ELE NÃO – PARTE IV
(REVENDO A IDEIA DE QUE A OPÇÃO LULA SERIA A MELHOR PARA AS ELITES BRASILEIRAS)Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 28 de outubro de 2022
Afirmei, em inúmeros escritos, que o processo eleitoral consiste fundamentalmente na escolha de representantes (e defensores/viabilizadores) dos interesses socioeconômicos mais importantes existentes na sociedade.
Questões religiosas, morais, comportamentais, defesa de certas instituições e características pessoais são aspectos importantes, mas evidentemente secundários ou laterais. Ser mais ou menos religioso, ser mais ou menos mentiroso, ser mais ou menos honesto, defender mais ou menos a família ou a Pátria são exemplos de debates ou discussões que lançam uma cortina de fumaça sobre o que está verdadeiramente em jogo.
O principal conflito existente em qualquer sociedade minimamente organizada se desenvolve em torno da apropriação da riqueza produzida. Consciente ou inconscientemente, as pessoas, grupos, setores ou classes assumem posições políticas que definem concentrar ou ampliar, numa redução didática das hipóteses a dois caminhos, a distribuição do resultado das atividades econômicas.
O Brasil é uma das sociedades mais desiguais do mundo com altíssimos índices de miséria e pobreza. Esse triste cenário não é fruto do acaso ou da corrupção (como muitos pensam erroneamente). Ao longo do tempo foram construídos e institucionalizados, especialmente na ordem jurídica, mecanismos e instrumentos que concentram fortemente a riqueza produzida nas mãos de uma minoria de privilegiados (0,1% da população, ou menos). Um dos mais emblemáticos resultados desse quadro é a quantidade de recursos brasileiros em paraísos fiscais. Informações jornalísticas da BBC News Brasil, em 2012, com base no documento “The Price of Offshore Revisited”, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, indicam que os “ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais”. Essa montanha de recursos somava 520 bilhões de dólares em 2010.
Durante um bom tempo acreditei que a opção Lula seria a melhor para as elites brasileiras nas eleições de 2022. Afinal, os mais relevantes mecanismos e instrumentos de concentração de riqueza permaneceram praticamente intocáveis nos governos Lula e Dilma. Essa “estória” de Lula comunista ou socialista é coisa para engambelar ignorantes e todo tipo de pessoa medrosa (até da própria sombra). A mínima redistribuição de renda promovida por esses governos socialmente mais sensíveis nem arranharia, como não arranhou, as poderosas estruturas de acumulação de riqueza das grandes elites e, ainda, se ganharia, como ocorreu em passado recente, um discurso de legitimação com feição popular. Como disse Maquiavel: “… vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite” (fonte: livro clássico “O Príncipe”).
Nos últimos tempos mudei significativamente a percepção referida. As elites brasileiras, herdeiras de quase quatro séculos de escravidão, são profundamente insensíveis. Nosso capitalismo é selvagem, preconceituoso, discriminador e opressor. Ele está visceralmente assentado em vários tipos de violências físicas e simbólicas. Portanto, a alimentação da barbárie integra o imaginário e as práticas dos donos do Brasil. Um capitalismo mais humano ou civilizado não é necessário um desejo ou projeto de boa parte (a maior parte?) dos grandes beneficiários da concentração de renda e poder.
Noam Chomsky, um dos maiores intelectuais da atualidade, afirmou recentemente: “Raramente vi um país onde elementos da elite têm tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador. É enraizado. (…) Você tem uma das pessoas que atualmente está empenhada em destruir o Brasil, Paulo Guedes é um grande expoente disso”. O rebaixamento dos mais pobres, através da política de Guedes, favorece a manutenção das classes dominantes no poder, é a conclusão do professor (fonte: sindijufe.org.br).
A opção Bolsonaro, não obstante tudo que esse ser possa encarnar de repugnante, parece ser o melhor caminho para os super-ricos brasileiros. Essa via, com as condições políticas viabilizadas por um Congresso extremamente retrógrado, permite manter e aprofundar os mecanismos e instrumentos de concentração de riqueza nas mãos de uma meia dúzia de brasileiros.
Nesse sentido, a análise do discurso e das propostas de Paulo Guedes, mencionado por Chomsky, são emblemáticas. O ministro da Economia do Senhor Bolsonaro: a) falou em privatizar todas as empresas estatais; b) propôs eliminar o modelo histórico de previdência do INSS com sua substituição por contas de capitalização a serem geridas pelo sistema financeiro privado; c) destilou explicitamente preconceito contra os setores socialmente mais humildes, como as empregadas domésticas; d) qualificou os servidores públicos de inimigos e parasitas; e) abandonou a política de ganho real do salário mínimo; f) estuda o fim da dedução de educação e saúde do imposto de renda; g) apresentou proposição de adiamento do pagamento de precatórios e h) encaminhou proposta de auxílio emergencial de duzentos reais mensais. Sintomaticamente, não são “lembradas” medidas para, entre outros: a) combater o rentismo (com as maiores taxas de juros do mundo e altíssimos níveis de endividamento); b) limitar a especulação financeira; c) submeter a administração da dívida pública a controle social; d) reduzir subsídios e benefícios fiscais excessivos; e) atuar contra a sonegação fiscal; f) promover uma tributação progressiva com justiça social; g) racionalizar a formação de reservas monetárias; h) controlar as operações compromissadas e i) minimizar o modelo exportador de commodities.
Uma palavra sobre a democracia, continuamente ameaçada pelo projeto bolsonarista de poder. O regime político de amplo exercício das liberdades e direitos humanos fundamentais é o ambiente indispensável para a implementação de qualquer rumo socioeconômico. Em especial, para a superação de desigualdades e opressões o ambiente democrático é essencial para viabilizar níveis crescentes de organização, mobilização e conscientização políticas dos segmentos populares protagonistas dessas mudanças.
Portanto, não bastasse o critério civilizatório (contra a barbárie bolsonarista) e o critério democrático (contra o autoritarismo bolsonarista), a opção Lula, com as enormes limitações, defeitos e contradições, cria um ambiente que não é o mais favorável para o aprofundamento dos mecanismos e instrumentos de produção de pobreza, desigualdades e opressões. Alguma resistência política pode ser arregimentada contra o avanço das profundas desigualdades sociais brasileiras e apontar a bússola do País no rumo de construir uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável.
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