Domingo passado, 2 de outubro, me desloquei até minha velha e conhecida seção eleitoral. Saí dos arredores do Centro e atravessei 50 quilômetros, de trem e ao longo de duas horas, até Inhoaíba, um pequeno bairro na Zona Oeste do Rio de Janeiro. É uma região rural de 60 mil habitantes que tem um dos piores índices de desenvolvimento humano da capital fluminense – ocupa o 115º lugar em um ranking de 126 bairros.
Toda a minha vida, até o ano passado, teve a Zona Oeste como plano de fundo. Bairros como Campo Grande, Paciência, Cosmos e Santa Cruz, com todas as suas peculiaridades, fazem parte da minha história. Por isso, eu já esperava que a onda bolsonarista fosse forte na região. Mas o retrato foi bem mais radical do que eu imaginava.
Enquanto esperava na fila, percebi que pessoas vestidas de verde e amarelo não se acovardaram em recitar mentiras que eram compartilhadas havia dias na internet. Os corajosos que se permitiam usar adesivos de candidatos de esquerda, ou roupas vermelhas, eram hostilizados.
Na Zona Oeste, as igrejas evangélicas estão enraizadas na vida local. A presença é tão forte que é comum ver mais de duas por quadra em bairros pequenos – enquanto não há serviços básicos como saúde, bancos e até mesmo escolas. Em algumas regiões, nem o saneamento básico chega. Mas a igreja está lá.
Eu já vivi essa cultura e por isso sei que, em dias de votação, era comum que a tradicional escola bíblica dominical, realizada desde a manhã até o comecinho da tarde, fosse cancelada. Não foi o que aconteceu desta vez. Vi muitas pessoas pessoas com Bíblias indo votar. O Intercept já mostrou que as Assembleias de Deus adotaram uma estratégia de ataque para o período eleitoral. Nesta semana, o jornal Folha de S.Paulo também revelou que, em São Paulo, a Assembleia de Deus ameaça punir fiéis de esquerda. Essa denominação é maioria na Zona Oeste carioca.
Essa realidade teve impacto nos votos? Bem, na minha seção, em que 484 pessoas estão aptas a votar, houve 251 votos para Bolsonaro e 96 para Lula. Para o governo do estado, Cláudio Castro, do PL, que marcou presença em eventos gospel dos últimos meses, teve 188 votos contra 50 de seu adversário, Marcelo Freixo, do PSB. Ou seja: apesar de a votação de Lula ter sido maior, em geral, em regiões periféricas e de menor renda, isso não aconteceu em Inhoaíba. Lá, o PT perdeu de lavada.
Enquanto as emissoras de TV exibem o mapa do Brasil com a dualidade vermelha e azul, eu via o mapa da cidade do Rio, onde bairros com os piores índices de desenvolvimento votavam em Bolsonaro e alguns mais abastados, como Laranjeiras e Tijuca, iam com Lula.
Ontem, o teólogo e pesquisador Ronilso Pacheco publicou no Intercept um texto sobre a distância dos analistas da realidade dos evangélicos. Para ele, a categoria demorou a ser levada à sério – e, em seguida, foi simplificada sem ser compreendida. "Enquanto isso, a extrema direita no Brasil ascendeu sem ser citada, debatida em rede nacional ou sequer entrevistada. Sem profundidade – não por incompetência, mas pela limitação imposta por um tema complexo do qual se sabia pouco ou nada –, os analistas se ativeram ao trivial", ele escreveu.
O que aconteceu? Segundo Pacheco, a vitória de Bolsonaro em 2018 fez o Brasil entrar para uma articulação global focada na família e nos valores cristãos conservadores. É um movimento que avança no país camuflado de conservadorismo "evangélico" ou "católico", mas é mais profundo e amplo – passa pelo conservadorismo dos EUA e por Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, um dos principais expoentes dessa nova extrema direita. "Não havia jornalistas e analistas para discernir as dissimulações da extrema direita e dar nome aos bois", lamentou o teólogo.
Para Pacheco, é preciso "conversar com a sociedade e desarmar esse arcabouço ideológico, desfazer a captura do sentido da vida pela extrema direita". "Enquanto ideologia, o nacionalismo cristão nem de longe está circunscrito aos evangélicos. Não é religião. É política, a pior delas", ele escreveu.
Eu concordo. As regiões dominadas por esse pensamento "moralizador", tão familiares para mim, são onde a extrema direita que se camufla como defensora desses valores se enraizou. Agora finalmente vejo comentaristas tentando explicar um fenômeno que é natural para o povo de Inhoaíba e tantos outros bairros pobres. Isso deixa claro como a realidade demora a ser percebida por um jornalismo que não é feito por ou para nós. Conheço bem Silas Malafaia, Marcos Feliciano e Eduardo Cunha, três dos maiores representantes dessa política descrita por Pacheco. Eles já estavam na minha casa muito antes de estarem nos jornais. |
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