A
praga da violência coletiva
A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de
organização social que a transformam em ódio coletivo e a justificam.
Ladislau Dowbor
Um aluno um dia me perguntou o que eu achava do homem: naturalmente
bom, mas pervertido pela sociedade, na linha do “bom selvagem” de Rousseau, ou
esta desgraça que vemos por aí, em estado natural. Na realidade, não acho nem
uma coisa nem outra. Acho que temos todos imensos potenciais para o bem e para
o mal, para o divino e a barbárie. Cabe a nós, que trabalhamos com o estudo da
sociedade e em particular das instituições, pensar o que faz a balança pender
mais para um lado ou para outro. Pois, deixando de lado alguns traumas e
deformações individuais, domínio dos psiquiatras, aqui nos interessa a
misteriosa bestialidade coletiva de grandes grupos sociais.
Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas
dúvidas, pois sou de família polonesa, e vi refletido nas angústias dos meus
pais o que tinham vivido frente ao nazismo. Ninguém irá pensar que os alemães
eram um povo de baixo nível educacional ou cultural. E, no entanto, com que
entusiasmo vestiram as botas e as camisas negras ou marrons; com que elevado
sentimento de dever cumprido matavam pessoas por serem diferentes, por um
critério real ou imaginário. Cerca de 50% dos médicos alemães aderiu ao partido
nazista. Isto é que é realmente preocupante. Estupidez é uma doença que pega.
Poder dar vazão ao que há de mais podre dentro de nós, de mais escuro
em termos de ódio contido, de mais baixo em termos humanos, em nome de elevadas
aspirações éticas, parece ser muito satisfatório. Os nazistas agiam em nome da
pureza da raça. E erguiam bem alto a bandeira do “Gott mit uns”, Deus está
conosco. Tornar-se de certa maneira o braço executivo da cólera divina parece
ser profundamente agradável. Há gente disposta a morrer por esta satisfação.
Quem não leu “O Martelo da Feiticeira”, manual de interrogatório dos
inquisidores católicos perdeu uma importante fonte de conhecimento sobre os
nossos lados escuros. O manual recomenda, por exemplo, que os religiosos
encarregados de torturar as possíveis feiticeiras as torturassem nuas, pois se
tornam mais frágeis, e de costas para os torturadores, pois a era tal a
perversidade destas mulheres que de frente para os torturadores poderiam
comovê-los com suas súplicas e expressões de desespero. Eram religiosos, e o
faziam em nome de Cristo.
Somos hoje mais civilizados? Sinto-me profundamente abalado, chocado,
pelo bárbaro assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris, por
profissionais da morte que matam em nome de Deus, e que claramente mostraram
nos seus gritos que se sentiam como justiceiros que haviam cumprido o seu
dever. São monstros? Se fossem, seria muito mais simples compreender e
prevenir. Mas são seres humanos em torno dos quais se construiu uma muralha de
valores que os protege de qualquer crítica. Se sentem pertencentes a uma
comunidade que os apoia e recompensa, ou seja, praticam a barbárie em nome do
bem. Podemos matar os terroristas, mas transformar a dinâmica que os forma é
bem mais complexo.
Podemos tratar um psicopata, e proteger a sociedade dos riscos
individuais. E uma sociedade doente? Quem não viu “Os fantasmas de Abu-Ghraib”,
veja É profundamente instrutivo. O documentário é montado a partir de selfies e
de filmagens por celular de práticas de tortura no Iraque por jovens
americanos, contra supostos inimigos. Tortura praticada no Iraque em nome da
defesa dos direitos humanos, por um exército invasor, e por funcionários de
empresas privadas de segurança terceirizadas para esta tarefa. Esses jovens são
monstros? As imagens das torturas e dos risonhos rapazes circulam em todo o
mundo islâmico. Com que impacto e efeito multiplicador?
Hoje temos tortura sistemática aplicada pelo sistema repressivo
(Mossad, Shin Bet e outros) em Israel. Em Guantánamo, quando os prisioneiros
tentam morrer para escapar ao sofrimento, se lhes introduz à força alimento
pelo nariz ou pelo anus, tudo em nome do bem, como em nome de Deus os fanáticos
do ISIS decapitam prisioneiros ou os do Boko Haram raptam crianças.
A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de
organização social que a transformam em ódio coletivo e organizam a sua
expressão em nome da justiça, de Deus, da pátria, da pureza racial ou o que
seja.
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