sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Agência Pública

 

Conheça a história da Cidade dos Meninos, a "nossa Chernobyl"
por Pedro Grigori
 
No ano passado, fui um dos muitos espectadores da minissérie da HBO "Chernobyl". A produção estadunidense bateu recordes de audiência ao contar para uma nova geração a história do maior desastre nuclear da história, ocorrido na Ucrânia em 1986. 

Durante os últimos meses, toda vez que contava para alguém sobre a Cidade dos Meninos ouvia que era “a nossa Chernobyl”. Mas não se assuste caso você nunca tenha ouvido falar sobre a Cidade dos Meninos até ler esse texto.
 
reportagem que publicamos nesta semana resgata uma história praticamente esquecida, que começou em 1949, quando o governo federal achou uma boa ideia construir uma fábrica de agrotóxicos cancerígenos na área de um orfanato na Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro. A produção durou pouco mais de uma década, as portas foram fechadas, mas os governantes esqueceram para trás mais de 400 toneladas de hexaclorociclohexano, popularmente conhecido como "pó de broca" – pois era usado contra um besouro que ataca o cafezal, a “broca do café”. 

Sem aviso, funcionários e moradores do orfanato, incluindo crianças, passaram a frequentar a área da fábrica e brincar com os venenos. O resultado veio décadas depois: 97% da população do local chegou a apresentar resíduos do agrotóxico no sangue. 

Eu só ouvi falar da Cidade dos Meninos dois anos após começar a fazer reportagens sobre agrotóxicos. Me senti o pior profissional do mundo, até perceber que muitos colegas também não conheciam essa história. Pesquisando, vi que fazia décadas que nenhuma boa reportagem sobre o caso era publicada. 

Uma tese de doutorado comprovou o que eu já pensava: a história estava sendo esquecida. A pesquisadora da Fiocruz Rosália Maria de Oliveira, que participou das atividades de remediação da contaminação desde o começo dos anos 90, publicou em 2006 um trabalho onde mostrou uma linha do tempo com todas as reportagens feitas sobre a comunidade. O interesse dos jornais mal durou dois anos. O trabalho mostrou que não só o governo, mas a imprensa também havia esquecido da Cidade dos Meninos, já que os jornais pararam de cobrir o caso antes mesmo que atitudes começassem a ser tomadas para resolver a situação.

Assim como na minissérie "Chernobyl", o foco dessas narrativas costumam ser as contaminações, as tragédias, e não como a vida dos moradores ficará quando os holofotes não estiverem mais ali. 

Isso me lembrou uma reportagem que li recentemente: "Um menino manchado de petróleo", do jornalista peruano Joseph Zárate, traduzida para o português pela Agência Pública em 2017. Na bela e longa reportagem, ele conta a história do vazamento de 500 mil litros de petróleo em um rio próximo a uma comunidade indígena na Amazônia peruana. 

Quando a história explodiu, jornais, canais de TV e ONGs correram para Nazareth, no interior do Peru, para entrevistar uma das crianças que havia sido contaminada após mergulhar no rio de petróleo. Mas logo eles foram embora. O jornalista descreve que os companheiros de profissão competiam para ver quem descobria algo mais terrível. “Essas tragédias interessam sobretudo a quem não as viveu, a quem mora nas cidades viciadas em plástico, aliviado por não ser você. O menino manchado de petróleo”, escreveu. 

Essa frase não saiu da minha cabeça durante a semana que passei em frente à tela do computador tentando resumir em palavras quase um século da Cidade dos Meninos. Como fazer uma reportagem que fosse mais do que “olhem que triste essa tragédia”? 

Quando visitei a Cidade dos Meninos, respirei o ar, caminhei pelo mato, cruzei toda a avenida principal e conversei com dezenas de pessoas. E percebi que elas não estavam interessadas em contar como ocorreu a contaminação por agrotóxicos, mas sim, como a história da vida delas se entrelaçava com a do orfanato, da fábrica de pesticidas e, por fim, da contaminação. 

Eles queriam aproveitar a oportunidade de contar suas histórias após anos em que a comunidade permaneceu invisível. E ao escutar sobre suas vidas, consegui entender porque ninguém quer sair da Cidade dos Meninos. Não é apenas pela sensação de segurança longe da violência da Baixada Fluminense, ou pelos terrenos espaçosos e geograficamente privilegiados. É porque ali é o lar daquele povo – que acabou degradado pelo descaso do governo. 

Na minha última entrevista presencial com o Miguel do Pó, principal denunciante da contaminação, falamos sobre isso. A luta daquela comunidade, principalmente dos mais velhos, é pela descontaminação do local e pelo direito de poder viver ali até morrer. E é sobre isso que pouco se fala nas histórias de desastres ambientais. 

Aquela área, que para quem vem de fora é o símbolo de uma tragédia, um local apodrecido e perigoso, para os moradores é o lugar onde eles nasceram. É naquela terra em que eles brincaram durante a infância, foi ali que eles construíram as casas que abrigam suas famílias. Talvez eles pudessem simplesmente mudar para outro lugar, mas a luta pela descontaminação da Cidade dos Meninos só dura mais de 30 anos porque os moradores querem ver o seu lar seguro e sadio. 

 
Pedro Grigori é repórter da Agência Pública em Brasília. 

Rolou na Pública
 

Cientistas na Linha de Frente. Acabamos de lançar um novo podcast investigativo! Em seis episódios, a repórter Mariana Simões conta a história de cientistas brasileiros que sofreram ataques e perseguições por conta de seus trabalhos. O primeiro fala sobre o infectologista Marcus Lacerda, que sofreu ameaças de morte após comprovar a ineficácia contra a Covid-19 da cloroquina – medicamento constantemente propagandeado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Você já pode ouvir aqui, em seu tocador preferido, e na Rádio USP, que vai veicular o podcast em sua programação toda quarta-feira, às 11h, assim como nós.

A CPI parou, nossos repórteres não. Na véspera da volta da CPI da Covid às atividades, publicamos uma reportagem que mostra que o Reverendo Amilton Gomes articulou encontros com o presidente da República, políticos e empresários do DF. A matéria revela também que a ONG humanitária criada por ele usou indevidamente as logomarcas da OAB e do CNJ como se fossem suas parceiras. Ontem o Reverendo foi ouvido pela CPI e a reportagem publicada nesta semana, assim como outras publicadas recentemente, ajudaram a basear a discussão. O Senador Fabiano Contarato (Rede), chegou a ler o início da matéria da Pública durante a sessão. Importante lembrar que a atuação de Amilton Gomes e da Senah, organização que ele preside, na negociação de vacinas no governo federal foi revelada por nossos repórteres Alice Maciel e Bruno Fonseca no início de julho.

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