Roberto Amaral*
As circunstâncias externas muitas vezes ensejam golpes de Estado, como
certifica o legado da Guerra Fria, recentemente reaquecida com o putsch
conservador que instalou na Ucrânia um governo protofascista, sob os auspícios
dos EUA e da União Europeia.
Na verdade, esse ‘golpe’ foi simplesmente uma manobra
estratégico-militar de Obama-Merkel contra o sonho de reunificação, sob a
bandeira da Federação Russa, dos territórios perdidos com o desmantelamento da
URSS.
A projeção da geoestratégia das potências centrais sobre a vida dos
países periféricos é fato objetivo, mas não encerra a verdade toda, porque há,
também, processos autônomos, ou, pelo menos, primariamente autônomos.
A experiência brasileira de rupturas constitucionais e agressões à
democracia representativa observa peculiaridades porquanto inicialmente gestada
em nossas entranhas pela associação da caserna reacionária com a direita civil que,
no Brasil e no mundo, jamais teve compromissos com a democracia, as liberdades
e a via institucional. Esta existe tão-só para ser fraturada, e a democracia é
invocada tão-só quando é preciso destruí-la. Assim, em nome da democracia
brasileira - supostamente ameaçada pela ‘república sindicalista’ de Jango – as
liberdades foram cassadas; em nome da defesa da Constituição - pretensamente
ameaçada pelas ‘reformas de base’- a legalidade foi destroçada e instalou-se
uma ditadura, por definição sangrenta. O divisor de águas é a sede dos
interesses da classe dominante, eternamente presa à casa-grande, e eternamente
temerosa dos rumores que partem da senzala. A emergência das massas, em
qualquer nível, seja a organicidade, seja a ascensão social ou cultural, é, para
as ‘elites’ alienadas, uma dessas ‘ameaças’ que precisa ser contida.
O mandarinato militar que se seguiu ao golpe de 1964 não tem história
própria, pois produto de um processo social, mas suas características foram
seguidamente alteradas no curso de seus longos 21 anos, como o atestam o
discurso de posse do primeiro general presidente, e o ato institucional que se
pensou único. Ele é a decantação de práticas e culturas reacionárias de nossa
oficialidade e de nosso empresariado e da ideologia do anticomunismo, importada
da Guerra Fria. Na verdade, a intentona de 1964 – este seu nome — começou a ser
maquinada já em 1961, como declara o gal. Denis em suas memórias (Ciclo
revolucionário brasileiro. Editora Nova Fronteira, 1980), com a autoridade que
deriva de sua vida de insurgente e golpista, filho da tradição mais reacionária
do ‘tenentismo’ que produziu Cordeiro de Farias, Juarez Távora e Eduardo Gomes,
os mais notáveis, ao lado de figuras menores embora igualmente deletérias, como
Filinto Muller e Juracy Magalhães, conspiradores remunerados pelo erário.
Aliás, a história militar republicana é um rosário de levantes, de 1922 a 1964,
passando pela ‘revolução’ de 30 e os golpes de 1932 e 1935. A ruptura
consequente da condução vargo-castilista do movimento de 1930 divide
politicamente os ‘tenentes’, mas não os afasta do golpismo que vai caracterizar
a presença militar na história republicana.
Os golpes de Estado, comandados quase sempre pelas mesmas lideranças,
voltam-se ora contra Vargas, como em 1932 (putsh da aristocracia cafeeira
paulista) e em 1935 (levante comunista), ora para entregar-lhe o poder
absoluto, como em 1937 (derruimento da Constituição de 1934 e instauração do
‘Estado Novo’), como na repressão aos comunistas e putsch integralista de 1938;
até de novo atacá-lo (deposição de 1945), para, afinal, levá-lo ao suicídio
(1954).
O episódio conhecido como 11 de novembro de 1955 é emblemático: de um
lado, os generais que articulam um golpe para impedir a posse de Juscelino (que
simbolizava o retorno do varguismo sem Vargas), de outro os que de fato
executam o golpe (a deposição de Café Filho e Carlos Luz, via Congresso) para
assegurar, em nome da legalidade, a posse do presidente eleito.
Sem minimizar a importância do apoio, inclusive logístico, dos EUA,
entendo como prioritário, no momento, discutir a participação daqueles outros
autores, mais ou menos relevantes, que permanecem ativos em nossa vida
política, e, portanto, em condições de fazer História.
As esperanças da direita civil e militar de conquista eleitoral da
presidência haviam malogrado com a renúncia de Jânio Quadros e sua frustrada
tentativa de golpe, para serem reacendidas com o veto dos ministros militares à
posse de seu sucessor constitucional. O levante popular, liderado pelo então
governador Leonel Brizola, desfez em dias o planejamento de anos e trouxe para
o proscênio a mobilização das massas. Foi a mais contundente derrota do
militarismo no Brasil. O retorno à caserna não significaria, porém, a
assimilação do desfecho desfavorável da crise por eles mesmos, militares,
criada.
Antes de tomar posse, Jango estava condenado à deposição.
Enquanto o deputado e depois governador Carlos Lacerda tentava
mobilizar a opinião pública, conspiradores contumazes como os marechais
Cordeiro de Farias e Juarez Távora, com o concurso de figuras então menores
como o cel. Golbery do Couto e Silva, trabalhavam os quartéis. A guerra
ideológica era liderada pelos grandes jornais, à frente de todos O Estado
de São Paulo e O Globo (que
ganharia seu primeiro canal de televisão no governo Jango) cujos donos seriam
figuras preciosas nas relações com grande empresariado e, só então, nos
primeiros contatos com o governo dos EUA. Nascem o IPES e o IBAD, o primeiro
reunindo empresários, militares e intelectuais orgânicos da direita, o segundo
corrompendo o processo eleitoral
Jango unifica os conspiradores não quando ‘quebra a hierarquia militar’
comparecendo a uma assembleia de sargentos, mas quando opta pela radicalização
nacionalista e o apoio popular, dos trabalhadores, mas igualmente dos
estudantes, dos operários e dos camponeses. Para a classe dominante brasileira
é intolerável o que lhes possa parecer cheiro de povo. Com esse povo
compartilhar o poder, jamais. E é desse então o fortalecimento do movimento
sindical e o ensaio das primeiras centrais. O movimento estudantil é liderado
por uma União Nacional dos Estudantes legitimada pelo apoio de suas bases;
surgem os Movimentos Populares de Cultura, e os primeiros governos estaduais
progressistas, como o de Miguel Arraes em Pernambuco, sede das primeiras Ligas
Camponesas e dos primeiros confrontos com o latifúndio. Fala-se em Reforma
Agrária e em limitação das remessas para o exterior dos lucros das empresas
estrangeiras, pleito ainda hoje atual. Os estudantes querem reforma
universitária, o governo erradicar o analfabetismo, em sintonia com a Revolução
Cubana, que mobiliza as massas e assusta o capitalismo caboclo. O governo
reclama as reformas de base e de uma forma ou de outra o país se transforma
numa grande assembleia que discute seu destino. O povo começa a acreditar no
seu poder de escrever sua História.
Faltava ao governo, porém, aquela correlação de forças
político-militares necessária para dar sustentação a tal política, e, no plano
internacional, a Crise dos Mísseis (1962) trouxera para a América Latina os
holofotes da Guerra Fria. Nessa contingência era fácil aos conspiradores
apresentarem o próprio governo como subversivo, responsabilizado pela iminente
implantação ora de um regime castrista, ora de uma república sindicalista,
falácias que, no entanto conquistavam adeptos e recursos.
O resto é simplesmente consequência, história contada e história
sabida.
Essas notas não pretendem reduzir a importância do papel exercido pelos
EUA no planejamento do golpe, na sua irrupção, na sua consolidação e em sua
sustentação, general por general, até seu último vagido, nada obstante os
estranhamentos com o governo Carter, retoricamente preocupado com a violação
dos direitos humanos. Trata-se de história comprovada em fatos e documentos.
Não padece dúvidas.
É preciso, porém, discutir atores nacionais como a grande imprensa e
setores do grande empresariado. A grande imprensa foi decisiva na mobilização
da classe-média contra o governo e na defesa aberta do golpe. Passaram para a
história como antológicos e paradigmáticos os editoriais do Correio da Manhã,
as campanhas dos ‘Associados’, o papel das emissoras de rádio do Rio e de São
Paulo. A manipulação dos fatos, trabalhando a realidade em função de objetivos
ideológicos, o jornalismo de campanha encontram seu melhor momento na linha
editorial do O Estado de São. Paulo e
de O Globo, inexcedíveis na
preparação do golpe e, mais tarde, na sua sustentação. No fundamental, e eis a
tragédia, e eis o que preocupa, a grande imprensa, passados tantos anos,
continua presa a uma Guerra Fria extinta, permanece ideologicamente dependente
dos centros hegemônicos, e por isso mesmo a serviço da ideologia da submissão,
contra os interesses nacionais sempre que esses são confrontados com os
interesses do centro hegemônico. E, hoje como ontem, contra a emergência das
grandes massas.
A República exige dessa imprensa sua autocrítica, pelo papel que
exerceu na preparação do golpe, na sua sustentação e no silêncio cúmplice
diante da tortura e dos assassinatos, que agora reconhece por não mais poder
negá-los. O diploma de conivência foi outorgado à nossa imprensa pelo mais
luciferino de nossos ditadores: "Sinto-me feliz [dizia o general Médici]
todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal [Jornal
Nacional, da Rede Globo]. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações,
atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo
ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de
trabalho".
A recente autocrítica do jornal O
Globo, admitindo haver errado ao apoiar o golpe, deve ser bem recebida, é,
por enquanto, puro discurso retórico, mas é assim mesmo algo melhor do que o
silêncio das Forças Armadas.
A honra da República exige das Forças Armadas sua autocrítica, pelo
crime da ruptura democrático-constitucional, pelas torturas e pelos assassinatos
que perpetrou em instalações do Estado e pelos crimes que ensejou, praticados
pelas mãos de agentes terceirizados. Exige que as Forças Armadas, como
instituição renunciem à cumplicidade com os criminosos e ajudem as autoridades
na apuração dos crimes.
Estes são os dois primeiros passos para a verdadeira reconciliação
nacional.
*Roberto Amaral é cientista político
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