quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Agência Pública Os reféns do cercadinho

 

Os reféns do cercadinho
por Monica Gugliano 

 
Acompanhar esse governo foi como passar "cinco anos montados num touro mecânico que não parava". Essa foi a melhor definição que li sobre os anos da cobertura da Casa Branca de Donald Trump, proferida pela jornalista Amanda Mars, ex-chefe do escritório do El País em Washington. Tal qual o animal de verdade, o touro mecânico repete os movimentos desenfreados e a fúria que dirige a quem se atreve a montá-lo. Não está em jogo domar o animal. O peão vai cair. É só uma questão de tempo e de estilo na queda.

O mesmo acontece com a cobertura que os veículos de comunicação de todo o Brasil fazem do governo Bolsonaro. Ao longo dos últimos quatro anos, frequentemente nós jornalistas sentimos que estamos despencando do touro, entorpecidos pelos solavancos. 

Logo após assumir o cargo, Bolsonaro e sua “equipe de comunicação” – leia-se o "gabinete do ódio" – destruiu formalidades e regras que existiam há décadas, e assim mudou completamente a rotina dos profissionais de imprensa dedicados a informar a população sobre o governo federal. Eles esvaziaram os canais institucionais que existiam no Palácio do Planalto; hoje restam portas e mais portas de salas esvaziadas e tantos obstáculos que nem mesmo os mais audazes e destemidos repórteres conseguem ultrapassar. Aliás, agora não há mais o que ultrapassar. A Secretaria de Imprensa (SEI), com seus vários departamentos, que há várias décadas funcionavam no segundo andar do Palácio do Planalto, desceram para o subsolo da garagem. Permaneceram apenas as salas do Secretário e do Adjunto e a do Ministro das Comunicações, Fábio Faria, a quem, teoricamente, o departamento está subordinado. O restante do segundo andar foi ocupado pela expansão do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). 

Alguns podem até argumentar que locais físicos para trabalhar são coisas do passado. E são. Mas relegar essas instituições aos porões e tirar-lhes importância foi um golpe mortal no trabalho de dezenas de repórteres que por ali passaram, apurando e mostrando o que os governos de esquerda ou direita queriam e o que não queriam exibir. Sim, porque todos os governos, uns mais, outros menos e dependendo de sua índole, tentam controlar, cercear e estabelecer limites para o jornalismo. Coube sempre a nós, os profissionais, enfrentar, furar, driblar e escapar dessa vigilância, mesmo que às custas de escaramuças, cara feia ou até reprimendas das autoridades. 

O paradoxo é que, durante toda a administração, o atual presidente se queixou de que a imprensa não mostrava “coisas boas de seu governo”. Ainda que elas existissem, como poderiam ser noticiadas se não existia uma comunicação estruturada para mostrar as ações do Executivo?

A SEI é um território pouco amigável onde fica claríssima a "guerra aberta" que Bolsonaro mantém com a imprensa. Sobram militares e faltam jornalistas. Apenas alguns exemplos: o Secretário de Imprensa, André de Souza Costa, é coronel da Polícia Militar do Distrito Federal (DF). Seu adjunto, Anderson Vilela, também. O subsecretário de Articulação, José Luiz Kormann, é coronel reformado do Exército. Antes de exercer a função na SEI, foi secretário-adjunto do ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello. Quando o pior ministro da Saúde da história deixou a pasta e virou assessor da Presidência, Kormann foi nomeado para a SEI. Contraiu Covid-19 e esteve internado em uma UTI, o que não o impediu de ser um dos grandes propagadores da (falsa) eficácia do tratamento precoce com cloroquina.

A diretora do Departamento de Imprensa Internacional, a diplomata Gilsandra Clark, é uma das remanescentes da turma do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo e do assessor internacional do presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins. Na Secretaria, ela é chamada de Edna Moda, tamanha é a similaridade física que tem com a personagem da animação “Os Incríveis”, a modista que faz os trajes dos heróis do filme. Clark se juntou ao time da ultra-direita ainda durante a transição do governo, quando, junto com outros diplomatas discípulos de Olavo de Carvalho, foram esfacelados o organograma do Itamaraty e os pilares seculares da política externa brasileira.

Com essa turma em ação, foi aniquilada a chamada “comunicação de governo”. De suas cinzas nasceu a “comunicação de Bolsonaro”, montada, adequada e estruturada à sua índole. Na verdade, ela começou a funcionar muito antes da eleição de 2018. Desde sempre o capitão falou diretamente com seu público, seus eleitores e seus admiradores à sua maneira por meio dos canais que ele construiu. Não seria diferente quando chegasse ao mais alto cargo da nação. 

Para quê comunicação institucional se, ao sair do Alvorada nas primeiras horas da manhã, ele mesmo ditava o dissenso do dia? Anunciava alguma medida esdrúxula, xingava alguém, desqualificava outro – inclusive os próprios repórteres que ali estavam no chamado “cercadinho da imprensa”. Suas frases repercutiam o resto do dia e ninguém conseguiria mudar de assunto. Sua missão estava cumprida. Com o passar dos meses, inclusive o porta-voz do governo, o general Rego Barros – que lhe foi imposto pelos demais generais do Palácio do Planalto, acreditando que podiam controlar o que o ex-capitão dizia – caiu do touro por falta de utilidade.

Ficamos reféns do cercadinho, dos canais do presidente, das lives semanais, dos avisos no Twitter onde ele dizia o que queria, mostrava o que bem entendia e alimentava sua máquina de ódios, fake news e preconceitos. Não nos faltam exemplos. Um dos mais chocantes surgiu às vésperas do segundo turno, quando apareceram entrevistas em que ele se referia a adolescentes venezuelanas, dizendo que eram jovens fugidas da fome no país vizinho que, sem alternativas, se prostituíam no Brasil. Ao que se saiba, os veículos de comunicação não foram avisados e nem conseguiram acompanhar a visita que ele fez à casa das jovens, onde ele decidiu parar em um dos passeios de moto que costuma fazer. Sem saber exatamente o que tinha se passado ali, os repórteres viram a live que ele transmitiu, registraram que Bolsonaro havia estado na casa e o que ele falara. Essa foi a comunicação estabelecida por Bolsonaro para a cobertura do Palácio do Planalto. Ou você aceita o que ele oferece ou você não terá nada.

Neste governo, quem tinha o “privilégio” de conhecer os bastidores da vida presidencial era quem estava na Jovem Pam, no SBT – a emissora de Silvio Santos, cujo genro é o ministro das Comunicações –, na Record e nos demais veículos que afagam o presidente sem pudor.

É certo que, se ampliarmos a cobertura jornalística em Brasília para além do Palácio do Planalto, grandes reportagens e furos foram dados neste período de trevas, apesar das dificuldades financeiras pelas quais passam os veículos de comunicação. Como não citar a investigação sobre a disseminação de fake news e da manipulação das redes sociais da Patrícia Campos Mello, na Folha de S.Paulo; do orçamento secreto, revelado pela equipe do Estadão; da revelação do site Metrópoles, mostrando que o então presidente da Caixa Pedro Guimarães assediava as funcionárias; e de tantas outras reportagens feitas pelo Globo, Valor Econômico, Piauí, e pela Agência Pública.

Passada a eleição, creio que deveremos fazer uma reflexão sobre o que foi a cobertura jornalística da presidência de Jair Bolsonaro e por que nos deixamos tragar pelos seus factoides. Por que nunca pensamos em reagir, em protestar? E por que repórteres e comentaristas se tornaram protagonistas das notícias narrando tudo sempre na primeira pessoa?

Ainda durante a ditadura, no dia 24 de janeiro de 1984, os repórteres fotográficos proibidos de registrar e acompanhar as atividades no gabinete do presidente João Baptista Figueiredo – o último general que governou o Brasil – organizaram um protesto contra a censura e a favor da liberdade de imprensa ao pé da rampa do Palácio do Planalto. Quando Figueiredo desceu a rampa, todos eles deixaram suas câmeras no chão, assistindo à passagem do presidente com os braços cruzados. A cena só teve um registro, do fotógrafo J. França, e toda a história foi contada no belíssimo documentário “A Culpa é da Foto”, de André Dusek, Eraldo Peres e Joédson Alves.

Não creio que exista um único repórter que tenha passado pelo Palácio do Planalto e não se emocione ao ver o filme. Tampouco creio que exista um único repórter com essa trajetória que não tenha histórias para contar e lembrar que devemos resistir e manter as rédeas firmes para não cairmos do touro. Sempre existiram esses momentos de resistência em que driblamos e enfrentamos os obstáculos que nos cerceavam. Entre muitas, gostaria de dividir com você uma lembrança.

Durante o governo Dilma, a repórter sênior e setorista do Palácio do Planalto do Estadão, Tânia Monteiro, em Brasília, pedira inúmeras vezes uma entrevista exclusiva com a presidente. O Estadão nunca foi um veículo simpático aos governos petistas e Dilma, por natureza bastante arredia a entrevistas em geral, recusava sempre o pedido da repórter. Nessa época, Dilma saía do Alvorada para pedalar por volta das 6h. Com um ou dois seguranças por perto, a presidente fazia diferentes trajetos, mas não deixava de praticar o esporte. 

Durante quatro dias, antes das 6 horas da manhã, Tânia resolveu pegar sua bicicleta e junto com um dos grandes repórteres fotográficos do país Dida Sampaio, precocemente falecido este ano, iam até o Alvorada para esperar a presidente. Nos três primeiros, não deu certo. No quarto, Dilma os viu montados nas bikes, sorriu e os convidou para acompanhá-la no trajeto, seguindo de um café da manhã no Alvorada e, evidentemente, da entrevista. 

O episódio mostra que, sob qualquer governo, nós, a imprensa brasileira, podemos até nos desequilibrar e cair. Mas, se isso acontecer, nos levantamos, sacudimos a poeira, e damos a volta por cima. 
Monica Gugliano é repórter colaboradora da Agência Pública.

Rolou na Pública
 

Incentivo a crimes no Telegram. Na semana passada, revelamos a existência de grupos no Telegram que têm sido utilizados para incentivar crimes e atentar contra a democracia. A reportagem reproduziu diálogos em que Jackson Villar da Silva – evangélico que se intitula comerciante, radialista, conservador, presidente do “Acelera Para Cristo”, e que organizou uma motociata com o presidente Jair Bolsonaro em junho de 2021 – fala em “quebrar esquerdistas no cacete” e “quebrar a urna eletrônica no pau”. A reportagem foi republicada no UOL, no Nexo, na Revista Cenarium e no Brasil 247. Após a publicação, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que o Telegram retirasse do ar dois grupos citados na reportagem da Pública.

Não vamos nos calar e não estamos sozinhos. Também após a publicação da reportagem, uma fonte encaminhou à Pública novos áudios postados no Telegram, alertando sobre ameaças de violência física e ofensas ao jornalista que apurou a reportagem e sobre uma ação orquestrada para derrubar os perfis da Agência Pública nas redes sociais. Recebemos o apoio de diversos jornalistas e de organizações como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJPSP) e a Folha de S. Paulo.

Bloqueio articulado. Durante o período que antecedeu o 2º turno, chamados de paralisação de caminhoneiros circularam em grupos bolsonaristas, como revelamos nesta reportagem. As mensagens mostram que os extremistas traçaram ao menos dois cenários antes mesmo da eleição acontecer: realizar a paralisação nas semanas anteriores à votação ou logo após a divulgação dos resultados, no que já chamavam de “contra-golpe”. A reportagem foi republicada no UOL e na Carta Capital

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