19/03/2015 - Copyleft
Leonardo Boff
Uma experiência de choque: o encontro com José Mujica
'Precisamos de uma cultura alternativa à cultura do capital. Ela não pode nos dar felicidade, pois, na ânsia de acumular, não nos sobra tempo para viver.'
Participando de um congreso
iberoamericano sobre Medicina Familiar e Comunitária, realizado em
Montevideo dos dias 18-22 de março, tive a oportunidade sempre desejada
de um encontro com o ex-presidente do Uruguai José Mujica. Finalmente
foi possível no dia 17 de março por volta das 16.00 horas. Tal encontro
deu-se em sua Chácara, nos arredores da capital Montevideo.
Encontramos
uma pessoa que vendo-a e ouvindo-a somos imediatamente remetidos a
figuras clássicas do passado, como Leon Tolstoi, Maathma Gandhi e até
com Francisco de Assis. Aí estava ele com sua camisa suada e
rasgada pelo trabalho no campo, com uma calça de esporte muito usada e
sandálias rudes, deixando ver uns pés empoierados como quem vem da faina
da terra.
Vive
numa casa humilde e ao lado, o velho fusca que não anda mais que 70
km a hora. Já lhe ofereceram um milhão de dólares por ele; rejeitou a
ofera por respeito ao velho carro que diariamente o levava ao palácio
presidencial e por consideração do amigo que lho havia dado de presente.
Rejeita
que o considerem pobre. Diz: "não sou pobre, porque tenho tudo o que
preciso para viver; pobre não é não ter; é estar fora da comunidade;
e eu não estou".
Pertenceu
à resistência à ditadura militar. Viveu na prisão por treze anos e por
um bom tempo dentro de um poço, coisa que lhe deixou sequelas até osdias
de hoje. Mas nunca fala disso, nem mostra o mínimo
ressentimento.Comenta que a vida lhe fez passar por muitas situações
difíceis; mas todas eram boas para lhe dar sábias lições e por e fazê-lo
crescer.
Conversamos
por mais de uma hora e meia. Começamos com a situação do Brasil e, em
geral da América Latina. Mostrou-se muito solidário com Dilma
especialmente em sua determinação de cobrar investigação rigorosa e
punição adequada aos corruptos e corruptores do caso penoso da
Petrobrás. Não deixou de assinalar que há uma política orquestrada a
partir dos Estados Unidos de desestabilizar governos que tentam realizar
um projeto autônomo de país.
Isso
está ocorrendo no Norte da Africa e pode estar em curso também
na América Latina e no Brasil. Sempre em articulação com os setores
mais abastados e poderosos de dentro do país que temem mudanças sociais
que lhes podem ameaçar os privilégios históricos.
Mas
a grande conversa foi sobre a situação do sistema - vida e do sistema -
Terra. Ai me dei conta do horizonte vasto de sua visão de mundo.
Enfatizava
que a questão axial hoje não reside na preocupação pelo Uruguai, seu
pais, nem por nosso continente latinoamericano, mas pelo destino
de nosso planeta e do futuro de nossa civilização. Dizia, entre
meditativo e preocupado, que talvez tenhamos que assistir a grandes
catástrofes até que os chefes de Estado se deem conta da gravidade de
nossa situação como
espécie e tomar medidas salvadoras. Caso contrário, vamos ao encontro de uma
tragédia ecológico-social inimaginável.
tragédia ecológico-social inimaginável.
O
triste, comentava Mujica, é perceber que entre os chefes de
Estado, especialmente, das grandes potências econômicas, não se
verifica nenhuma preocupação em criar uma gestão plural e global do
planeta Terra, já que os problemas são planetários. Cada país prefere
defender seus direitos particulares, sem dar-se conta das ameaças gerais
que pesam sobre a
totalidade de nosso destino.
Mas
o ponto alto da conversa, sobre o qual pretendo voltar, foi sobre
a urgência de criarmos uma cultura alternativa à dominante, a cultura
do capital. De pouco vale, sublinhava, trocarmos de modo de produção,
de distribuição e de consumo se ainda mantemos os hábitos e 'valores'
vividos e proclamados pela cultura do capital. Esta aprisionou toda a
humanidade com a idéia de que precisamos crescer de forma ilimitada e de
buscar um bem estar material sem fim. Esta cultura opõe ricos e pobres.
E induz os pobres a buscarem ser como os ricos. Agiliza todos os meios
para que se façam consumidores. Quanto mais são inseridos no consumo
mais demandas fazem, porque o desejo induzido é ilimitado e nunca sacia o
ser humano. A pretensa felicidade prometida se esvai numa grande
insatisfação e vazio existencial.
A
cultura do capital, acentuava Mujica, não pode nos dar felicidade,
porque nos ocupa totalmente, na ânsia de acumular e de crescer, não nos
deixando tempo de vida para simplesmente viver, celebrar a convivência
com outros e nos sentir inseridos na natureza. Essa cultura é anti-vida e
anti-natureza, devastada pela voracidade produtivista e consumista.
Importa
viver o que pensamos, caso contrário, pensamos como vivemos: a espiral
infernal do consumo incessante. Impõe-se a simplicidade voluntária, a
sobriedade compartida e a comunhão com as pessoas e com toda a
realidade. É difícil, constatava Mugica, construir as bases para esta
cultura humanitária e amiga da vida. Mas temos que começar por nós
mesmos.
Eu comentei: 'o Sr. nos oferece um vivo exemplo de que isso é possível e está no âmbito das virtualidades humanas'.
No
final, abraçando-nos fortemente, lhe comentei: 'digo com sinceridade
e com humildade: vejo que há duas pessoas no mundo que me inspiram e me
dão esperança: o Papa Francisco e Pepe Mujica'. Nada disse.
Olhou-me profundamente e vi que seus olhos se emudeceram de emoção.
Sai
do encontro como quem viveu um choque existencial benfazejo:
me confirmou naquilo que com tantos outros pensamos e procuramos viver.
E agradeci a Deus por nos ter dado um pessoa com tanto carisma,
tanta simplicidade, tanta inteireza e tanta irradiação de vida e de
amor.
Créditos da foto: Gonzalo Viera Azpiroz / Flickr
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