terça-feira, 15 de março de 2016

Vivemos um arquipélago de democracia - e mesmo esse arremedo corre sério risco neste domingo

Vivemos um arquipélago de democracia - e mesmo esse arremedo corre sério risco neste domingo

Flerte dos jornais e da opinião pública com o golpe apenas acelera processo de erosão dos valores que avançaram de modo titubeante desde 1985
   
Não temos uma democracia plena no Brasil. E sim algumas ilhas. Cada vez menores e mais escassas na medida em que se diminui a renda e se avança para as periferias – da cidade e do campo. Moradores de favelas, indígenas e camponeses experimentam menos os sabores de um regime que se propõe a respeitar direitos, oferecer alguma estabilidade, menos medo de que sejamos alvos de arbitrariedades.
Mesmo esse arremedo está em risco, neste março lúgubre de 2016. E muita gente não percebeu que defender algumas ilhas de legalidade não significa compactuar com quem usufrui dessas ilhas; e sim evitar que o processo seja ainda mais corrosivo. Que, no mínimo, esse arquipélago encolha, ou mesmo que seja solenemente eliminado, conforme as conveniências das elites que permitiram esses espaços de respiro.
A invasão de um encontro em um sindicato no ABC, na sexta-feira, salta como caso mais emblemático dessa ameaça. Quem tem memória e alguma noção do que significa uma verdadeira democracia sabe que vários sinais vermelhos foram ignorados. Mas há quem minimize. Muitas vezes com o argumento de que nas manifestações de 2013 ou, diariamente, nas favelas e grotões, muitos outros limites foram aniquilados.
Estão certos e estão errados. Estão certos porque, de fato, a juventude pobre e negra ou manifestantes indígenas ou vítimas dos megaprojetos de infraestrutura já sentiram na pele essas agressões – pois vivem fora dessas ilhas democráticas, ou em seus limites ambíguos. E estão errados porque defender as ilhas de quem usufruiu das benesses do sistema significa, por tabela, defender também os direitos dos excluídos.
De 1964 a 2016: a história do golpismo se repete como exploração da paranoia (Foto: Reprodução)
De 1964 a 2016: a história do golpismo se repete como exploração da paranoia (Foto: Reprodução)
Não se trata, portanto, de defender Lula, Dilma ou o PT porque se seja lulista, dilmista ou petista. E sim de impedir que destruam os frágeis pontos de contato com valores que celebramos em 1985. Significa defender respeito a eleições, ao voto, contra uma instantaneidade das decisões políticas que pouco tem a ver com esses valores. Significa perceber que não haverá alternância – e sim uma avalanche. Destruições.
Basta de golpismo
Um dos principais jornais do país, o Estadão, apresenta hoje em sua primeira página a síntese do avanço golpista. Título do editorial de primeira página: “Chegou a hora de dizer: basta!” É o mesmo imperativo do Correio da Manhã, em 1964, no dia em que militares e civis apeavam João Goulart do poder. E não porque Jango queria a revolução. Mas porque queria reformas de base, reforma agrária – reformas.
Como em golpes anteriores, o fantasma da “corrupção” é vendido como argumento para que se arrebentem os pactos democráticos. Esquece-se de contar ao cidadão que essa senhora precede e sucede cada governo de qualquer partido. Que ela continuará no próximo e no próximo. Porque ela representa uma força paralela ao mencionado arquipélago de legalidade; a força do capital, esse que destrói coisas belas.
Se vivemos nessas ilhas entristecidas de democracia é porque esse capital permitiu, por conveniência. Quando for conveniente a ele, as pulverizará. Cabendo aos habitantes utópicos desses territórios defendê-lo com unhas e dentes. E aqui chegamos a um problema crucial de nosso cenário político: aparentemente o arquipélago de democratas anda mais encolhido que o mosaico de democracia.

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Um exemplo prático: muita gente que defende a permanência da presidente eleita (com razão) e se revolta com a condução coercitiva de um ex-presidente (com razão) não se importaria de atentar contra essa mesma democracia caso os sinais fossem trocados. Caso, em vez de Lula ou Dilma, fosse FHC o alvo, a peça a ser destituída ou enfraquecida. Ou Alckmin. Ou Serra. Nossa democracia é uma bolinha de papel.
E o mesmo vale para outros personagens dessa comédia política. Da ambientalista com amnésia a usurpadores da palavra “socialista” ou “comunista”. Vale para personagens no campo da esquerda, para aventureiros instalados no PSOL ou para membros do PSTU que defendem o armamento das mulheres, com treinamento pelas forças policiais. Todos esses não entenderam nada da democracia, nada – e são muitos.
Reprodução

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Faz-se necessário, portanto, uma crítica da democracia cínica. Mas sem jogar fora o bebê junto com a água da bacia. Problema adicional: resistências impetuosas costumam oferecer armas e argumentos para o inimigo. Que se vangloriará (com seu cinismo amplificado em alto volume) de ter impedido que “vândalos” ou “terroristas” cheguem ao poder. Lógica às favas: a ditadura como solução para a democracia.
Mais ou menos como fizeram os promotores paulistas ao pedir a prisão de Lula. Arrebenta-se com o direito de um cidadão alegando que esse cidadão violará direitos, ou ateará fogo – com palavras – às instituições. Um equivalente político dos autos de resistência, as execuções feitas por policiais sob a alegação de que os perseguidos (inocentes ou criminosos, não importa) os estavam ameaçando – sem armas.
Vítimas sem hierarquia
As paixões políticas à direita (neste caso, contam-se nos dedos os verdadeiros democratas) e à esquerda não ajudam nada na compreensão desse fenômeno entrópico. Certos ativistas monotemáticos não se importam com o quadro geral, sob a curiosa alegação de que estão mais preocupados com as “suas” vítimas. Sejam eles defensores de povos originários, ou defensores de direitos humanos como um todo.
Falta a visão do conjunto. E esse conjunto é justamente aquele mosaico – ou aquele arquipélago. Para defendermos nossas ilhas é preciso fazer um exercício de abstração: perceber que o enfraquecimento das demais ilhas (ainda que abominemos seus habitantes e seus códigos) enfraquece a todos, oferece terreno para o avanço dos que não têm um mínimo de compromisso democrático.
Sim, este domingo é um dia triste. Porque muita gente com boas e sinceras intenções, mas sem alfabetização política, sairá às ruas com Ronaldo Caiado e com o Estadão, com Bolsonaro e a Fiesp, com corruptos de carteirinha interessados apenas em tomar posse do butim. Esses brasileiros estão redondamente enganados e também estarão entre as vítimas de nossa plutocracia irresponsável, predadora e violenta.
Da sabotagem à utopia
Estamos diante de uma coleção de sabotagens e sabotadores. Defender vítimas de sabotadores significa defender o próprio território, e não passar um cheque em branco no projeto político de algumas dessas vítimas. Significa salvar um ser humano prestes a ser atropelado (por pior que ele seja), significa que não compactuamos com linchamentos, trucidamentos e pelourinhos políticos.
“Somente aqueles que sejam capazes de encarnar a utopia estarão aptos para o combate decisivo, o de resgatar o quanto de humanidade tenhamos perdido” (Ernesto Sabato, “Antes do Fim”, 1998).
Isso vale para o que o escritor argentino chama de humanidade e vale para esse barco remendado que chamamos de democracia – porque é ela (ou ao menos seus espasmos) que nos permite o exercício pleno dessa humanidade.
Publicado originalmente em Outras Palavras

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