quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A fonte de renda que intoxica

A fonte de renda que intoxica
por Dyepeson Martins
 
Imagine ficar isolado em um local, sem acesso a sinais de telefone ou internet, e convivendo com dúvidas diárias sobre o futuro. A descrição pode lembrar um reality show estreado esta semana, mas é isso que acontece bem longe das câmeras, no meio da floresta amazônica. Esta é a realidade da maioria dos moradores da comunidade Vila Nova, situada no entorno de um garimpo no município de Porto Grande, interior do Amapá.

De Macapá, capital amapaense, até o vilarejo, são mais de três horas de viagem, boa parte do percurso em uma estrada sem asfalto, cheia de lama e buracos. Basta se aproximar do pequeno aglomerado de casas para perceber olhares curiosos e desconfiados. Com razão. Afinal, qual o interesse de quem realiza esse trajeto cheio de dificuldades?

O questionamento fica ainda mais pertinente frente à falta de estrutura que encontrei quando visitei a comunidade no fim de dezembro de 2021. Na maioria das residências não havia água encanada, o fornecimento de energia elétrica estava interrompido há dois dias, a escola sem professor, o posto de saúde sem médico, e as únicas opções de entretenimento eram uma igrejinha evangélica e os bate-papos entre vizinhos.
 
O isolamento social e o medo de não ter comida na mesa parecem ter levado os moradores à percepção generalizada de que, ali em Vila Nova, a saúde deve ser preocupação, mas não pode ser prioridade. Isso ficou claro na reportagem da Pública sobre um estudo que provou que mulheres da comunidade estavam contaminadas por mercúrio, substância comumente utilizada no garimpo de ouro. O estudo analisou amostras de fios de cabelo de mulheres da região de Vila Nova e de outras três localidades na Bolívia, Venezuela e Colômbia. As brasileiras apresentaram o segundo maior índice de contaminação por mercúrio.

Os empecilhos enfrentados na realização da pesquisa refletem outros problemas. Ouvimos relatos sobre graves ameaças às pesquisadoras em campo, maridos advertindo as esposas que colaboraram com o estudo, e tentativas de manipulação sobre o que aquele estudo científico representa. 

Embora sejam recorrentes relatos de abortos sem explicação e dificuldades respiratórias em crianças – problemas de saúde que podem ser causados pela contaminação pelo metal –, persistir na atividade de garimpo é o único meio de sobrevivência disponível às famílias da região. Chamar de “beco sem saída” pode parecer exagero, mas não há, hoje, quem indique outro caminho.

Os debates sobre riscos à saúde do mercúrio têm avançado, tanto que o Brasil promulgou em 2018 a Convenção de Minamata, que restringe o uso do metal no país. No entanto, após bater de porta em porta e encarar os semblantes tristes e, ao mesmo tempo, receptivos, é oportuno ressaltar que essas políticas devem ser acompanhadas de algo desejado intensamente pelas vítimas da contaminação: assistência.

Enquanto as mulheres do Vila Nova necessitam de mudanças imediatas, os ribeirinhos de comunidades pesqueiras de Pedra Branca do Amapari, município vizinho, esperam voltar à vida de antes. A rotina deles virou de ponta-cabeça depois que mais de duas toneladas de peixes mortos foram encontrados no rio Amapari, em novembro de 2021. Um relatório da Secretaria de Estado do Meio Ambiente apontou que as mortes estão relacionadas ao despejo de cianeto decorrente das operações de uma subsidiária da mineradora canadense Great Panther Mining Limited. 

Sem poder pescar nem realizar outras atividades básicas de quem mora nas margens de um rio, os moradores querem somente manter o pouco que conquistaram ao longo da vida e o direito de viver em paz. O impacto da tragédia foi tão grande que a conhecida tranquilidade daquela comunidade ribeirinha deu lugar ao barulho de protestos.

No dia seguinte à publicação da reportagem sobre o caso, os prejudicados pela morte dos peixes – um acontecimento inesperado mas não imprevisível – caminharam até a sede do Ministério Público da cidade. Com algumas faixas e muita revolta, os manifestantes cobraram ações urgentes para a reparação dos danos ambientais.

Apesar de duas situações distintas, os casos abordados na investigação da Pública se cruzam no tema mineração. Artesanal ou industrial, a exploração indiscriminada de ouro segue intensificando os efeitos do descaso social com populações em situação de vulnerabilidade na Amazônia.

 
Dyepeson Martins é jornalista, mestre em jornalismo e colaborador da Pública

Rolou na Pública

Mercúrio no Amapá. reportagem tema da newsletter de hoje, sobre mulheres contaminadas por mercúrio no Amapá, foi republicada por dez veículos, incluindo o Portal Geledés, o Brasil de Fato e o Jornal do Brasil.

Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na semana passada, revelamos que o Brasil será julgado por violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. A reportagem saiu também no Poder 360 e no Opera Mundi

Tem pautas? Agora é a hora. Na segunda-feira, abrimos as inscrições para a 14ª edição do nosso já tradicional programa de Microbolsas! Desta vez, nos juntamos ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e à Cátedra Josué de Castro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, para buscar ótimas pautas sobre alimentação e mudanças climáticas. Vamos distribuir 6 bolsas de R$ 8 mil. Conhece um repórter que sempre quis publicar uma investigação aqui na Pública? Envie o link do

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