segunda-feira, 16 de março de 2015

Os EUA e o EI

OS ESTADOS UNIDOS E O ESTADO ISLÂMICO
Noam Chomsky
Os Estados Unidos são responsáveis pelo surgimento do EI (Estado Islâmico). Longe de ser uma teoria da conspiração, o linguista, filósofo e ativista político norte-americano Noam Chomsky defende, em entrevista ao jornalista David Barsamian que a invasão do Iraque em 2003 provocou as divisões sectárias que instigaram a desestabilização da sociedade iraquiana.
Assim, o resultado foi um clima onde os radicais apoiados pelos sauditas prosperaram. Ele alerta ainda que o grupo ficará ainda mais extremista na medida que o conflito se desenvolva e que os grupos que ganharão predominância serão os mais brutais e mais duros: “se conseguirem destruir o EI, terão de lidar com algo mais extremista”, afirma.
David Barsamian: O Oriente Médio está em chamas, da Líbia ao Iraque. Há novos grupos jihadistas. As atenções focam-se no Estado Islâmico. Que pensa deste grupo e das suas origens?
Noam Chomsky: Há uma entrevista interessante a Graham Fuller, publicada há dias. Trata-se de um ex-agente da CIA, um dos principais analistas do Médio Oriente. O título é “Os Estados Unidos criaram o Estado Islâmico”. Esta é uma das teorias da conspiração, das milhares que há no Oriente Médio.
Mas esta vem de outra fonte: do coração do establishment dos EUA. Fuller apressa-se a esclarecer que não quer dizer que os EUA decidiram dar existência ao EI e depois financiá-lo. O que ele sustenta – e eu acho uma opinião correta – é que os EUA criaram o ambiente do qual nasceu e se desenvolveu o EI. Em parte, a abordagem foi o padrão martelado: esmaga-se aquilo de que não se gosta.
Em 2003, o Reino Unido e os EUA invadiram o Iraque, um grande crime. Ainda esta noite, o Parlamento britânico concedeu ao governo a autoridade para bombardear o Iraque de novo. A invasão foi devastadora. O Iraque já tinha sido virtualmente destruído, em primeiro lugar pela guerra de dez anos contra o Irã, na qual, diga-se de passagem, o Iraque foi apoiado pelos EUA; e logo em seguida, pela década de sanções econômicas.
Estas foram descritas como “genocidas” pelos respeitados diplomatas internacionais que as administraram, e ambos se demitiram em protesto. As sanções devastaram a sociedade civil, reforçaram o ditador, forçando a população a depender dele para sobreviver. Esse é provavelmente o motivo de não ter seguido o mesmo caminho de todo um grupo de ditadores que foram derrubados.
Finalmente, os EUA decidiram atacar o país em 2003. O ataque é comparado por muitos iraquianos à invasão mongol ocorrida mil anos antes. Terrivelmente destrutiva. Centenas de milhares de pessoas mortas, milhões de refugiados, milhões de outras pessoas deslocadas, destruição de riquezas arqueológicas do país dos tempos da Suméria.
Um dos efeitos da invasão foi imediatamente instituir divisões sectárias. Parte do fulgor da força de invasão e do seu diretor civil, Paul Bremer, foi separar as seitas, sunitas, xiitas, curdos e provocar os conflitos entre elas. Num par de anos, havia um enorme, brutal conflito sectário incitado pela invasão.
Para comprovar isto basta olhar para Bagdá. Se virmos um mapa de, digamos, 2002, trata-se de uma cidade misturada: sunitas e xiitas vivem nos mesmos bairros, por vezes nem se sabe quem é sunita ou xiita. É como saber se os seus amigos são de um grupo protestante ou de outro. Havia diferenças, mas não hostilidade.
De fato, durante alguns anos, ambos os lados diziam: nunca haverá conflitos sunitas-xiitas. Estamos demasiado misturados na natureza das nossas vidas. Mas em 2006 já havia uma guerra enraivecida. Esse conflito espalhou-se a toda a região. Hoje, toda ela está dividida pelos conflitos sunitas-xiitas.
A dinâmica natural de um conflito como esse é que os elementos mais extremistas começam a ser predominantes. Tinham raízes. As raízes vêm do maior aliado dos EUA, a Arábia Saudita, que tem sido o principal aliado dos EUA na região desde que Washington se envolveu seriamente, de fato desde a fundação do estado saudita. É uma espécie de ditadura familiar. O motivo é ter uma quantidade enorme de petróleo.
O Reino Unido, antes dos EUA, preferia habitualmente o islamismo radical ao nacionalismo laico. E quando os EUA assumiram o seu papel, na essência seguiram o mesmo padrão. O islamismo radical tem o centro na Arábia Saudita. É o mais extremista, radical estado islâmico do mundo. Faz o Irã parecer um país tolerante e moderno por comparação e, evidentemente, as partes laicas do Médio Oriente árabe ainda mais.
Não só é orientado por uma versão extremista do Islã, a versão salafista wahabista, como também é um estado missionário. Usa os seus enormes recursos do petróleo para promulgar estas doutrinas por toda a região. Cria escolas, mesquitas, clérigos por toda a parte, do Paquistão ao Norte de África.
A doutrina abraçada pelo Estado Islâmico é uma versão extremista do extremismo saudita. Cresceu ideologicamente da mais extremista forma do Islã, a versão saudita, e os conflitos que foram engendrados pelo martelo dos EUA que esmagou o Iraque espalharam-se agora para todo o lado. É o que Fuller quer dizer.
A Arábia Saudita não só fornece o núcleo ideológico que levou ao extremismo radical do EI, como também o financia. Não o governo saudita, mas os ricos sauditas e kuwaitianos e outros dão fundos e apoio ideológico a estes grupos jihadistas que florescem por todo o lado. O ataque à região levado a cabo por britânicos e os EUA é a fonte onde tudo isto tem origem. Foi o que Fuller quis dizer ao afirmar que os EUA criaram o EI.
Pode-se ter a certeza de que à medida que o conflito se desenvolva, eles vão ficar mais extremistas. Os mais brutais, os mais duros grupos vão ganhar predominância. É o que acontece quando a violência se torna no meio de interação. É quase automático. Isto é assim tanto nos bairros quanto nos assuntos internacionais. As dinâmicas são perfeitamente evidentes. É o que está acontecendo. É de onde vem o EI. Se conseguirem destruir o EI, terão de lidar com algo mais extremista.
E os meios de comunicação são obedientes. No discurso de 10 de setembro de 2014, Obama citou dois países como histórias de sucesso da estratégia de contrainsurgência dos EUA. Que países são esses? Somália e Iêmen. Toda a gente devia estar de queixo caído, mas no dia seguinte o silêncio era total, não havia comentários sobre isto.
O caso da Somália é particularmente horrendo. O Iêmen é mau demais. A Somália é um país extremamente pobre. Não vou falar da história toda. Mas um dos grandes sucessos da política antiterrorista da administração Bush foi que conseguiu fechar uma instituição de caridade, a Barakat, que abastecia o terrorismo na Somália. Grande excitação na imprensa. Grande triunfo.
Meses depois, os fatos começaram a ganhar a luz do dia. A instituição de caridade não tinha absolutamente nada a ver com o terrorismo na Somália. Tinha a ver sim com a banca, o comércio, os hospitais. Mantinha de certa forma viva a economia somali, profundamente empobrecida e abalada. Ao fechar a instituição, a administração Bush acabou com isto. Foi a contribuição para a contrainsurgência. Foram-lhe dedicadas poucas linhas, que podem ser lidas em livros sobre finanças internacionais. É o que foi feito à Somália.
Houve um momento em que os chamados Tribunais Islâmicos, uma organização islâmica, tinha conseguido uma espécie de paz na Somália. Não era um regime bonito, mas pelo menos era pacífico e o povo estava mais ou menos propenso a aceitá-lo. Os EUA não o toleraram, e apoiaram uma invasão etíope para destruí-lo e tornar toda a região em uma enorme confusão. Grande sucesso.
O Iêmen tem também a sua história de terror.
www.operamundi.com.br 15/03/2015

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