quinta-feira, 8 de setembro de 2022

A independência despercebida

 

Na iconografia oficial, entregue ao pincel de ­Pedro Américo, Dom Pedro I monta o cavalo branco de Napoleão. Eu conheço outra versão do evento que se deu nas alturas do ­atual bairro do Ipiranga, então invadido por um renque de bananeiras. De verdade, a montaria era um modesto, paciente muar. Dom Pedro almoçara na vivenda da Marquesa de Santos, no litoral, e partira logo após sem maior alarde. Os frutos do mar propiciados pelos escravos cozinheiros provavelmente eram infiéis, ou seja, não muito católicos, e o jovem soberano subiu a serra acometido por uma crise intestinal.

Protegido pelas bananeiras do ­Ipiranga, ele atendeu às injunções indesejáveis para livrar-se do impiedoso incômodo desrespeitoso da linhagem do imperador. Não se sabe por que Dom Pedro vinha a São Paulo, mas o lugar da proclamação é mesmo aquele. E se houver um vilão neste entrecho antes de Pedro, convém citar o pai Dom João VI, aquele que nunca tomava banho e disso se gabava. Ocorre que, quando as tropas bonapartistas do general Junot se aproximavam de Lisboa, o rei embarcou e transferiu a capital do império lusitano para o Brasil, primeiro em Salvador e, finalmente, no Rio de Janeiro.

Em vez do cavalo branco de Napoleão houve um muar - Imagem: Pedro Américo/Museu do Ipiranga/USP

Foi então que o Brasil se curvou aos pés da cultura francesa e vieram poetas e artistas de segunda linha para enfeitar a corte portuguesa. A proclamação, talvez gerada por um momento de irritação, para a população brasileira, incluindo uma maioria de escravos, não foi percebida. Não sabia aquele povo de escravos e cidadãos prepotentes de uma independência selada de inopino sem propósitos maiores em relação ao destino do país independente. É muito provável que a beleza e o encanto da paisagem, que séculos antes Americo Vespucci definira como cópia perfeita do paraíso, favorecessem um sentimento de paz e mesmo de beatitude a dominar a minoria branca, na origem das trágicas dicotomias, casa-grande e senzala e sobrados e mocambos, como Gilberto Freyre definiu com sua pena inspirada.

Ao longo de três séculos, cerca de 5 milhões de escravos foram abduzidos da África e submetidos ao domínio da chibata. Lançavam-se assim as sementes de um país irremediavelmente desigual, marcado brutalmente por um desequilíbrio social monstruoso, a gerar um verdadeiro, cruel destino do Brasil, entrave fatal para a modernidade e a ­autêntica democracia. Em lugar desta que tão frequentemente, e erradamente, enche as nossas bocas sem que a maioria tenha consciência das prepotências a que foi e é submetida. Este breve relato que nos leva de volta às alturas do Ipiranga, mais precisamente ao dia 7 de setembro de 1822, hoje celebrado com a pompa de um desfile militar.

Em lugar do povo temos público, advertia Lima Barreto - Imagem: Miguel Schincariol/AFP

Algo aconteceu, no entanto, como novidade sintomática: na assistência graúda neste ano notaram-se as ausências dos presidentes do STF, do TSE, da Câmara e do Senado, ou seja, dos representantes dos poderes da República. Não pairam dúvidas sobre a total ignorância de Pedro I e a sua proclamação tanto quanto à incapacidade de imaginar, ou intuir o que haveria em seguida. Dom Pedro desceu do seu muar com a urgência precipitada pela penosa situação a vexá-lo com a plausível ousadia de um mexilhão contaminado a se tornar fator de uma mudança histórica. Já dizia Lima Barreto: “O Brasil não tem povo, apenas público. Povo luta por seus direitos, público só assiste de camarote”.

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