quinta-feira, 19 de março de 2015

Syriza e algumas lições para a esquerda

18/02/2015 - Copyleft

Syriza e algumas lições para a esquerda

A austeridade mostrou a vontade das elites de reconstruir o contrato social eliminando direitos. Mas a Europa agora ouve aqueles que oferecem esperança.


Pedro Chaves* - publico.es

Left.gr
As cifras sobres os efeitos devastadores das políticas de austeridade continuam nos atingindo a cada dia. Saber que, na Espanha, quase 26% da população está em risco de exclusão social é demolidor. E saber, ainda, que mais de 12% dos pobres são pessoas que trabalham evidencia a americanização das nossas vidas para o pior. Uma precarização que acaba com a esperança e destrói a convivência.
 
O mais incrível da obstinação das classes dominantes em manter essa política de sofrimento sem limites é supor que as populações aceitariam passivamente o discurso de “não há alternativa” enunciado por Thatcher no começo da década de 80.

A ideia de que “isso são lentilhas” foi aceita enquanto o sistema oferecia espaços de promoção e/ou de manutenção do status quo. As políticas de austeridade mostraram claramente a vontade daqueles de cima de reconstruir o contrato social eliminando direitos a toque de caixa e nos tornando vulneráveis, precários e desesperançosos. Nessas condições, a sociedade se pôs a escutar aqueles que oferecem esperança.
 
O Syriza é uma das expressões dessa vontade de mudança. E é evidente que não venderam fumaça nem sonhos impossíveis. Demandaram dignidade e a sociedade grega a reconhece. Uma pesquisa recém-publicada na Grécia e realizada depois da apresentação do programa de governo do Tsipras, da reunião do Ecofin e da reunião do Conselho Europeu informal de Bruxelas, fala de níveis de apoio à gestão próximos aos 60%, e completamente transversais em termos políticos.
 
Mas as reflexões sobre o Syriza, se alguma pode nos servir, têm a ver com a articulação de sua estratégia de alianças sociais e políticas. O Syriza percebeu muito bem, a meu ver, o deslocamento da política em direção ao social e a quebra de legitimidade do espaço político tradicional. Isso, e a irrupção política de uma geração que não se reconhecia nos modos, métodos e maneiras com que se geriu a política até agora. E, claro, ter encontrado um elemento em torno do qual gerar uma identidade transversal e majoritária: em seu caso, a impugnação da dívida e o confronto com a troika. Uma boa aula sobre as lógicas que constituem opções que ganham no espaço público: uma proposta que galvanize os desejos de mudança e a capacidade para destacar um inimigo cuja derrota mudará nossa vida.
 
O risco dessa estratégia é a enorme mobilidade e fragmentação do espaço social. O que provavelmente ocorrerá será uma reconfiguração do espaço político especialmente no âmbito da esquerda e, a partir dessa possibilidade, a emergência de uma nova lógica de alianças e coalizões sociopolíticas. Mas isso está por vir. O risco é ter criado uma coalizão política negativa muito potente, que desestabilize as práticas do novo governo. Para além de outras considerações, que mereceriam um comentário, entre os votos negativos diante do programa de governo do Syriza estavam os do KKE (Partido Comunista da Grécia), que se somou a todo o resto da oposição.

Na Espanha, a corrupção precipitou uma ruptura maiúscula entre os cidadãos e as elites políticas e econômicas. O tema não é a corrupção, mas a desconfiança e o inimigo é a casta, as elites, os de sempre.
 
Ao mesmo tempo, outros indicadores mostram a condição pró-ativa da mudança. Todos os indicadores dizem que o interesse pela política na Espanha aumentou, em média, dez pontos e, além disso, essa politização consolidou práticas de ócio, consumo e relação que impugnam o modelo capitalista e/ou buscam outros caminhos – tais como o ecoconsumo, os grupos de consumo, a consolidação de experiências cooperativas de trabalho alternativo, colaboração em ONGs etc.

Por último, essa politização é mais intensa entre os nativos digitais, isto é, os que estão entre os 18 e 24 anos. Justo aqueles que abandonaram o PSOE e o PP. A intenção dos votos no PP nesse recorte não chega a 5%. Por fim, um dado nada inocente, citado por Belén Barreiro em um recente artigo: segundo um estudo do Pew Research Center, a Espanha teria se transformado em um dos países mais anticapitalistas do nosso entorno.

Todos esses dados ajudam a entender a emergência do Podemos, sua consolidação e suas expectativas. Ao mesmo tempo, coexistem no espaço da esquerda alternativa opções sem cuja existência nada disso teria acontecido. A IU (Esquerda Unida) foi uma garantia de resistência diante das políticas da destruição de direitos. E suas práticas de gestão pública dizem, com seus erros, de sua condição de preocupação com as maiorias e de tentar ao menos conter as arestas mais antissociais das políticas neoliberais.

O jogo para as eleições locais e autônomas está praticamente jogado. Haverá concorrência entre o Podemos e a IU em quase todos os lugares. Este é o momento para destacar a necessidade de que a lógica eleitoral não se transforme em uma carreira para ver quem dinamita primeiro todas as pontes. A concorrência e as lógicas de posicionamento do outro deveriam evitar a transformação do Podemos em uma variante pós-moderna dos partidos reformistas tradicionais e da IU em uma caricatura do KKE na Espanha.

No futuro, os olhares dos cidadãos observarão quanto a vida das pessoas muda de verdade. E nisso o programa de governo do Syriza também tem muito o que ensinar.

Se evitarmos o fato de a fratura política na representação do espaço sociopolítico da esquerda alternativa se transforme em um confronto, teremos dado um paço em direção a uma perspectiva de mudança real em nosso país. O futuro não está escrito.



*Professor de Ciência Política na Universidade Carlos III de Madri; pesquisador e ativista em temas de participação democrática e União Europeia. Membro do EconoNuestra.
 
Tradução de Daniella Cambaúva

Créditos da foto: Left.gr

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