Um ano de escutas por Ricardo Terto Não me lembro da única cirurgia que fiz, com quatro ou cinco anos. Eu tinha um ossinho desajustado no ouvido que me causava dores constantes. Para aliviar, minha mãe banhava umas folhas de arruda, depois colava na minha orelha – dessa sensação quente e acolhedora, eu já me recordo bem. Havia a possibilidade de eu ficar com a audição prejudicada, o que, ainda bem, não foi o caso. Pelo contrário, até demorou muito para eu descobrir o quanto escutar foi se tornando uma das expressões mais importantes da minha vida.
Na época do telemarketing, eu descobri a expressão "escuta ativa", que é na verdade um pleonasmo, afinal toda escuta só pode ser ativa. Escutar é o processo voluntário de dar atenção aos sons que nos alcançam. Por isso, quando escrevo que escutar é uma expressão, não é só efeito de frase.
Um dia durante um jogo de bilhar eu escutei alguém perto de mim comentando sobre a Agência Pública estar procurando alguém para produzir podcasts. Se eu editasse essa cena, nessa hora viria o som de uma bola entrando na caçapa.
Não acredito em destino ou coisa parecida, mas acredito em vocação. Ou melhor, em vocações. A junção das palavras "voz" + "ação", vocação, como uma voz que age em determinado sentido, o que costumamos nomear "chamado". São muitas as vocações que nos despertam de madrugada ou nos surpreendem em momentos inesperados. Muitas vezes não entendemos, não confiamos nem percebemos o que ela quer dizer, mas em alguns momentos coisas interessantes podem acontecer. Na minha vida, uma dessas coisas completa um ano esse mês, o Pauta Pública.
O processo de produção também começa e termina com escutas, ainda que na maior parte destes 26 episódios, remota. Funciona assim: eu, Andrea Dip e Thiago Domenici conversamos sobre qual dos muitos assuntos em debate no Brasil podemos abordar por meio do trabalho de jornalistas que se dedicam a nos fazer entender melhor o que está acontecendo. Eu escuto a entrevista várias vezes, durante a captação, a edição e ajustes, mas antes de enviar o corte final, eu saio do perfil de editor para o de ouvinte: mando o arquivo para o meu celular e vou ouvir o episódio fazendo alguma outra coisa, como faço com qualquer outro podcast. Cada entrevista é uma história diferente, um tipo de fala diferente, um humor diferente. E falando em humor, quem quiser sentir o gostinho dos bastidores das gravações escute o quadro "A Boa do Povo" do nosso episódio de um ano. É bem por ali.
Toda profissão produz uma espécie de idioma próprio, um diálogo interno, que vai muito além do escopo das atividades diárias, e que você identifica com o tempo. A base do meu trabalho é escutar pessoas falando, o que elas querem dizer, o que elas estão simulando, onde está a tensão e a paixão de cada discurso. Eu já reconheço a risada do incômodo, a hesitação de desconforto e a redundância de quem está procurando na memória uma frase de impacto. E, vez ou outra, na hora que a pessoa finalmente acha esse "punchline", passa um carro, entra uma furadeira, um cachorro late, a conexão trava. E todas essas interferências e algumas frustrações fazem parte do trabalho.
Ao longo desse ano, confesso que muitas vezes pensei "o mundo está desabando e eu aqui produzindo podcast." Ou me frustrei porque acreditava que em outras condições eu poderia fazer melhor. Depois eu comecei a entender mais o significado de fazer essa coisa que comercialmente é chamada de podcast por conta de um formato de distribuição, mas que no fim é a produção de conversas, histórias e, por que não, a produção de escutas.
Não é à toa que o consumo de podcasts explodiu durante a pandemia, ao contrário do que algumas previsões diziam. Diferente do texto, que você deve ter parado agora para ler, o áudio se mistura naturalmente às coisas e não impõe mais uma tela no ano do excesso de telas. No fim, a mixagem final de um programa acontece na vida, com o som da louça, da rua, de bebê chorando, da buzina, do anúncio da próxima estação. O nosso trabalho é apenas criar algo relevante que faça parte disso.
Claro que cabe muita coisa dentro deste "apenas". A dedicação, a paciência, a curiosidade, o tempo e, claro, a escuta de todo mundo que faz parte desse projeto. Aprender como agir quando o entrevistado dá um bolo em cima da hora, o que fazer quando a gravação dá pau e você perde tudo, o desapego de dizer "ok, isso é o melhor que podemos fazer com o que temos" – frase que resume bem o estado psicológico e emocional de quem trabalha durante uma pandemia, e por aí vai.
Não vejo e nunca vi essa pandemia como oportunidade de nada, acho esse discurso uma desgraça, mas sim, ele é feito de significados. Um deles, que tem a ver com esse texto e com o aniversário do Pauta Pública, é pensar que, no meio de uma das maiores catástrofes que o mundo já viu no último século, algumas pessoas talvez tenham ampliado sua vocação para escutar. Que sons elas buscam?
Sejam quais forem, sou todo ouvidos. |
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Rolou na Pública Violência contra detentas. Em julho, uma reportagem da Pública revelou que ao menos 27 detentas acusavam agentes prisionais de tortura e de exigir favores sexuais em troca de regalias em presídio de Santa Catarina. Em reunião na Assembleia Legislativa do estado nesta semana, o Conselho Estadual de Direitos Humanos cobrou que medidas sejam tomadas em relação ao caso.
Participe da nossa investigação. Estamos investigando a atuação de convênios médicos durante a pandemia. Seu plano de saúde distribuiu kits com medicamentos ineficazes? Você conhece quem tenha sido submetido a algum tratamento controverso? Conte sua experiência para nós respondendo este questionário. |
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