quarta-feira, 3 de novembro de 2021

No Brasil ou nos Estados Unidos, brasileiros sentem fome

 

No Brasil ou nos Estados Unidos, brasileiros sentem fome
por Laura Scofield
 
Começo pelo senso comum, mas é importante dizer: em 2021 o cenário está trágico. Com sucessivas crises políticas dignas de roteiro de filme e o impacto da má condução da pandemia de coronavírus, mais de 19 milhões de brasileiros passam fome. Açougues cobram por ossos e mercados só entregam a carne àqueles que mostram a nota fiscal. Enquanto o povo escuta o estômago roncar, executivos não parecem ter vergonha de colocar à venda restos de hambúrgueres em bandejas. O desemprego afeta 14% da população e tem gente que come sem saber se terá alimento para a próxima refeição.

Em meio ao desespero, a possibilidade de sair do país surge como uma “pílula” de esperança, dourada ao máximo por quem lucra com a existência de mais e mais gente dependendo do crime para atravessar fronteiras e, finalmente, conseguir trabalhar. Apenas no ano fiscal de 2021 (que vai de outubro de 2020 a setembro do seguinte), 57 mil brasileiros foram detidos na tentativa de adentrar os Estados Unidos, número maior que a soma dos 14 anos anteriores. Alguns voltam ao Brasil algemados pelos pés e mãos nos voos de deportação, enquanto outros são soltos em terras norte-americanas com a promessa de ir às cortes imigratórias, que decidem quem fica e quem vai. 

Cruzar a fronteira exige a mediação dos coiotes — mais bem descritos como contrabandistas de pessoas — e custa, em média, a bagatela de 100 mil reais, dinheiro que grande parte dos que emigram nunca nem viu na vida. A viagem cara não é de luxo, e depois de se hospedar em hotéis pequenos, lotados e perigosos perto da fronteira, os migrantes, muitos com crianças de poucos meses ou anos, chegam a caminhar por mais de 11 horas no deserto. Quem não aguenta fica pelo caminho, como a enfermeira rondoniense Lenilda dos Santos, que morreu de fome e sede ao ser abandonada no trajeto em setembro.

Superada a fronteira, nada garante que a parte difícil acabou. É o que mostram relatos recentes em grupos de ajuda comunitária no Facebook, que registram pedidos por emprego, moradia, comida, roupa, brinquedos ou medicamentos caros demais para comprar. “Queria pedir também a ajuda de vocês para doações, o que puderem, pois eu meu marido e minha filha de 4 anos não temos nada ainda”, escreveu uma migrante no grupo Ajuda Comunitária Newark NJ e Região. 

Com o aumento do fluxo migratório, os novatos estão tendo dificuldades em encontrar casa e trabalho. A alternativa que resta é viver de favor na casa de outros migrantes, amontoados com duas ou mais famílias em residências apertadas. “Aqui [é] pequeno, muita gente dentro da casa, os quartos tudo pequenininho. A pessoa vem pra casa da outra pessoa, e aqui já tem muito menino, não pode”, me explicou uma das entrevistadas da reportagem “Brasileiros indocumentados não encontram onde morar e vivem de doações nos EUA”.

Além de expor a falta de assistência do Estado brasileiro aos seus emigrantes, os relatos dos brasileiros em busca de apoio no exterior mostram que o sonho americano está mais para pesadelo ou ilusão. Os migrantes que chegam não tem nada além da roupa do corpo e uma dívida de milhares de dólares a pagar. “No início não podia comprar nem calcinha, todo dinheiro era para pagar a dívida. A gente vive de doação quando chega”, contou outra imigrante indocumentada.

O espaço de ajuda mútua, que muitos relataram ser efetivamente útil ao migrante, não é utilizado somente pelo público a que se destina, como percebi durante a apuração. Em um momento de crise no Brasil, às vésperas da troca do Bolsa Família por um projeto assistencialista permeado por incertezas eleitoreiras, quem nunca saiu do país também está apelando aos grupos de brasileiros no exterior por um alento. 

“Olá boa noite !!! Estou aqui deixando a vergonha de Lado e pendindo ajunda pró (sic) meus filhos com roupas sapatos brinquedos qual quer coisa lençol imóvel pertis minhas coisas todas estou desesperada alguém poder ajuda agente porfavo ????”, escreveu uma brasileira que mora no estado do Rio no grupo BRASILEIROS em DANBURY-CT e REGIÃO. “Preciso de fraldas cesta básica qual quer coisa preciso muito estamos sem nada pra come ser alguém poder mim ajuda vou ficar muito grata”. 

O tom desses pedidos é geralmente envergonhado, de desculpas prévias, como um “sei que isso aqui não é pra isso”. Mas a urgência se impõe. 

No Brasil ou nos Estados Unidos, brasileiros sentem fome. 
Laura Scofield é estagiária de redação da Agência Pública

Rolou na Pública
 

Precisamos da sua ajuda! Nossa investigação sobre as acusações de crimes sexuais de Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, é finalista do Troféu Mulher Imprensa, na categoria "Melhor Projeto Sobre a Temática Feminina". Nesta fase, é o público quem define as vencedoras, então precisamos muito de você! Aqui está o link para votação. Não se esqueça de confirmar seu voto no link enviado por e-mail! 

Vaga de estágio na Pública. Estamos em busca de uma pessoa para ser nossa nova estagiária de redes sociais! A vaga é exclusiva para pessoas trans e/ou negras, que estejam cursando até o 3º ano de Comunicação Social. Aceitamos candidaturas até o dia 5/11 através deste formulário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário