EUA e a estratégia de guerra
contra Rússia na Ucrânia
J. Carlos de Assis
Os Estados Unidos do Prêmio Nobel da Paz Barak Obama empreendem uma
guerra virtual contra a Rússia e preparam obstinadamente uma guerra real para
ser travada em território ucraniano. Não importa a inviabilidade dessa aventura
militar, do ponto de vista estratégico. O objetivo não é controlar o território
ucraniano e “salvá-lo para a democracia”, mas esgotar em combate o poderio
russo mediante seu estrangulamento econômico e militar numa guerra convencional
em terceiro país. É que nem os lunáticos neoconservadores instalados no
Pentágono, no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional
proporiam um ataque direto à nação russa, dada sua condição de potência nuclear
de primeira linha.
A estratégia central norte-americana é afirmar sua hegemonia mundial a
partir da força. É-lhe intolerável a realidade de um mundo apolar ou multipolar
em face da presença de um competidor nuclear como a Rússia e de uma potência
econômica ascendente como a China, também ameaçadora, a médio prazo, no campo militar. Para os neoconservadores, a
hora de agir é agora, antes que essas forças rivais criem raízes mais
profundas. O pretexto ucraniano vem a calhar. Depois de
derrubar um governo legítimo e colocar em seu lugar um bando de facínoras, o
próximo passo é a incorporação da Ucrânia à OTAN, em aberto desafio à Rússia.
Só com muito sangue frio Putin poderá contornar mais essa provocação no quintal
da Rússia.
É muito fácil começar uma guerra de grandes proporções na terra dos
outros, sobretudo quando se tem a ilusão
de um poder assimétrico em relação ao adversário e mesmo quando não se tem certeza quanto aos
efeitos. É que, uma vez instalado o caos que se segue a uma guerra, não basta
ter imensa superioridade miliar para controlar suas consequências. Os Estados
Unidos são peritos em começar guerras inacabadas: foi assim na Coreia, no
Vietnã, no Iraque, no Afeganistão; mais recentemente insuflaram revoluções no
norte da África, que resultaram em dramática carnificina e permanente
instabilidade na Líbia e no Egito. Entretanto, quando se trata de conseguir a
paz, os Estados Unidos lavam as mãos. Os outros é que cuidem do estrago que
provocam, como no Haiti e no Iraque.
É muito fácil entender a estratégia dos chamados neoconservadores
americanos que acabaram de colocar agora um representante na principal cadeira
no Departamento de Defesa. Querem repetir o processo que levou à exaustão a
antiga União Soviética. Dado que Estados Unidos e Rússia estão em virtual
paridade nuclear, a solução é levar a Rússia à capitulação através de uma
guerra convencional, não em território russo, que arriscaria uma guerra
nuclear, mas no território de um terceiro país. Nada melhor, pois, que a
Ucrânia.
O objetivo dos neoconservadores é tentar repetir uma estratégia que,
embora tendo dado certo na liquidação da União Soviética, não liquidou o Estado
russo que estava em seu coração. O Estado socialista desmoronou, mas a nação
russa, mesmo ferida, continuou de pé. Putin tratou de recuperá-la por inteiro
colocando-a na condição de um estorvo nuclear que limita a vontade de poder
ilimitada de Washington. A intenção norte-americana de atacar o governo sírio
esbarrou efetivamente no veto russo e chinês. Isso, claramente, expôs a
impossibilidade prática do exercício de um poder hegemônico na era nuclear
partilhada. Transformado num boneco operado pelos neoconservadores, Obama
resolveu “estrangular” a Rússia com embargos econômicos.
Recordemos os passos que levaram à extinção da União Soviética a fim de
examinarmos os paralelos atuais. Em meados dos anos 70, foi refundada em
Washington por influência do então diretor da CIA, George Bush pai, a ONG
denominada “Comitee on the present danger”, ou Comitê para o Perigo Presente
(CPD). Tinha como principal objetivo estatutário “levar a União Soviética à rendição,
se necessário por meios militares”. Do Comitê faziam parte 60 personalidades
notáveis do círculo conservador norte-americano, sendo que o futuro Presidente
Ronald Reagan filiou-se à ela pouco antes de eleger-se em 1979. Como
Presidente, levou a posições de alto destaque no Departamento de Defesa, no
Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional 33 integrantes do
Comitê.
Em 1985, quando estive na Alemanha para cobrir a reunião dos Sete
Grandes, andava por lá o chefe do Conselho de Segurança Nacional dos EUA,
Richard Perle, membro do CPD, fazendo conferências sobre o conceito subjacente
ao programa de escudo nuclear, então conhecido como Guerra nas Estrelas, que se
baseava no princípio de “guerra nuclear protegida”. Perguntei aos alemães o que
achavam daquilo, pois a guerra nuclear “protegida” no contexto de Guerra nas
Estrelas implicava a proteção nuclear do território norte-americano, mas não do
europeu. Os alemães com quem conversei estavam perplexos. Imagino que estejam
perplexos de novo com a marcha forçada pela guerra em território da Ucrânia,
que os expõe diretamente às forças militares russas convencionais em seu
próprio território.
É importante assinalar que não se tratava apenas de retórica. Diretivas
presidenciais de Reagan, na virada do primeiro para o segundo mandato,
introduziram mudanças cruciais nos programas de computador que põem em posição
de ataque os três sistemas estratégicos baseados em terra, mar e ar das forças
nucleares norte-americanas. Através de vazamentos de imprensa, soube-se de
mudanças fundamentais no SIOP (Single
Integrated Operational Program, ou Programa Operacional Integrado Único), a
parafernália eletrônica capaz de desencadear uma guerra nuclear contra a então
União Soviética a partir do teatro europeu.
A principal alteração no SIOP, de acordo com os fragmentos de diretivas
presidenciais secretas, recolhidos e
reconstituídos por um cientista canadense, F. Knelman (em “America, God and the
Bomb”), consistiu em recuar para oito minutos, pelo princípio do prêmio por
resposta rápida, o início de um ataque nuclear total à União Soviética a partir
do primeiro alarme. Não se tratava de uma questão acadêmica. Como um hipotético
míssil soviético em cruzeiro levaria 36 minutos para mergulhar em território nacional
norte-americano (trata-se de míssil disparado de terra: não se menciona a frota
indetectável de submarinos nucleares, por expediente elusivo de convencimento),
o programa Guerra nas Estrelas só se justifica se houver uma capacidade efetiva
de interceptá-lo no meio da trajetória, isto é, no mínimo 18 minutos depois do
disparo.
O mesmo tempo é o que levaria um míssil americano disparado de terra
para alcançar o míssil hostil na estratosfera. Entretanto, seria necessário um
sistema de detecção instantânea do início do ataque. Para qualquer efeito
prático, não há possibilidade de alcançar o míssil antes que cruze o ponto
médio da trajetória, a não ser de uma base em órbita. O programa Guerra nas
Estrelas pretendia pôr bases em órbita, mas até lá seria necessário contar com
a boa vontade dos estrategistas soviéticos para não atacarem primeiro. Por isso
reduziram o tempo de resposta do SIOP a oito minutos, pelo que ficou limitado a
um nível de redundância o processo de checagem para confirmar se um disparo
captado na tela de controle eletrônico era um disparo real. Com isso ficamos todos
expostos à possibilidade de uma guerra nuclear casual na medida em que o SIOP
reagiria automaticamente a uma checagem errada sem tempo de consulta para
resposta ao falso ataque do Presidente da República.
O primeiro passo para implementar Guerra nas Estrelas era ignorar o
tratado SALT II, que vedava a construção de sistemas antibalísticos por parte
de EUA e União Soviética. A lógica do SALT II, jamais aprovado pelo Senado
norte-americano mas até então respeitado pelo Executivo, era simples: a dissuasão
nuclear só se efetiva na base da autodestruição assegurada por quem iniciar uma
guerra nuclear. Se um dos lados conseguir construir um sistema operacional que
efetivamente proteja seu território de um contra-ataque nuclear, ele estará
livre para desencadear um primeiro ataque sem medo de retaliação. Cientistas de
todo mundo, inclusive americanos, questionaram as bases técnicas de Guerra nas
Estrelas, mas Reagan, a fim de esgotar a União Soviética numa corrida
tecnológica para construir seu próprio escudo, levou Gorbachev a uma posição
insustentável por falta de condições econômicas e técnicas para isso.
Foi a combinação de pressão tecnológica, econômica e política
norte-americana que levou a União Soviética à autodestruição. É este mesmo
caminho que está sendo seguido agora para levar a Rússia à exaustão econômica e
à rendição política. Não se trata de teoria conspiratória. Os norte-americanos,
conscientes de sua superioridade militar e econômica, nunca escondem suas reais
intenções. Seus movimentos são explícitos e claramente apresentados em
documentos estratégicos públicos. Assim, eis como a intenção de eliminar
qualquer possibilidade de “um novo rival” era colocada em 1992, imediatamente
depois da derrota da União Soviética, pelo neoconservador Paul Wolfowitz, do
CPD, então Subsecretário da Defesa, no Manual de Planejamento de Defesa:
“Nosso primeiro objetivo é prevenir a re-emergência de um novo rival,
seja no território da antiga União Soviética seja em outro lugar, que coloque
uma ameaça do tipo que foi colocado pela antiga União Soviética. Isso é uma
consideração dominante sublinhando a nova estratégia de defesa regional e
requer que previnamos qualquer tentativa
de um poder hostil de dominar uma região cujos recursos poderiam, sob controle
consolidado, ser suficiente para gerar poder global.”
Essa linha estratégica está sendo trilhada religiosamente no sentido de
evitar que a Rússia seja um embaraço para a hegemonia militar absoluta
norte-americana, contornando a realidade elidida da virtual paridade nuclear. O
SALT II foi revogado, unilateralmente,
pelos EUA. Eles se recusam, por outro lado, a fazer um tratado de
desmilitarização do espaço. Assim, é
necessário recuar à geopolítica anterior à Guerra Fria para entender os
movimentos americanos. De fato, há uma década e meia a possibilidade real de
uma guerra na Ucrânia está sendo preparada metodicamente pela OTAN, que agora
mesmo acaba de decidir aumentar o comprometimento de orçamento militar de seus
membros (2% do PIB) por pressão americana. Desde 1999 que a Organização avança
para o Leste. Naquele ano, incluiu a República Checa, a Hungria e a Polônia.
Uma segunda expansão se deu em 2004, incluindo Bulgária, Estônia, Latvia,
Lituânia, România, Eslováquia e Eslovênia.
Com isso, quase metade dos países atualmente membros da OTAN foram
incorporados, rumo ao Leste, depois do fim da URSS. Paralelamente expandia-se
para Leste a União Europeia, cujo último movimento seria a tentativa de tomada
de posse da Ucrânia. E só não houve a efetiva incorporação da Ucrânia e da
Geórgia, formalmente sinalizada na cúpula de Bucareste em 2008, porque dessa
vez Putin reagiu pela força, pois se tratava, a seu ver, de colocar uma
fortaleza militar hostil no quintal de seu país.
O cerco militar à Rússia segue uma tríplice estratégia: alargamento da
OTAN, expansão da União Europeia e promoção da “democracia”, obviamente
desconsiderando o risco de uma guerra aberta. Diante do baile estratégico que
foi a absorção da Crimeia pela Rússia, com apoio esmagador da população da península,
os Estados Unidos se movem na direção da guerra através inicialmente de sanções
econômicas, a partir de uma posição forte, recém-conquistada, no campo da
energia. Contudo, não nos iludamos. Uma guerra convencional seria de alto
interesse norte-americano, desde que ela pudesse esgotar a capacidade militar e
econômica russa sem o risco de escalar para uma guerra nuclear. É com essa
possibilidade que os neoconservadores contam para iniciar a guerra.
Sabemos, por outro lado, pela experiência histórica, que os Estados
Unidos não se preocupam muito em como acabar com guerras. Para eles trata-se de
um jogo estratégico para assegurar a afirmação da hegemonia mundial. Por isso,
no momento, a única força capaz de parar a máquina de guerra americana é o povo
dos Estados Unidos, tocado pela consciência de solidariedade com os bilhões de
inocentes do mundo, e eles próprios, que sofreriam as consequência de uma
guerra proto-nuclear. É necessário que os inocentes rompam com a passividade,
falem e votem. De fato, os Estados Unidos podem esgotar as forças econômicas e
militares dos russos numa guerra em território de terceiro. Mas o que acontece
com uma potência derrotada, humilhada, sitiada, e não obstante de posse de um
imenso arsenal nuclear?
Aos que consideram essa análise exagerada peço que leiam “Foreign
Affairs”, uma das mais prestigiosas revistas do estabelecimento
norte-americano, em detalhados e esclarecedores artigos sobre a “crise” na
Ucrânia, na edição de setembro último. Um deles diz claramente: “a crise na
Ucrânia é nossa culpa”, referindo-se aos Estados Unidos. No corpo da matéria
vem a narrativa da marcha da OTAN para Leste, em confronto direto com
entendimentos anteriores com os russos e sob constantes protestos destes. Ali
também se encontra o relato do caos planejado pelo Departamento de Estado e
ONGs patrocinadas pelo Governo norte-americano para derrubar o governo legítimo
pró-russo de Kiev, colocando em seu lugar um governo que tem pelo menos quatro
membros proeminentes neofacistas.
Ainda em termos de medidas provocativas contra a Rússia, destaca-se a
monstruosa derrubada do avião comercial MH 17 sobre o Leste da Ucrânia, um
típico atentado terrorista que os Estados Unidos pretenderam atribuir a forças
pró-russas. Falso. O avião, de que já não se fala mais muito sintomaticamente,
foi derrubado por forças do governo de Kiev, conforme denunciou o presidente
russo Vladmir Putin, numa reunião internacional, com base em investigações
independentes, e com praticamente nula repercussão no Ocidente.
O ânimo dos neoconservadores
norte-americanos para o confronto global com os russos, a partir da
economia, ganhou força com a revolução energética representada pela exploração
de gás de xisto nos Estados Unidos através de uma das mais criminosas tecnologias
do ponto de vista ambiental, o fracting. O sucesso comercial do empreendimento,
com rápida expansão de produção de gás e petróleo de xisto, possibilitou atacar
o principal pilar da economia russa, grande produtora e exportadora de petróleo
e gás, e, simultaneamente, “tranquilizar” os europeus quanto à possibilidade de
cessação de suprimento de gás russo à Europa, o qual seria substituído pelo
norte-americano.
Não se sabe se os sauditas entraram nesse jogo por razões geopolíticas,
evitando reduzir a produção de petróleo para prejudicar os russos, ou por suas
próprias razões de tentar inviabilizar economicamente a produção de
hidrocarbonetos por fracting. O fato é que também grandes empresas
norte-americanas, que investiram pesadamente no petróleo e gás de xisto, estão
tendo pesados prejuízos com a redução do preço do petróleo, que agrada mesmo só
ao consumidor. Por outro lado, as promessas supostamente infinitas do
fracting se revelaram surpreendentemente limitadas nos últimos meses: em Monterey, na Califórnia, reservas de
petróleo de xisto antes avaliadas em 13,7 bilhões de barris foram reavaliadas
oficialmente para 600 milhões, ou 96% menos. Além disso, a opinião pública
norte-americana começa a ser mover contra o fracting: segundo uma pesquisa de opinião
recente, em 2008, 48% a 38% dos norte-americanos apoiavam essa tecnologia; em
novembro último, 47% a 41% se manifestaram contra. Isso certamente reflete a
comprovação inequívoca da destruição ambiental, sobretudo de aquíferos, que
essa tecnologia suja provoca no meio ambiente de forma irreversível.
Enquanto o mercado de hidrocarbonetos não sofrer nova reviravolta,
refletindo o fracasso da Califórnia, a Rússia, sem dúvida, será penalizada pela
estratégia norte-americana de seu estrangulamento econômico. Putin, com sua
frieza característica, ponderou que a Rússia é um país autossuficiente e, de
qualquer modo, tem meios de retaliação – imaginando certamente um embargo na
exportação de gás para a Europa. Uma importante ficha para a Rússia é
certamente a China, que já lhe garantiu um contrato de fornecimento de gás por
20 anos no montante de 400 bilhões de dólares, e que tem se alinhado com ela em
questões geopolíticas, como no caso da Síria. Contudo, estamos claramente
diante de uma escalada.
O novo passo estimulado pelos EUA foi a recente decisão do Parlamento
da Ucrânia de renegar sua neutralidade. Note-se que o próprio Kissinger, num
artigo recente, assinalou que a solução definitiva para a crise ucraniana, de
uma forma aceitável pela Rússia, seria transformar a Ucrânia num país neutro
entre a União Europeia/OTAN e a Rússia, como aconteceu com a Finlândia na
Guerra Fria. Contudo, Kissinger é um velho conservador lúcido, não um
neoconservador alucinado. Os EUA, sob controle destes, indicam que não aceitarão
perder mais essa oportunidade de guerra. Tudo indica que forçarão a Rússia a
aceitá-la. Com a integração da Ucrânia na OTAN, numa iniciativa indiferente aos
milhões de russos e russófilos no Leste do país, a aliança militar ocidental
estaria nas costas da Rússia, o que significa ameaça direta a seu território. O
mínimo que a Rússia buscaria seria retalhar a Ucrânia com apoio local, o que de
uma certa forma foi ensaiado na Crimeia. Seria então uma guerra global em
território ucraniano?
E nós, que temos a ver com tudo isso? Os inocentes entre nós acham que
os neoconservadores norte-americanos veem com muita naturalidade nossa
aproximação, via BRICS, com sua arqui-inimiga Rússia. Acreditam que a gravação
das conversas da Presidenta foi mero divertimento. Acham que as tentativas de
desestabilização do legítimo Governo brasileiro atual, assim como o reeleito,
são fenômenos exclusivamente internos, ou resultantes dos impulsos éticos de
alguns tribunais. Pelo fato de termos passado à margem de guerras, e estarmos
no centro de um continente peculiarmente
pacífico, nos acostumamos a não pensar geopoliticamente – mesmo porque, na era
nuclear, a geopolítica devia estar definitivamente fora de moda. Contudo,
querendo ou não, estamos no jogo. Se o preço do petróleo cair abaixo de 40
dólares o barril, a exploração do pré-sal estará inviabilizada. Se os Estados
Unidos fizeram a guerra contra a Rússia em território ucraniano, teremos de
fazer difíceis escolhas.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela
Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB
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