sábado, 22 de outubro de 2022

ELE NÃO – PARTE III (O QUE LEVA MILHÕES DE PESSOAS A APOIAREM UM “LÍDER” POLÍTICO, COMO O SENHOR BOLSONARO, NUMA DEVOÇÃO QUASE CEGA?)

 

sáb., 22 de out. às 07:51
ELE NÃO – PARTE III
(O QUE LEVA MILHÕES DE PESSOAS A APOIAREM UM “LÍDER” POLÍTICO, COMO O SENHOR BOLSONARO, NUMA DEVOÇÃO QUASE CEGA?)

Aldemario  Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 21 de outubro de 2022

A indagação é recorrente e desafiadora: o que leva milhões e milhões de pessoas a apoiarem um “líder” político, como o senhor Bolsonaro, numa devoção quase cega? O questionamento ganha coloridos mais enigmáticos quando,  a toda evidência, não se identifica na dita cuja figura: a) um nível sequer normal de inteligência; b) alguma desenvoltura no campo da oratória; c) a realização de feitos administrativos ou militares; d) um caminho espiritual invejável; e) dotes nas áreas literárias, culturais ou esportivas e f) uma trajetória moral inspiradora.

A coisa fica mais delicada quando a idolatria descamba para comportamentos social e individualmente destrutivos ou negativos. Não são poucos os ataques verbais e físicos contra os “adversários”, incluídos amigos e familiares. Agressões com armas de fogo, resultando em mortes, são registrados pela grande imprensa. Abandona-se, com imensa facilidade, o senso crítico, notadamente sobre fatos e situações com contornos bem definidos. Negam-se afirmações científicas, inclusive históricas, construídas durante décadas por centenas ou milhares de cientistas e profissionais segundo padrões amplamente aceitos. Admitem-se como verdadeiras e são repassadas as fake news (mentiras, invenções) mais absurdas. Adotam-se projetos sociais e econômicos que claramente contrariam os interesses dos seus defensores.

Esse último aspecto merece destaque. Não são poucos os servidores públicos que apoiam, defendem e votam num “líder” responsável por uma proposta de enfraquecimento do serviço público e ataque aberto à profissionalização da Administração Pública (aumento do assédio moral, desvalorização do concurso público, estabilidade e autonomia técnica dos agentes públicos). Não custa lembrar que o senhor Paulo Guedes, ministro da Economia, já qualificou os servidores de parasitas e inimigos !!!! E não se trata de mera postura corporativista ou defensiva. Com efeito, a Reforma Administrativa da PEC n. 32/2020 compromete a eficiência e qualidade da prestação dos serviços públicos aos cidadãos, facilita o clientelismo e a corrupção e viabiliza a realização de vários interesses privados espúrios no âmbito do espaço público.

Existe uma célebre afirmação no sentido de que para todo problema complexo existe uma solução simples, porém, errada. Mutatis mutandis, para essa realidade complexa de apoio ao “mito” não existe uma explicação simples. Provavelmente, uma série de razões ou motivações, com maior ou menor intensidade, animam os apoiadores do “salvador da Pátria”.

Tentarei, com auxílio de um trecho de escrito anterior, inserido no livro “Por um Brasil livre, justo e solidário. Escritos contra a barbárie nos sombrios tempos de Bolsonaro”, apresentar, a meu juízo, a explicação básica para o “sucesso” do capitão. Também serão apontadas as principais motivações secundárias, ainda na minha visão pessoal, que concorrem para o apoio massivo ao atual inquilino do Palácio do Planalto.

Parece que existe um padrão de raciocínio, de forma de ver o mundo ou a realidade, que serve de base profunda para a construção do processo de apoio ao “messias”. Trata-se da mais arraigada dicotomia formatada e alimentada ao longo da história da humanidade. A redução pobre e rastejante da complexa e multifacetada realidade social para uma espécie de luta ou contenda entre o bem e o mal. Nesse sentido, as religiões, notadamente a católica e suas derivações, para o mundo ocidental, são fatores de enorme relevo. Nessa linha, o “pulo do gato” da maior eficiência da ação política consiste em conseguir rotular alguém ou uma instituição como a personificação do mal. O sucesso nessa empreitada abre um proveitoso caminho de identificações e apoios.    

O que fez Bolsonaro e os seus ideólogos (tudo indica como parte de um movimento internacional pautado pela intolerância)? Sem um esforço muito grande, até porque os erros e problemas são enormes, foi colado no Partido dos Trabalhadores e em Lula, seu principal líder, a concretização do mal nas terras tupiniquins. O partido e a pessoa são os instrumentos da venezualização, do comunismo, do gayzismo, da corrupção, da destruição das famílias, da liberação das drogas e do aborto, da associação com a criminalidade e com a pedofilia. Provas? Demonstração racional de tudo isso? Desnecessário. Basta a afirmação, reafirmação,  produção e disseminação de uma enormidade de mentidas e invencionices (as famosas fake news).

Estabelecido onde está o mal e quem o personifica, o caminho está pavimentado. Quem faz oposição ou se contrapõe ao mal é a expressão do bem. Tudo e todos são chamados a cerrar fileiras na guerra santa contra o mal. O convite, mais do que meritório, é de participar do mais nobre dos embates em favor de Deus, da Família, da Pátria e da Liberdade. Os defeitos ou problemas no “lado do bem” são tratados como mentiras, narrativas ou coisas irrelevantes diante do objetivo mais importante. E vale tudo contra os “comunistas” e seu “avanço cultural globalista”, até mesmo a associação parlamentar com o Centrão e seus métodos e objetivos angelicais. Também são vistas múltiplas conspirações em curso, alimentadas por organismos internacionais, adversários políticos e instituições.

Aliás, o maniqueísmo destacado funciona como uma excelente zona de conforto, preguiça ou incapacidade intelectual de ler, entender e interagir com um mundo crescentemente complexo e multifacetado. Com efeito, dá muito trabalho e exige muito esforço lidar com dados, argumentos, debates e formar opiniões e convicções próprias, alinhadas ou não com grupos ou movimentos já existentes. É mais fácil e mais cômodo aderir ao movimento do bem contra o mal.  

Considero, ainda, três motivações importantes para a idolatria ao “mito”. Primeiro, temos um longo convívio histórico com as violências simbólicas e físicas decorrentes da escravidão (quase quatro séculos) e das ditaduras no período republicano (várias décadas). As profundas marcas, de inúmeros tipos, deixadas pelo autoritarismo formaram uma base fértil para o bolsonarismo. Não são poucas as referências no sentido de que o “messias” é venerado justamente porque legitima e amplifica as distorções e preconceitos já presentes em milhões de pessoas (os “Bolsonaros” da família, da firma, do futebol, etc). Em segundo lugar, existe uma identificação populista com o “messias”. Ele se aproveita de uma profunda repulsa da maioria esmagadora da população à política e às instituições tradicionais, consideradas como as causas das grandes mazelas nacionais. Assim, o “mito” aparece (é só aparência) como um incansável cavaleiro que investe, tal qual Quixote, contra o sistema opressor. Terceiro, verificamos uma (justa, mas enviesada) indignação com a corrupção nos governos petistas. Não se percebe (ou não se quer perceber) que a corrupção brasileira é sistêmica e esteve presente em todos os governos, está instalada no atual e marcará presença no próximo (seja qual for ele). Enquanto a maioria dos eleitos forem useiros e vezeiros de práticas corruptas, os governos serão “forçados” a falar essa língua. Pergunta-se: como atua o Centrão no atual governo? Qual o partido do atual mandatário da Nação? Como são as práticas políticas conduzidas pela liderança do partido do Presidente da República? As respostas para essas perguntas são desconsideradas ou reputadas como de menor importância.

Sustentei, e sustento, que o “salvador da Pátria” antes de tudo é um bárbaro, um indivíduo que não compreende e não sustenta os valores mais elementares do convívio humano minimamente civilizado. Com efeito, além de outros, esses direitos fundamentais construídos duramente ao longo da história são continuamente desprezados ou afrontados pelo “mito” e seus seguidores: a) a dignidade humana; b) a liberdade de expressão (nos limites da ordem jurídica, pois não é ilimitada e álibi para a prática de crimes e transgressões, como a massiva disseminação de difamações e inverdades); c) o pluralismo político-ideológico; d) a integridade física e moral e e) a atuação do Poder Judiciário, segundo o direito posto, contra qualquer pessoa envolvida, ou suspeita de envolvimento, em ilícitos.

Não é válido, não é lógico, não é razoável, não é humano atacar e desconstruir, entre outros, esses valores e direitos fundamentais. Como defender a tortura e o estupro? Como apoiar a submissão de um ser humano absolutamente indefeso a todo tipo de sevícias físicas e morais? Como aceitar a afirmação de que uma mulher não seria estuprada porque não merece? Como defender a supressão física, pela violência aberta, daqueles que sustentam pensamentos diversos? Como não compreender e aceitar que todo direito é relativo e limitado por outros direitos ou direitos de outras pessoas humanas? Como desconsiderar solenemente a honra subjetiva e objetiva das pessoas? Como reduzir o debate político-ideológico ao nós contra eles (tirante nós, todos os outros são “comunistas”)? Como aceitar a alimentação insana dos preconceitos mais abjetos (contra negros, indígenas, mulheres e a comunidade LGBTQIAPN+)? Como admitir o ataque sistemático às instituições democráticas? Como aceitar o menosprezo pela vida humana e a inacreditável falta de solidariedade e empatia em relação à dor de familiares e amigos de vítimas do novo coronavírus? As perguntas poderiam continuar indefinidamente. São reflexos de uma mente, uma concepção, um projeto de sociedade baseado na intolerância, ódio, hipocrisia, preconceitos, discriminações e opressões de todos os tipos e de todas as magnitudes.

O inacreditável está presente diariamente no Brasil atual. A imprensa, organizações da sociedade civil e personalidades dos mais variados campos de atuação social gastam uma enorme energia para invocar os contornos civilizatórios mais elementares da vida em sociedade diante das contínuas presepadas presidenciais. Portanto, não é sem razão que a imagem do Brasil no exterior perde força e vitalidade continuamente desde janeiro de 2019.

É forçoso concluir que Jair Bolsonaro é a personificação de algo muito mais profundo e grave. O “messias” galvaniza tudo que existe de pior na sociedade brasileira. Os valores mais abjetos, as práticas mais censuráveis e os projetos socioeconômicos mais elitistas encontram um representante com rosto e nome em Bolsonaro. Um capítulo especialmente triste nessa história de terror e ódio é a indevida apropriação da espiritualidade e, mais especificamente do exemplo de Jesus, para produzir comportamentos e construir uma sociedade que escancaradamente afronta as mais importantes lições do Mestre dos Mestres. 

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