quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O discurso manco de combate ao crime

 

O discurso manco de combate ao crime
por Ciro Barros
 
Imagine que você atua em uma atividade ilícita como, por exemplo, o tráfico de drogas. Você tem uma pilha de dinheiro sujo nas mãos e precisa lavá-lo para não soar o alerta dos órgãos de controle financeiro. O que você procuraria? Certamente, uma atividade com um nível de fiscalização baixo e, no caso do Brasil de Bolsonaro, cada vez mais decrescente. E se, para além de proporcionar a lavagem de recursos ilícitos, essa atividade fosse ela mesma um setor interessante para o acúmulo de capital? Suponha ainda que essa atividade também possua um ramo ilícito ainda mais lucrativo e com penas relativamente baixas, sobretudo se comparadas às do tráfico de drogas. Parece ser uma prática perfeita para um grupo criminoso agregar ao seu portfólio, não?

Existe um setor de atividades que reúne todas as características descritas acima e, por isso, é cada vez mais procurado pelos criminosos ligados ao narcotráfico, especialmente na Amazônia: os crimes ambientais, como a grilagem, o contrabando de minério, e a extração ilegal de madeira. Seguindo o raciocínio acima, parece uma escolha óbvia. Mas entendê-la a fundo não é tarefa fácil, ainda mais quando o debate a respeito do narcotráfico é, como tantos outros na nossa sociedade, proposto a partir de uma visão de mundo muito urbana e, portanto, limitada. 

Já há alguns anos, o PCC estabeleceu seu domínio na chamada “rota caipira”, aquela que escoa a cocaína oriunda dos países produtores, como Colômbia, Bolívia e Peru, a partir da fronteira seca e passando pelo interior do centro-sul do Brasil. 

Mais recentemente, assistimos à sangrenta batalha das facções criminosas pelas rotas amazônicas, como a da calha do rio Solimões. Vimos cenas de barbárie como as da rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) em 2017, quando 56 pessoas foram assassinadas. 

Conforme se aprofunda a territorialização das facções criminosas em solo amazônico, nos termos do geógrafo paraense e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Aiala Couto, é natural que o encontro com o crime ambiental ocorra. Mas o que era um encontro casual vem virando casamento: para além de um mero compartilhamento de rotas ou uma oportunidade de lavar recursos, o crime “comum” vem enxergando o crime ambiental como uma oportunidade de capitalização, mais uma atividade no seu leque de lucros.

Na semana passada, publicamos uma reportagem que traz mais um sintoma dessa junção de atividades: o uso crescente de cargas de madeira ilegal para esconder e enviar cocaína à Europa. Detalhamos uma operação recente da Polícia Federal, a Operação Schelde, que mostrou como pessoas ligadas à facção criminosa Família do Norte estiveram envolvidas em um envio de 250 kg de cocaína em uma carga de madeira ilegal. 

A reportagem se soma a um alerta que já vem sendo feito pela imprensa e pela academia, principalmente por jornalistas e pesquisadores baseados na Amazônia. Em setembro do ano passado, o jornalista Fábio Pontes revelou na revista piauí o avanço das facções criminosas em áreas dos indígenas Huni Kuin, no Acre, caso que já deixou mortos ao menos dois adolescentes com sinais de tortura. Em maio deste ano, as jornalistas Kátia Brasil, Emily Costa e Elaíze Farias, da Amazônia Real, noticiaram em primeira mão o ataque de garimpeiros ligados ao PCC aos indígenas Yanomami, em Roraima. O já citado pesquisador Aiala Couto alerta também para a formação de um grande polígono da maconha no nordeste do Pará, região onde pessoas ligadas ao narcotráfico estão invadindo terras públicas, lucrando com a grilagem e exploração ilegal de madeira e, posteriormente, montando enormes roçados de maconha para compensar os custos logísticos da venda da droga interna e externamente.

Todo esse cenário aponta para uma enorme contradição do governo Bolsonaro. O mesmo governo que foi eleito com a bandeira da segurança pública e do combate ao narcotráfico é o que afrouxa a fiscalização e o combate aos crimes ambientais na ponta. É o governo que recebe denunciados por crimes ambientais em encontros com ministros até fora da agenda oficial. É o governo cujo presidente esbraveja frequentemente contra a fiscalização “xiita” do Ibama, e cujo antigo ministro do Meio Ambiente desautorizava operações em curso do órgão de fiscalização ambiental e da Polícia Federal.

Como proclamar o combate ao crime organizado ao mesmo tempo em que se faz vista grossa para os crimes ambientais, que estão no leque de lucros do narcotráfico? Sobretudo na Amazônia, tal postura significa conivência com o crescimento das facções criminosas.
Ciro Barros é repórter da Agência Pública

Rolou na Pública
 

Pública na França. A matéria tema da newsletter de hoje repercutiu no Courrier International, um importante jornal francês.

Fake news no grupo da igreja. Na última semana, publicamos reportagem sobre a pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro que mostrou que grupos da igreja no WhatsApp são usados para disseminar desinformação. A reportagem saiu também no Núcleo JornalismoMSNIGBrasil de FatoColetivo Bereia, e no Polígrafo, de Portugal. 

Ouça nossos podcasts. Sempre bom lembrar que a nossa produção de podcasts anda a todo vapor! Atualmente, temos três podcasts no ar. Além do Pauta Pública, nosso podcast quinzenal que só existe graças a você, estão no ar outras duas séries: Amazônia Sem Lei, que narra algumas de nossas investigações mais urgentes sobre a Amazônia e sai uma vez por mês (nessa sexta tem!) e o Cientistas na Linha de Frente, série com seis episódios que conta a história de pesquisadores e acadêmicos atacados e perseguidos por fazerem seu trabalho. Acabamos de publicar o quarto episódio. Ouça agora!

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