quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Agência Pública

 


Nas últimas semanas, moradores do sul e do oeste da Bahia têm sofrido com fortes chuvas. Mas na maior parte do ano, a seca predomina no oeste do estado, onde fica o Cerrado baiano. Lá, enquanto o agronegócio obtém bilhões de litros de água para irrigar suas plantaçõesa população local sofre com escassez hídrica, como mostramos em uma série de cinco reportagens publicada no fim do ano passado. Na primeira newsletter de 2022, o repórter Rafael Oliveira conta os bastidores dessa investigação e reflete sobre as desigualdades e conhecimentos que marcam a região. 

Depois de um breve recesso, nossa redação está de volta à ativa para mais um ano em que o jornalismo investigativo vai ter um papel crucial nos rumos da nossa democracia. As reflexões dos Aliados sobre nosso trabalho nos instigam e inspiram, então fique à vontade para responder esse email com o seu comentário – que também pode ir para as Cartas dos Aliados! 

Abraços, 

Giulia Afiune
Editora de Audiências da Pública
No Cerrado baiano, resistir para existir
por Rafael Oliveira
 
Da janela do avião, já dava para visualizar o cenário que nos aguardava: cursos de rios, planaltos, trechos de vegetação nativa do Cerrado, intercalados com vastas áreas desmatadas, muitas delas tomadas por plantações de commodities como soja e algodão. Em terra firme, veríamos de perto os corpos d’água secos, o gado magro e ainda mais lavouras e desmatamento.

Desembarcamos em Barreiras, no oeste da Bahia, em um dia quente no meio de outubro de 2021. Era minha primeira viagem de campo pela Agência Pública, experiência pela qual eu ansiava e que vinha sendo adiada pelo caos pandêmico. Junto comigo, carregado de equipamentos, estava o fotógrafo José Cícero, videomaker e repórter da casa, que já acumula muitas “milhas” jornalísticas ao longo da carreira.

O caminho em direção àquela pauta havia começado quase um ano antes, nas pesquisas para uma nova fase do projeto “Amazônia Sem Lei”, que investiga quem são os responsáveis pela destruição da Amazônia e do Cerrado brasileiro. Dialogando com ONGs que atuam neste segundo bioma, tivemos um quadro inicial: os rios da região, fundamentais para abastecer o São Francisco, vinham perdendo o volume d’água, possivelmente em razão do desmatamento, da redução das chuvas e das grandes quantidades de águas superficiais e subterrâneas captadas para irrigação de vastas plantações.

Em um dos contatos que tivemos com especialistas, ativistas locais e atores públicos, recebemos um arquivo com todas as portarias autorizando captações de água nos rios da região entre 2018 e 2021. Isso nos permitiu fazer um mapeamento inédito de quem são os grandes usuários dos recursos hídricos do oeste baiano.

Durante semanas, eu e a Bianca Muniz, estagiária de dados da Pública, investigamos a fundo boa parte dos CPFs e CNPJs com autorizações para captar vultosos volumes de água de graça. Encontramos empresas tradicionais do agronegócio, outras sem praticamente nenhum registro na internet, herdeiros famosos – como os filhos do dono do frigorífico Marfrig – e até empresas multinacionais com capital aberto na Bolsa. Há, por exemplo, um empresário do setor de transporte que, sozinho, pode captar 466 milhões de litros por dia, o suficiente para abastecer toda a população de Salvador.

Na apuração, identificamos um grande grupo que domina boa parte da água usada para irrigação na região. São fazendeiros, famílias e empresas que ocupam cargos nas diretorias e conselhos das duas grandes associações do agro na região, a Aiba e a Abapa, e têm autorização para captar, sem custos, mais de 1,8 bilhão de litros diariamente. 

Nas conversas com as fontes, dois nomes apareciam sempre como os responsáveis pelo “libera geral” que favorece o agro local: um era o do vice-governador da Bahia, João Leão (PP), publicamente alinhado ao grupo. O outro era o da atual secretária de meio ambiente do estado, Márcia Telles, que, até o sábado anterior à publicação da série de reportagens, acumulava também a chefia do Inema, órgão responsável pelas autorizações de desmatamento e de captação hídrica no estado.

Os especialistas que ouvimos e os dados que reunimos foram fundamentais para entender a dimensão do problema e dar nome aos bois. Faltava, porém, ouvir de perto quem realmente está no olho do furacão, sofrendo com a escassez hídrica e as outras consequências do modo de produção do agro na região. 

Chegando no oeste da Bahia, entendemos como a falta de água afeta a vida e a renda dos moradores e também acabamos encontrando mais de uma dezena de especialistas. Não no sentido usual da palavra, que logo nos faz pensar em mestres, doutores, acadêmicos. A maioria das pessoas com quem falamos não tinha ensino formal. Algumas não sabiam ler, enquanto outras tantas foram alfabetizadas tardiamente. A despeito disso, o conhecimento jorrava.

São sabedorias que passam pelo uso de plantas medicinais e técnicas complexas de pescaria, mas que não param por aí. Esses ribeirinhos, agricultores e pescadores têm plena consciência dos impactos do desmatamento e das grandes captações de água do leito de seus rios, bem como do papel do agronegócio e do governo baiano nessa história.

Os moradores destas comunidades tradicionais sabem, acima de qualquer coisa, que é preciso lutar para garantir o Cerrado de pé e as águas correndo nos rios: “A gente acredita muito na luta, na resistência, em resistir para existir. A gente quer ficar no nosso lugar. É nosso modo de vida, levando em memória também os nossos antepassados, que sofreram, lutaram e resistiram para hoje nós estarmos aqui. Nós estamos nessa luta para garantir a permanência dessas futuras gerações no nosso território”, nos disse Aliene Barbosa, uma das lideranças locais.

Se há alguma chance de o Cerrado permanecer em pé nas próximas décadas, ela está nas mãos de lutadores e lutadoras como Aliene.
Rafael Oliveira é repórter da Agência Pública.

Rolou na Pública

Além das fronteiras. Em dezembro, uma de nossas reportagens sobre a COP-21 foi republicada por nosso parceiro francês Autres Brésils. Também na França, o jornal Courrier International repercutiu nossa investigação participativa sobre relatos de vigilância ideológica no ensino remoto. Nesta semana, a matéria que fizemos sobre armas perdidas ou extraviadas no Brasil foi republicada em espanhol pelo Interferência, do Chile. A Mongabay publicou uma lista das séries de reportagens transnacionais que marcaram 2021. Entre elas está a série Madeira Sem Rastro, projeto do Centro Latinoamericano de Periodismo de Investigación (CLIP), do qual participamos.

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