segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Para Gustavo Gindre, um dos grandes desafios é garantir que todos tenham real acesso à internet no Brasil

Para Gustavo Gindre, um dos grandes desafios é garantir que todos tenham real acesso à internet no Brasil

Segundo o jornalista, Brasil é um dos países mais atrasados em relação à democratização da mídia

Por Camila Araújo (NPC)
Apesar de ser um direito, apenas metade dos brasileiros estão conectados à internet, segundo dados do IBGE. Ainda assim, muita gente acha que ela já chegou a todas as pessoas, seja através dos computadores, celulares ou tablets. O jornalista Gustavo Gindre explica: “apesar dos avanços tecnológicos, a internet ainda não está em todos os lares. E esse é só um dos meios de comunicação que necessitam ser regulamentadas no Brasil”.  Nesta entrevista, Gindre analisa experiências internacionais e os desafios brasileiros para a democratização da mídia.

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O jornalista Gustavo Gindre foi um dos palestrantes do 21º Curso Anual do NPC. Foto de Pablo Vergara.

Como você avalia a concentração da mídia no Brasil em relação aos Estados Unidos, por exemplo, a maior potência capitalista e neoliberal do mundo? O Brasil concentra mais do que eles?
Sem dúvida. O presidente que mais impôs limite à mídia estadunidense foi Richard Nixon, que é de direita. Quem começou a afrouxar isso foi Bill Clinton, que supostamente era um democrata. De lá para cá, esses limites têm diminuído e a concentração tem aumentado nos EUA. Na minha opinião, hoje em dia não se pode dizer que existe um país que tenha conseguido acabar com o monopólio midiático. Apesar disso, aqui no Brasil a gente consegue ser pior. Tínhamos meia dúzia de grupos, agora estamos aos poucos transitando com um único grande bloco, que é o grupo Globo. O Brasil vive um cenário extremamente preocupante. Daqui a pouco nem os canais da TV aberta, como SBT, Rede Bandeirantes, Record, vão estar disponíveis, eu acredito que eles vão ser varridos pela Globo. Ela vai ser a gigante do Brasil e vão restar apenas os grupos internacionais como o Google, o Facebook, o Youtube, que são muito mais difíceis de regular do que os nacionais.
Quais são os desafios de se regular essas mídias estrangeiras? É possível fazer regulação delas?
Essa é uma pergunta que está todo mundo se fazendo. Para entender, a questão é preciso pensar nas pautas. A agenda regulatória que a gente construiu no século XX estava muito ligada à comunicação eletrônica, que é de um para muitos: a TV aberta ou paga, o rádio, tem as pautas bem consolidadas (propriedade, classificação indicativa, cota de produção independente etc). Quando você vai para a internet, fica difícil responder a pergunta “como regular essas mídias?”. Alguns pontos já estão mais ou menos consolidados, como as regras de proteção à privacidade e a neutralidade de rede, por exemplo. Mas ainda é pouco. Em relação ao conteúdo, adianta ter cota de programação na internet? O conteúdo é acessado por demanda, então, acho que isso não resolve. Adianta impor à Netflix que tenha 10% de conteúdo brasileiro? Pode ter esse percentual e ninguém nunca acessar, porque não há demanda. É diferente de uma televisão aberta, que tem que oferecer e exibir conteúdo brasileiro. O que é por demanda, como fica? Esse é um desafio enorme que o mundo inteiro está debatendo.
Quais experiências latinoamericanas podem servir como exemplo para o Brasil?
A Argentina aprovou em 2009 a Lei dos Meios, que impõe uma série de limitações a empresas, por exemplo, um mesmo operador não pode deter licenças de rádio, TV e cabo. O Uruguai, que hoje tem quase 60% das residências com fibra ótica e tem uma legislação bem avaçada em radiodifusão – ainda que seja um país menor, com a população concentrada na capital, é uma baita conquista. O Equador avançou, a Venezuela conquistou um espaço importante com os avanços da mídia comunitária. Temos aqui vários bons exemplos. No entanto, reforço, nenhum país hoje – nem os ricos, nem os pobres – conseguiu vencer a  pauta da democratização dos meios de comunicação. Nesse contexto, o Brasil está bastante atrasado. Por exemplo, a ideia de se usar a radiodifusão para fazer proselitismo religioso é comum aqui. Em outros países é um absurdo, as pessoas ficam indignadas com um meio público sendo utilizado com essa finalidade. Outra programação, que causa espanto lá fora e que é comum no Brasil, são os noticiários policiais. Revelar identidade de suspeitos antes de serem julgados, expor vítimas e corpos em outros países é um crime gravíssimo e geraria altas multas e prejuízos às empresas de radiodifusão.
Isso é causado por uma carência de legislação ou a falta da aplicação dela?
No nosso caso é a carência de legislação, mesmo. As nossas leis são muito ruins. A única coisa que se tem é que um indivíduo não pode ter mais de cinco emissoras em VHF no nome dele, que é uma limitação imposta pela ditadura. De lá pra cá, não se tem quase nada. De todas as medidas que os países capitalistas adotam, como a cota de produção independente, limite à concentração de propriedade, a única que o Brasil conseguiu adotar foi a classificação indicativa, e agora corremos o risco de o Supremo Tribunal Federal derrubar. Então, a nossa lei é muito ruim, nós estamos muito longe de uma democracia, somos exemplo do que não deve ser feito.
Por que não se pode dizer que, no Brasil, a maioria da população tem “acesso” à internet?
“Ter acesso”, no Brasil, significa ter a infraestrutura da internet – que é o fio passando pela rua da sua casa – e não fazer uso da internet de fato. O fio pode até passar pela sua casa, mas se você não paga o provedor, não se conecta. Hoje muita gente não tem como pagar a assinatura da internet. Logo, ela não está universalizada. O governo usa muito o discurso de que a internet chegou a todos, principalmente pelo celular. Mas todo mundo sabe que o celular é muito mais lento e restrito do que uma conexão mais robusta em um computador. Por isso, o grande desafio é garantir que todos tenham real acesso à internet, com qualidade de rede e velocidade de conexão. A internet é o primeiro meio de comunicação bidirecional, o que é uma conquista enorme para a humanidade e que, para mim, é o grande legado do século XXI. Por outro lado, só isso não basta. Essa inovação traz uma série de desafios a serem vencidos.
Na sua opinião, a internet está universalizada?
O “estar na rede” envolve questões muito sérias. Não dá para simplificar e dizer que só porque as pessoas estão conectadas que o acesso está democratizado, universalizado. Isso é uma falácia. Mesmo que se resolvam os desafios que apontei acima, vai continuar existindo uma relação de poder na internet. Por exemplo, o meu blog é muito menos visitado do que o site do Globo.  Bem teoricamente, eu e o Globo somos iguais: um site com publicações. Mas a diferença no nível de visibilidade e na capacidade de propagar o conteúdo é brutal. Então, não basta só garantir acesso, tem que se pensar uma série de outras políticas para ir além.
De que forma o Marco Civil da Internet contribui para a luta por esse direito?
Garantir que a internet vai continuar sendo uma mídia essencialmente bidirecional, sem mediações técnicas (com a neutralidade de rede) ou de conteúdo (direito à privacidade), é fundamental. O Marco Civil da Internet é importantíssimo, mas dá conta apenas de algumas questões. De forma nenhuma ele resolve todo o conjunto de problemas. Ele contempla a proteção à privacidade dos usuários, a liberdade de expressão e retirada de conteúdo do ar, e a garantia da neutralidade de rede. São coisas básicas e fundamentais.  É um avanço significativo, mas os pontos abordados não esgotam o debate em torno dos direitos dos usuários. Ainda existem muitas outras questões a serem tratadas. A privacidade é um ponto compelxo que precisa ser mais aprodundado, por exemplo. Outro problema é que ainda carece de decreto.
Diante do contexto político atual, há alguma previsão de o Marco Civil ser regulamentado?
Acredito que não, e também não sei se seria bom ter um decreto agora. Muitas vezes a lei avança, nós ganhamos, mas vem a regulamentação que nos faz retroceder e nós perdemos. O governo está bastante recuado e, com um Congresso tão conservador como o atual, há o risco de ter um decreto que piore a lei. Talvez seja prudente esperar mais um pouco.

Qual o papel da esquerda frente à regulação dos meios de comunicação? O que se pode fazer na prática?
Essas questões, em grande medida, precisam de legislação e atuação forte do Estado. Já está claro que não temos apoio do governo para isso. Depois de 13 anos, ele não veio e não virá agora. Isso coloca um grau de dificuldade muito maior. Como é que você lida com um cenário em que o Estado não é seu aliado? A esquerda precisa pautar esse tema e criar cada vez mais instrumentos de pressão popular. Um exemplo disso é o movimento dos estudantes em São Paulo, contra a reorganização das escolas. O governador Geraldo Alckmin recuou diante das ocupações de alunos, pais e professores. A gente precisa de uma pauta avançada que construa ações concretas na Comunicação para forçar o governo a uma posição favorável aos nossos interesses. É uma luta difícil, que terá resultados a longo prazo, mas precisamos ao menos ir semeando para colher frutos em algum momento, seja através de debates, seminários como este curso do NPC, mobilizando, indo às ruas, protestando, enfim, disputando ideias e interesses na sociedade.
*Gustavo Gindre nasceu no Rio de Janeiro em 1969. É jornalista (UFF), mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ) e doutorando em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia (UFRJ). Ex conselheiro eleito para o Comitê Gestor da Internet no Brasil e integrante do Coletivo Intervozes. Ele também foi secretário-executivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e há mais de 20 anos se dedica ao tema. No Blog do Gindre – Comunicação como um direito humano inalienável, ele pratica sua militância, publicando artigos e reportagens sobre política nacional, internacional, o mercado das telecomunicações e regulação dos meios, políticas industriais e blocos econômicos e outros temas relacionados.

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