quinta-feira, 10 de abril de 2014

A República exige autocrítica

A República exige autocrítica

Roberto Amaral*

As circunstâncias externas muitas vezes ensejam golpes de Estado, como certifica o legado da Guerra Fria, recentemente reaquecida com o putsch conservador que instalou na Ucrânia um governo protofascista, sob os auspícios dos EUA e da União Europeia.

Na verdade, esse ‘golpe’ foi simplesmente uma manobra estratégico-militar de Obama-Merkel contra o sonho de reunificação, sob a bandeira da Federação Russa, dos territórios perdidos com o desmantelamento da URSS.

A projeção da geoestratégia das potências centrais sobre a vida dos países periféricos é fato objetivo, mas não encerra a verdade toda, porque há, também, processos autônomos, ou, pelo menos, primariamente autônomos.

A experiência brasileira de rupturas constitucionais e agressões à democracia representativa observa peculiaridades porquanto inicialmente gestada em nossas entranhas pela associação da caserna reacionária com a direita civil que, no Brasil e no mundo, jamais teve compromissos com a democracia, as liberdades e a via institucional. Esta existe tão-só para ser fraturada, e a democracia é invocada tão-só quando é preciso destruí-la. Assim, em nome da democracia brasileira - supostamente ameaçada pela ‘república sindicalista’ de Jango – as liberdades foram cassadas; em nome da defesa da Constituição - pretensamente ameaçada pelas ‘reformas de base’- a legalidade foi destroçada e instalou-se uma ditadura, por definição sangrenta. O divisor de águas é a sede dos interesses da classe dominante, eternamente presa à casa-grande, e eternamente temerosa dos rumores que partem da senzala. A emergência das massas, em qualquer nível, seja a organicidade, seja a ascensão social ou cultural, é, para as ‘elites’ alienadas, uma dessas ‘ameaças’ que precisa ser contida.

O mandarinato militar que se seguiu ao golpe de 1964 não tem história própria, pois produto de um processo social, mas suas características foram seguidamente alteradas no curso de seus longos 21 anos, como o atestam o discurso de posse do primeiro general presidente, e o ato institucional que se pensou único. Ele é a decantação de práticas e culturas reacionárias de nossa oficialidade e de nosso empresariado e da ideologia do anticomunismo, importada da Guerra Fria. Na verdade, a intentona de 1964 – este seu nome — começou a ser maquinada já em 1961, como declara o gal. Denis em suas memórias (Ciclo revolucionário brasileiro. Editora Nova Fronteira, 1980), com a autoridade que deriva de sua vida de insurgente e golpista, filho da tradição mais reacionária do ‘tenentismo’ que produziu Cordeiro de Farias, Juarez Távora e Eduardo Gomes, os mais notáveis, ao lado de figuras menores embora igualmente deletérias, como Filinto Muller e Juracy Magalhães, conspiradores remunerados pelo erário. Aliás, a história militar republicana é um rosário de levantes, de 1922 a 1964, passando pela ‘revolução’ de 30 e os golpes de 1932 e 1935. A ruptura consequente da condução vargo-castilista do movimento de 1930 divide politicamente os ‘tenentes’, mas não os afasta do golpismo que vai caracterizar a presença militar na história republicana.

Os golpes de Estado, comandados quase sempre pelas mesmas lideranças, voltam-se ora contra Vargas, como em 1932 (putsh da aristocracia cafeeira paulista) e em 1935 (levante comunista), ora para entregar-lhe o poder absoluto, como em 1937 (derruimento da Constituição de 1934 e instauração do ‘Estado Novo’), como na repressão aos comunistas e putsch integralista de 1938; até de novo atacá-lo (deposição de 1945), para, afinal, levá-lo ao suicídio (1954).

O episódio conhecido como 11 de novembro de 1955 é emblemático: de um lado, os generais que articulam um golpe para impedir a posse de Juscelino (que simbolizava o retorno do varguismo sem Vargas), de outro os que de fato executam o golpe (a deposição de Café Filho e Carlos Luz, via Congresso) para assegurar, em nome da legalidade, a posse do presidente eleito.

Sem minimizar a importância do apoio, inclusive logístico, dos EUA, entendo como prioritário, no momento, discutir a participação daqueles outros autores, mais ou menos relevantes, que permanecem ativos em nossa vida política, e, portanto, em condições de fazer História.

As esperanças da direita civil e militar de conquista eleitoral da presidência haviam malogrado com a renúncia de Jânio Quadros e sua frustrada tentativa de golpe, para serem reacendidas com o veto dos ministros militares à posse de seu sucessor constitucional. O levante popular, liderado pelo então governador Leonel Brizola, desfez em dias o planejamento de anos e trouxe para o proscênio a mobilização das massas. Foi a mais contundente derrota do militarismo no Brasil. O retorno à caserna não significaria, porém, a assimilação do desfecho desfavorável da crise por eles mesmos, militares, criada.

Antes de tomar posse, Jango estava condenado à deposição.

Enquanto o deputado e depois governador Carlos Lacerda tentava mobilizar a opinião pública, conspiradores contumazes como os marechais Cordeiro de Farias e Juarez Távora, com o concurso de figuras então menores como o cel. Golbery do Couto e Silva, trabalhavam os quartéis. A guerra ideológica era liderada pelos grandes jornais, à frente de todos O Estado de São Paulo e O Globo (que ganharia seu primeiro canal de televisão no governo Jango) cujos donos seriam figuras preciosas nas relações com grande empresariado e, só então, nos primeiros contatos com o governo dos EUA. Nascem o IPES e o IBAD, o primeiro reunindo empresários, militares e intelectuais orgânicos da direita, o segundo corrompendo o processo eleitoral

Jango unifica os conspiradores não quando ‘quebra a hierarquia militar’ comparecendo a uma assembleia de sargentos, mas quando opta pela radicalização nacionalista e o apoio popular, dos trabalhadores, mas igualmente dos estudantes, dos operários e dos camponeses. Para a classe dominante brasileira é intolerável o que lhes possa parecer cheiro de povo. Com esse povo compartilhar o poder, jamais. E é desse então o fortalecimento do movimento sindical e o ensaio das primeiras centrais. O movimento estudantil é liderado por uma União Nacional dos Estudantes legitimada pelo apoio de suas bases; surgem os Movimentos Populares de Cultura, e os primeiros governos estaduais progressistas, como o de Miguel Arraes em Pernambuco, sede das primeiras Ligas Camponesas e dos primeiros confrontos com o latifúndio. Fala-se em Reforma Agrária e em limitação das remessas para o exterior dos lucros das empresas estrangeiras, pleito ainda hoje atual. Os estudantes querem reforma universitária, o governo erradicar o analfabetismo, em sintonia com a Revolução Cubana, que mobiliza as massas e assusta o capitalismo caboclo. O governo reclama as reformas de base e de uma forma ou de outra o país se transforma numa grande assembleia que discute seu destino. O povo começa a acreditar no seu poder de escrever sua História.

Faltava ao governo, porém, aquela correlação de forças político-militares necessária para dar sustentação a tal política, e, no plano internacional, a Crise dos Mísseis (1962) trouxera para a América Latina os holofotes da Guerra Fria. Nessa contingência era fácil aos conspiradores apresentarem o próprio governo como subversivo, responsabilizado pela iminente implantação ora de um regime castrista, ora de uma república sindicalista, falácias que, no entanto conquistavam adeptos e recursos.

O resto é simplesmente consequência, história contada e história sabida.

Essas notas não pretendem reduzir a importância do papel exercido pelos EUA no planejamento do golpe, na sua irrupção, na sua consolidação e em sua sustentação, general por general, até seu último vagido, nada obstante os estranhamentos com o governo Carter, retoricamente preocupado com a violação dos direitos humanos. Trata-se de história comprovada em fatos e documentos. Não padece dúvidas.

É preciso, porém, discutir atores nacionais como a grande imprensa e setores do grande empresariado. A grande imprensa foi decisiva na mobilização da classe-média contra o governo e na defesa aberta do golpe. Passaram para a história como antológicos e paradigmáticos os editoriais do Correio da Manhã, as campanhas dos ‘Associados’, o papel das emissoras de rádio do Rio e de São Paulo. A manipulação dos fatos, trabalhando a realidade em função de objetivos ideológicos, o jornalismo de campanha encontram seu melhor momento na linha editorial do O Estado de São. Paulo e de O Globo, inexcedíveis na preparação do golpe e, mais tarde, na sua sustentação. No fundamental, e eis a tragédia, e eis o que preocupa, a grande imprensa, passados tantos anos, continua presa a uma Guerra Fria extinta, permanece ideologicamente dependente dos centros hegemônicos, e por isso mesmo a serviço da ideologia da submissão, contra os interesses nacionais sempre que esses são confrontados com os interesses do centro hegemônico. E, hoje como ontem, contra a emergência das grandes massas.

A República exige dessa imprensa sua autocrítica, pelo papel que exerceu na preparação do golpe, na sua sustentação e no silêncio cúmplice diante da tortura e dos assassinatos, que agora reconhece por não mais poder negá-los. O diploma de conivência foi outorgado à nossa imprensa pelo mais luciferino de nossos ditadores: "Sinto-me feliz [dizia o general Médici] todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal [Jornal Nacional, da Rede Globo]. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho".

A recente autocrítica do jornal O Globo, admitindo haver errado ao apoiar o golpe, deve ser bem recebida, é, por enquanto, puro discurso retórico, mas é assim mesmo algo melhor do que o silêncio das Forças Armadas.

A honra da República exige das Forças Armadas sua autocrítica, pelo crime da ruptura democrático-constitucional, pelas torturas e pelos assassinatos que perpetrou em instalações do Estado e pelos crimes que ensejou, praticados pelas mãos de agentes terceirizados. Exige que as Forças Armadas, como instituição renunciem à cumplicidade com os criminosos e ajudem as autoridades na apuração dos crimes.

Estes são os dois primeiros passos para a verdadeira reconciliação nacional.


*Roberto Amaral é cientista político 

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