mas as duas vacinas a que temos acesso até agora vêm da China: a Sinovac e a AstraZeneca – que, apesar de inglesa, neste caso, é produzida numa fábrica chinesa. Então, o presidente falar mal de onde vem a vacina, é inacreditável.
Neste momento, nós temos que fazer um esforço muito grande para conseguir mais vacinas. Poderíamos estar imunizados e poderíamos estar estancando o número de mortos. Por isso, a CPI tem que cobrar do presidente a responsabilidade de não termos comprado vacinas antes e não estarmos fazendo a vacinação. Neste momento, temos um responsável pelo número de mortos, sim.
IHU On-Line – Quantas vacinas estão disponíveis no país no momento e qual é expectativa em relação à vacinação de toda a população brasileira?
Gonzalo Vecina Neto – Até o momento, o Butantan comprou cem milhões de doses, que terminam em agosto. A Fiocruz comprou 210 milhões de doses e a entrega terminará em fevereiro, porque são enviadas cerca de 20 milhões de doses por mês. Há possibilidade da entrega da vacina da Pfizer, cuja compra foi feita em março deste ano. Dizem que a Pfizer vendeu cem milhões de doses e entregou um milhão de doses. O restante será entregue no final do segundo semestre deste ano. Há possibilidade de entrega de 38 milhões de doses da Janssen no final do segundo semestre deste ano. Temos ainda a entrega da COVAX Facility, da Organização Mundial da Saúde - OMS. Pois bem, essas entregas estão previstas para o segundo semestre.
Temos que correr atrás das lições de casa que deixamos de fazer e temos que cobrar o fato de que este presidente e seu desgoverno são os grandes responsáveis por tudo que está acontecendo - Gonzalo Vecina Neto
TweetQuando nós, se a providência ajudar, vamos terminar de vacinar a população brasileira? Na melhor das hipóteses, em novembro. Na pior das hipóteses, em fevereiro. Isso significa que até lá, continuaremos registrando casos de mortes de Covid-19, porque não tem milagre. Não tem mágica. Estou falando de fatos, infelizmente.
IHU On-Line – Quais são as lições desta crise?
Gonzalo Vecina Neto – Temos que correr atrás das lições de casa que deixamos de fazer e temos que cobrar o fato de que este presidente e seu desgoverno são os grandes responsáveis por tudo o que está acontecendo.
Uma vez feito isso, não podemos esquecer as lições da pandemia. Primeira lição: temos que diminuir a agressão ao meio ambiente. É da agressão ao meio ambiente que veio esta peste. Segundo, temos que entender a importância da desigualdade no mundo. Esse vírus nos mostrou que não é ele quem mata. Quem mata é a pobreza. Pobres estão morrendo três vezes mais no Brasil do que os remediados e ricos. Negros estão morrendo quatro vezes mais do que brancos. E não é porque são negros; é porque são pobres e têm que sair na rua todos os dias para buscar comida. Quem tem que sair na rua todos os dias para buscar comida, encontra o vírus, adoece e morre.
Distribuição de renda e acesso à saúde
Temos que combater a desigualdade e não se combate a desigualdade ensinando a pescar. Precisamos distribuir renda, é preciso haver uma política ativa de distribuição de renda. Isso é decisão do povo e nós, povo, temos que decidir isso. Temos que eleger políticos comprometidos com a redução das desigualdades. Não é normal a desigualdade; ela é anormal.
Precisamos ter um sistema de saúde público universal financiado por impostos públicos. O SUS salvou o Brasil neste momento e temos de garantir que ele continue existindo. Os inimigos do SUS estão presentes. Tem uma consulta pública no Ministério da Saúde neste momento com um projeto de privatizar o SUS. Tivemos uma redução importante do financiamento do SUS neste ano: mais de 40 bilhões em relação ao ano passado. Os inimigos do SUS estão acordados. E nós, o que estamos fazendo? Estamos na luta. Vamos continuar. Certamente, quem continuar terá o fruto da sua luta. E o fruto da nossa luta é um mundo mais humano, igual, com menos morte.
IHU On-Line - Quais são os desdobramentos e efeitos da iniciativa de Joe Biden em termos de quebra de patentes? Como isso afeta em particular o Brasil?
Gonzalo Vecina Neto – A questão do Biden é uma bela de uma promessa. No Brasil, não creio que gere uma alteração muito grande porque já temos no Butantan e na Fiocruz o projeto de transferência tecnológica da AstraZeneca e da Sinovac. Além do quê, o Butantan está desenvolvendo a vacina Butanvac, que está em produção, é uma promessa, mas ainda precisa passar pelos testes clínicos, que vão terminar por volta do final do ano, e, no início do ano que vem, está previsto o término das vacinas que são desenvolvidas na USP, em Ribeirão Preto.
Agora, temos mais indústrias, temos mais capacidade de receber transferência de tecnologia de outras empresas. Hoje, temos, seguramente, cinco indústrias farmacêuticas de capital nacional com capacidade de receber tecnologia para produção de vacina, mesmo uma vacina de RNA mensageiro. Então, há uma abertura para isso. Não sei como isso vai se desdobrar. Temos capacidade e podemos ser um importante provedor de vacinas para o mundo. Precisamos estar abertos para isso, mas vamos acompanhar os acontecimentos. Temos que registrar a importância do gesto do Biden, que, repito: tem um aspecto humanitário, mas tem um aspecto que é inteligência estratégica dos americanos.
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