terça-feira, 3 de maio de 2016

A grande moléstia brasileira: como enfrentá-la

A grande moléstia brasileira: como enfrentá-la

O distúrbio político de hoje nada mais é do que mais um dos sintomas de uma grave moléstia contraída pela sociedade brasileira desde a colonização


Fábio Konder Comparato
Rovena Rosa / Agência Brasil
 
O distúrbio político desencadeado em 2016 com o processo por crime de responsabilidade aberto contra a Presidente Dilma Rousseff nada mais é, na verdade, do que o surgimento de mais um dos múltiplos sintomas de uma grave moléstia, contraída pela sociedade brasileira desde o início do processo de colonização de nosso território no século XVI. Se quisermos, portanto, começar a combater a enfermidade – o que vai se tornando sempre mais urgente neste início do século XXI –, não podemos nos limitar a encontrar paliativos para os sintomas no momento em que eles se declaram, mas sim compreender em profundidade a causa morbi.
 
Na verdade, trata-se de uma enfermidade permanente, cujo início data do próprio Descobrimento.
 
É o que ouso afirmar neste breve ensaio, focalizando especialmente um dos efeitos permanentes da enfermidade; a saber, a dupla vigência das nossas instituições políticas, uma oficial, pouco respeitada, e outra não oficial, mas que acaba sempre por se impor, pelo fato de corresponder aos interesses dos grupos dominantes em nossa sociedade.
 

Causas Históricas da Moléstia
 
A vigência efetiva e não meramente pressuposta das normas componentes do ordenamento jurídico oficialmente adotado em cada Estado depende, por inteiro, de dois fatores estruturantes, intimamente relacionados entre si. De um lado, a estrutura de poder efetivo em vigor nessa sociedade, estrutura essa organizada em forma hierárquica, em cujo ápice encontra-se o poder supremo ou soberania. De outro lado, a mentalidade coletiva, entendida esta como o conjunto dos valores éticos, sentimentos, crenças, opiniões e mesmo preconceitos, dominantes na sociedade, e que tendem a se consolidar em usos e costumes.
 
Criou-se, destarte, em vários países, uma duplicação anômala de ordenamentos jurídicos: um, declarado oficialmente pelo Estado, a culminar com o sistema constitucional; outro, composto por uma interpretação seletiva de normas, efetuada pelos agentes estatais – notadamente magistrados judiciais –, interpretação essa que sempre favorece os interesses próprios dos potentados econômicos privados, não sendo repudiada pela consciência coletiva.
 
É à luz desses dois fatores estruturantes da ordem social, que podem ser melhor compreendidas as peculiaridades da sociedade brasileira.
 
A realidade social por trás do direito positivo
 
Bem examinada nossa sociedade, não é difícil perceber que a sua estrutura foi moldada, genericamente pelo espírito e o sistema de poder, próprios da civilização capitalista; e especificamente, pelas instituições da escravidão e do latifúndio.
 
Com efeito, diversamente do que sucedeu no Velho Mundo, as sociedades criadas no continente americano foram inteiramente estruturadas pelo capitalismo, que dominou toda a política de colonização no Novo Mundo.
 
As marcas indeléveis dessa gênese capitalista são evidentes nos dois grandes fatores estruturantes da sociedade brasileira: a relação de poder e a mentalidade coletiva.
 
O poder soberano entre nós, desde os tempos coloniais, foi fundamente marcado pela doação de terras públicas aos senhores privados, e pela mercantilização dos cargos públicos. Desde a dinastia de Avis, em Portugal, que inaugurou pioneiramente, já no século XIV, o sistema de capitalismo de Estado, os monarcas, para enfraquecer o poder nobiliárquico, passaram a vender cargos públicos a membros da burguesia. No Brasil colônia, tirante os Governadores Gerais e mais tarde os Vice-Reis, praticamente todos os cargos públicos foram comprados por burgueses, que para cá vieram no intuito de amortizar a despesa de aquisição de tais cargos e fazer fortuna. Tais funcionários, aqui instalados, longe de toda fiscalização da metrópole, tornaram-se de fato, embora não de direito, um estamento de “donos do poder”, como os qualificou Raymundo Faoro.
 
Não é, pois, de estranhar se, desde as origens, a dupla formada pelos potentados econômicos privados e os agentes estatais passou a servir-se do dinheiro público como patrimônio próprio dessa associação oligárquica, gerando a duradoura endemia da corrupção estatal. Ela principiou, na verdade, desde o início da colonização. Quanto Tomé de Souza chegou à Bahia em 1549, instaurando o Governo-Geral, acompanhava-o, na qualidade de ouvidor-geral, o desembargador Pero Borges. Ora, este mesmo alto personagem, em 1543, enquanto exercia o cargo de Corregedor de Justiça em Elvas, no Alentejo, fora encarregado de supervisionar a construção de um aqueduto. Quando as verbas se esgotaram sem que este estivesse pronto, “algum clamor de desconfiança se levantou no povo”, como refere Vitorino de Almeida em Elementos para um dicionário de geografia e história portuguesa, editado em 1888. Aberta pelo rei uma investigação, averiguou-se que Borges “recebia indevidamente quantias de dinheiro que lhe eram levadas a casa, provenientes das obras do aqueduto, sem que fossem presentes nem o depositário nem o escrivão”. Em 1547, ele foi finalmente condenado “a pagar à custa de sua fazenda o dinheiro extraviado”. Pero Borges retornou a Lisboa, “deixando atrás de si triste celebridade”. No entanto, em 17 de dezembro de 1548, um ano e sete meses após a sentença, foi ele nomeado pelo mesmo rei ouvidor-geral do Brasil. Ou seja, para o monarca lusitano, o mau ladrão na metrópole podia ser um bom administrador na colônia.
 
Com a criação, desde os primeiros tempos coloniais, dessa oligarquia binária – potentados econômicos privados e agentes estatais – estabeleceu-se, por via de consequência, uma dualidade permanente do ordenamento jurídico entre nós: um oficial, em grande parte de mera aparência, e outro efetivo, mas sempre dissimulado. 
 
Representa, na verdade, um dos múltiplos ludíbrios do sistema de dominação capitalista sustentar que ele independe do Estado e se esforça por limitar o poder estatal, em nome da livre iniciativa. A realidade sempre foi bem outra. Como advertiu o grande historiador francês Fernand Braudel, “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”.
 
Concomitantemente, na consciência dessa dupla oligárquica sempre preponderou um certo complexo de país colonizado ou, como disse Sérgio Buarque de Holanda, um sentimento de vivermos desterrados em nossa própria terra. Assim, as Constituições aqui promulgadas sempre seguiram um modelo estrangeiro, vigente em país que considerávamos culturalmente superior ao nosso. Nossos oligarcas jamais se preocupassem em saber se tal modelo podia ou não se adaptar à realidade brasileira.
 
A Constituição Federal de 1988, tal como as anteriores, principia declarando que “todo poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único). Infelizmente, porém, trata-se de afirmação meramente retórica. Em todo o curso de nossa História, o povo jamais exerceu um poder efetivo, contentando-se, ultimamente, em ser um figurante indispensável do teatro político. 
 
Em homenagem à moderna democracia direta, já em vigor em alguns países do Ocidente, os constituintes brasileiros decidiram adotar os institutos do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular legislativa (art. 14). Mais adiante, porém, no art. 49, inciso XV, fizeram questão de precisar que, entre os poderes da “competência exclusiva do Congresso Nacional”, inclui-se o de “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, a Constituição Brasileira vigente criou uma espécie original de mandato político, no qual o povo mandante somente pode manifestar legitimamente suas declarações de vontade, quando obtém o consentimento do mandatário.
 
Quanto ao projeto de lei de iniciativa popular, o art. 61, § 2º da Constituição exige seja ele “subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Ora, quando os grupos oligárquicos perceberam que tal exigência podia ser cumprida, não tiveram dúvidas: fizeram com que a Câmara dos Deputados impusesse o requisito formal do reconhecimento de firma de todos os signatários do projeto; o que tornou na prática impossível o cumprimento da norma constitucional. Resultado: até hoje, mais de um quarto de século depois de promulgada a Constituição, nenhuma lei exclusivamente de iniciativa popular foi votada em nosso país.
 
No tocante à chamada “democracia representativa”, inaugurada pela classe burguesa dominante na Europa e nos Estados Unidos no final do século XVIII, e aqui instaurada constitucionalmente, ela se funda, na verdade, em grosseiro equívoco, agudamente denunciado por Rousseau:
 
“A Soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não pode ser alienada: ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa de forma alguma: ela é a mesma, ou é outra; não há meio-termo”.
 
Em suma, como afirmou com razão Sérgio Buarque de Holanda, a democracia em nosso país sempre foi “um lamentável mal-entendido”. Eis a razão principal do medíocre respeito que têm merecido os direitos humanos no Brasil: da mesma forma que a soberania popular, as declarações constitucionais de direitos humanos têm sido em grande parte retóricas, pois o seu respeito efetivo pressupõe uma limitação ao exercício do poder na sociedade; o que contraria frontalmente o sistema de dominação capitalista.
 
Se o esquema de poder político, como se vê, segue fielmente o padrão dissimulatório capitalista, os valores fundamentais que moldam a mentalidade coletiva não são outros, senão aqueles desde sempre sustentados pelos grupos dominantes, e que acabam permeando a consciência popular.
 
Até meados do século passado, entre nós, o poder de formar a mentalidade coletiva foi predominantemente exercido pela Igreja Católica, intimamente associada aos órgãos estatais, através da instituição do padroado. Por isso mesmo, a pregação eclesiástica sempre enfatizou como pecado grave o desrespeito do que se qualificava como “ordem pública”; entendida como a completa submissão de todos os fiéis às autoridades políticas, com a consequente aceitação, sem ressalvas, do conjunto das instituições econômico-sociais, inclusive a escravidão. 
 
Atualmente, a inserção dos valores capitalistas na consciência coletiva é feita, sobretudo, por intermédio dos meios de comunicação de massa, cujos principais veículos – grande imprensa, rádio e televisão – estão submetidos ao controle de um oligopólio empresarial.
 
Como tive ocasião de sustentar, em agudo contraste com o que ocorreu em todas as civilizações anteriores, na civilização capitalista sempre predominou a moral do egoísmo, sendo a busca incessante do interesse material de cada um a finalidade última da vida. Aristóteles, é verdade, já havia reconhecido que, contrariamente à moral prevalecente em sua época, “a maior parte da humanidade prefere o ganho material à honra”. Na civilização capitalista, contudo, vai-se mais além: ser rico é ser honrado e respeitado pelos pobres. 
 
Duas características desse espírito egoísta marcaram profundamente a sociedade brasileira em todos os seus aspectos: o individualismo e o privatismo.
 
Sérgio Buarque de Holanda, entre outros intérpretes clássicos da realidade brasileira, caracterizou o nosso individualismo pela tibieza do espírito de organização, fruto da ausência de solidariedade e, portanto, de coesão social. Tal foi, na verdade, o resultado em nosso meio de uma estrutura patrimonialista fortemente dissociativa. De um lado, a grande massa dos pobres só é, por assim dizer, ajuntada pela força do patrão ou do governo, o grande patrão impessoal. Já a minoria rica e poderosa, até hoje, mantém-se unida tão-só para a defesa de seus privilégios patrimoniais e posições de mando. Garantidos estes, cada empresário procura dominar seu concorrente, a fim de lograr o monopólio do mercado.
 
De onde a tradicional ausência em nossa sociedade do espírito republicano; ou seja, a constante submissão da vida pública à esfera privada.
 
Como já havia salientado Frei Vicente do Salvador, em passagem tantas vezes citada do seu livro,cuja primeira edição data de 1627, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.
 
Duas instituições históricas moldaram profundamente o espírito privatista do poder político e dos costumes sociais no Brasil: a escravidão e o latifúndio. Entre seus múltiplos efeitos, a perdurar ainda hoje, está a convicção arraigada na mentalidade coletiva de que negros e pobres não têm propriamente direitos subjetivos, mas podem eventualmente gozar de favores pessoais, concedidos pelos patrões ou chefes políticos.
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