terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Agência Pública : A tragédia anunciada em Brasília foi semeada nos EUA


Exatamente uma semana após a posse de Lula, assistimos, estarrecidos, à invasão e destruição dos prédios públicos que abrigam os Três Poderes que constituem a democracia brasileira. Movidos por mentiras e encorajados pelo ódio nutrido nos últimos quatro anos, os golpistas promoveram um dia de terror na capital federal, que constratou com a festa que havia se desenrolado no mesmo local apenas uma semana antes.

As imagens de destruição, o grau de violência e o momento da invasão podem ter nos supreendido, mas esta era uma tragédia anunciada há bastante tempo. Na newsletter de hoje, a Bárbara D'Osualdo, nossa coordenadora de parcerias internacionais, relembra as reportagens da Pública que já davam sinais de que os bolsonaristas estavam tramando a versão brasileira da invasão ao Capitólio, inclusive com a orientação de lideranças da extrema-direita americana. 

Aliás, entre os documentos sigilosos do governo Bolsonaro provavelmente há muitas pistas sobre os planos que culminaram nos atos golpistas em Brasília. Por isso, abrir a caixa-preta do último governo é mais importante do que nunca e temos só mais 2 dias para atingir nossa meta. Você pode nos ajudar compartilhando a mensagem no fim desta newsletter ou, se possível, aumentando sua contribuição para a Pública. Se quiser, é só responder este email com seu pedido. 

Como você analisa as invasões em Brasília e que desafios teremos daqui pra frente? Compartilhe sua opinião respondendo esta newsletter. Algumas mensagens irão para as "Cartas dos Aliados" da próxima edição. 

Abraços, 

Giulia Afiune
Editora de Audiências da Pública
A tragédia anunciada em Brasília foi semeada nos EUA
por Bárbara D'Osualdo

Após o atordoamento inicial causado pela invasão do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto no último domingo, respirei fundo e, como me acostumei a fazer nos últimos quatro anos, fui logo ver qual seria a reação da imprensa gringa a mais um episódio infame que levava o Brasil às capas de jornais do mundo todo.

Às diversas matérias iniciais noticiando apenas os fatos ocorridos em Brasília naquele dia, seguiram-se, como de praxe, artigos que buscavam contextualizar a situação para seus leitores que, geralmente, não acompanham muito o que se passa no Brasil – especialmente aqueles de países ricos do Norte global, mais distantes geográfica e culturalmente. A comparação com a invasão do Capitólio, quase exatamente dois anos antes, era figura repetida.

No site de uma emissora de rádio pública da França, onde moro há algum tempo, me deparei, por exemplo, com um artigo publicado na segunda-feira que começava com a seguinte observação: "os eventos que sacudiram o Brasil no domingo, 8 de janeiro, lembram curiosamente o ataque ao Capitólio americano por parte de militantes pró-Trump em 6 de janeiro de 2021".

Não sei dizer se esse "curiosamente" era figura de linguagem ou uma demonstração genuína de surpresa por parte do jornalista. A julgar pela minha experiência, muitos de seus leitores provavelmente ficaram espantados com as recentes notícias vindas do Brasil, ainda que fosse uma espécie de déjà vu.

Digo "pela minha experiência" porque me lembro das reações de amigos quando eu mencionava em alguma conversa estar ansiosa com as eleições brasileiras, com tudo o que estava em jogo e com a escalada da violência no país no decorrer do período eleitoral. Apesar de não faltar notícias sobre isso na imprensa francesa, era comum que meus interlocutores admitissem que nem sabiam que haveria eleições no Brasil naquele ano ou perguntassem quem estava disputando a presidência. 

"Quem é o presidente brasileiro mesmo? Bolso… o quê?", perguntavam, causando em mim uma instantânea inveja e a sensação de que, embora morássemos no mesmo país, vivíamos realidades completamente diferentes, acompanhada de um certo grau de solidão. Para estes, "Bolsonarrô" (como pronunciam os franceses) é mais uma figura mítica (com o perdão do trocadilho), quase inverossímil, conhecido por alguns comportamentos ou falas absurdas que repercutiram por lá – como quando ofendeu a esposa do presidente francês por sua aparência, após ter sido criticado e cobrado pelos incêndios na Amazônia.

Mas, sendo justa, os atos golpistas deste domingo também devem ter pegado parte da população brasileira de surpresa. Mesmo figuras da mídia e da política que criticavam o antigo governo chegaram a minimizar os riscos do bolsonarismo e o que estava em jogo nas últimas eleições. Não foi por falta de alerta – como você que acompanha a Pública bem sabe.

Apesar de ultrajantes, enojantes e tantos outros possíveis adjetivos, para nós aqui da Pública, as imagens a que assistimos no último domingo, infelizmente, não foram surpreendentes. A invasão e depredação das sedes dos três poderes em Brasília por uma horda de bolsonaristas avessos à democracia era uma tragédia anunciada que foi se desenhando ao longo dos últimos quatro anos.

Desde o início do governo Bolsonaro, investigamos as relações entre o bolsonarismo e a extrema direita americana, cuja atuação levou à invasão que seria imitada aqui no Brasil.

Ainda em 2019, revelamos, por exemplo, que uma organização evangélica americana que ensina governantes a usar a Bíblia para justificar políticas de ultradireita, financiada pelo então vice-presidente dos EUA, acabara de aportar no Brasil e buscava conduzir estudos bíblicos junto a Bolsonaro e seus ministros. Mostramos também como emissários evangélicos de Trump atuaram para mudar a embaixada brasileira em Israel.

No início de 2021, mostramos que influenciadores bolsonaristas investigados no inquérito dos atos antidemocráticos endossaram a invasão do Capitólio com lives e postagens inflamadas nas redes sociais, "trazendo" o conflito americano para o Brasil e já preparando a narrativa de fraude caso Bolsonaro fosse derrotado no ano seguinte.

Ainda nessa mesma linha, mostramos mais recentemente, com base em longas investigações, as ações mútuas do trumpismo e do bolsonarismo para influenciar a opinião pública sobre as eleições no país do outro. Revelamos que houve um movimento coordenado de influenciadores bolsonaristas para apoiar a reeleição de Trump e, após sua derrota, reforçar a narrativa de fraude naquele pleito. Em 2022, foi a vez dos trumpistas de fazerem campanha por Bolsonaro e espalharem a ideia de que as eleições brasileiras haviam sido fraudadas – antes mesmo do fim da contagem dos votos –, como mostramos em outra reportagem

Mesmo após o fim das eleições e a vitória de Lula, aliados de Trump continuaram a estimular essa narrativa. Foi Steve Bannon quem lançou o termo “Brazilian Spring”, que se tornaria uma hashtag popular entre os bolsonaristas, chegando aos tópicos mais comentados no Twitter brasileiro durante os bloqueios golpistas de estradas em novembro. O termo foi usado também em tuítes que combinavam a invasão da Praça dos Três Poderes.

Além disso, levantamos que, nos últimos cinco anos, Eduardo Bolsonaro participou de pelo menos 77 encontros e eventos com representantes e lideranças da ala política conservadora dos EUA, incluindo Donald Trump e sua família, e traçamos a rede de relações de Eduardo Bolsonaro com a extrema direita americana. Não é coincidência que Bolsonaro tenha escolhido os Estados Unidos como refúgio dois dias antes do fim (oficial) de seu governo.

O bolsonarismo vem copiando as táticas golpistas de Trump – detalhadas ponto a ponto nesta reportagem da Pública – desde a eleição de 2018 e não dá sinais de que deve parar. A abalada democracia brasileira tem um árduo caminho de reconstrução pela frente, e a Pública seguirá investigando aqueles que a ameaçam.

Os ataques golpistas em Brasília só fortalecem a nossa convicção no papel do jornalismo investigativo e na necessidade de escancarar a caixa-preta do Bolsonaro. Acreditamos que ela ainda esconde muitas informações de interesse público que podem nos ajudar a trazer à luz muito mais histórias como essas que listei. E o apoio dos nossos Aliados é imprescindível para conseguirmos realizar essa missão.

 
Bárbara D'Osualdo é coordenadora de parcerias internacionais na Agência Pública

Rolou na Pública
 

“Festa da Selma”. No domingo, quando bolsonaristas invadiram e depredaram prédios na Praça dos Três Poderes, em Brasília, nossa equipe revelou em primeira mão que o código “Festa da Selma” foi usado para coordenar a invasão nas redes sociais. A reportagem foi republicada pelo Poder360Revista GalileuOpera MundiRevista Ópera e a versão em espanhol saiu no chileno Interferência, no peruano Convoca e no argentino Infobae. A história foi também repercutida pelo New York Times, pelo jornal La Republica, do Peru, pelo site argentino Chequeado, em artigo publicado no italiano Giornalettismo e por sites brasileiros como portal Metrópoles e TecMundo.

Invasões e sigilos. A diretora-executiva da Pública, Natalia Viana, tem dado muitas entrevistas nos últimos dias sobre os acontecimentos de domingo e também sobre nossa série de reportagens sobre os sigilos do governo Bolsonaro. Ela participou do programa "Almoço" do canal MyNews, falou com o ICL Notícias, o BBC World Service e no The Mehdi Hasan Show, programa de TV dos Estados Unidos. Natalia também teve artigo publicado no site latino-americano ALAI.

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