Agonia e êxtase
do liberalismo decadente
Tarso Genro
Piero Gobetti (1901-1926), autor entre
outros de “La RivoluzioneLiberale”(abril de 1924), jornalista e intelectual
antifascista faleceu muito jovem. Morreu no exílio francês, com seu estado de
saúde agravado, depois de ter sido violentamente agredido
por uma quadrilha fascista. A agressão prenunciava o que seria a ditadura de
Mussolini, a partir do Golpe de Estado -progressivo e com apoio das forças da
aristocracia industrial-latifundiária italiana- concretizado em 30 de outubro
de 1922. Os Golpes de Estado - parece que só não sabem os juristas “liberais” e
colunistas da grande mídia - nem sempre são golpes militares ou provenientes de
ações armadas das forças de segurança.
O livro do jovem jornalista e
intelectual Piero Gobetti é daquelas obras que iluminam uma época. Aos 23 anos,
com seu “ensaio sobre a luta política na Itália”, o autor interpretou a
realidade política nacional pré-Mussolini -defendendo os valores da democracia-
com seus textos publicados pouco antes do assassinato, pelos fascistas, do
Secretário do Partido Socialista Unitário, GiácomoMatteotti. Uma sociedade
“liberal”, para Gobetti, seria sempre uma comunidade de “dissidentes”
integrados pela tolerância (sua marca distintiva do que ele dizia ser o
movimento comunista da época), que atualizaria o humanismo renascentista.
Gobetti criticava duramente a acomodação da maior parte da burguesia italiana
aos ritos de dominação do passado, pois era um republicano, que a seguir pagou
com a vida o seu alinhamento com as forças da emancipação e da democracia.
É impossível comparar o jornalista
Gobetti com qualquer letrado colunista da nossa grande imprensa “imparcial”,
mesmo porque ele também não o era. Com uma diferença substancial: Gobetti, se não
esteve onde depois estaria Stalin, também jamais aceitaria Bolsonaro e Cunha
como seus companheiros de causa, que os propagandistas da derrubada da
Presidenta Dilma fazem de conta que não existe, embora muito raramente, em
relação a ele, registrem educadas demarcações, que não lhes tiram a alegria de
estarem juntos na cruzada golpista.
Para a direita autoritária italiana,
Mussolini chegou ao poder, a “convite” do Rei Vitório Manuel III, de maneira
legítima. Mesmo que ele tenha aproveitado o ambiente de crise mundial -que
sucedeu a hecatombe sanguinária da Guerra de 1914/1918- no qual as esquadras do
“Duce” criaram um pesadelo de violência sem lei, um ambiente de insegurança
social e radicalização política, através de um estudado processo de debilitamento
da Constituição e da autoridade do Estado, com a complacência de setores do
“liberalismo” no Governo (temerosos da “ameaça comunista”), postura covarde que
alimentou o golpe nas instituições democráticas, na época em fase de afirmação.
Hoje o liberalismo político, originário
da ilustração e do iluminismo, na sua vertente de direita, recorre ao fascismo
somente como tropa de choque residual, pois tem outros meios e outros apoios
para assumir o poder por meios ilegais. A “sociedade espetáculo”, o controle da
informação (e da versão) e a dinheirização da política (que compra até partes
dos grupos que se outorgam democratas de esquerda) são as armas mais potentes
para levar qualquer crise ao paroxismo e substituir governos, sem que seja
necessário apresentar qualquer programa alternativo para solucioná-la, ou mesmo
exercitar um ato concentrado de violência, para ocupar o Estado. Aliás, este já
está controlado, de fato, pelas normas ditadas pelo capital financeiro, através
do domínio que ele exerce sobre a dívida pública.
Recentemente um jovem estudante de
História da UERJ, fez uma síntese magnífica do que seria o propósito dos
liberais brasileiros, na etapa atual da luta política nacional, reconhecendo a
excelência dos trabalhos que já vem sendo feitos por alguns “thinkthanks” do
país - Instituto Von Mises, Instituto de Formação de Líderes, Instituto
Millenium, Instituto Liberal - numa voluntária confissão pública da estratégia
dos indutores superiores do golpismo. “Dilma vai cair e agora o inimigo é
outro” - diz o bom moço - acusando a CUT, MTST, CONTAG, MST e a UNE, de
propagarem uma ideologia “sanguinária e nefasta”, aduzindo que não adianta
cassar a Presidenta “se não realizarmos uma faxina nessas áreas”. A palavra
“faxina”, quando usada como expressão vulgar da teoria política, é um termo
cujo significado mais próximo é a “limpeza”, tão cara aos nazifascistas de
todas as épocas.
O texto, na verdade, é medíocre. Não
traz nada de novo em matéria de elaboração, mas faz uma notícia do que pensa a
inteligência liberal do país, no período histórico de dominação estrutural do
capitalismo financeiro sobre a vida pública. Nesta época, o liberalismo
político esgotou-se de forma completa e o seu simulacro neoliberal se tornou um
mero repassador econômico das necessidades imediatas do mercado, outorgando ao
Estado -na sua função ideal- um papel intervencionista exclusivo para
acumulação privada “sem trabalho”, através do rentismo. O Estado de Direito não
pode ser um obstáculo para este processo e as proibições, ao aparelhamento
completo do Estado pelo capital financeiro, devem ser arredadas pela “exceção”.
O ajuste se torna a norma fundamental e Kelsen deve ser substituído por Von
Mises.
Cabe salientar que, diferentemente da
Itália nos anos 20, o que ocorreu no Brasil nos últimos dez anos, não foi nem
uma disputa pelo poder de Estado -por parte da esquerda e do centro
democrático- nem um confronto entre um projeto socialista clássico e o
capitalismo. O que tivemos foi uma disputa política, com as suas mazelas e
grandezas, em torno da possibilidade de recuperação das funções públicas do
Estado e do alargamento da mesa democrática, visando à participação dos pobres
e dos trabalhadores na democracia social. Uma disputa política que promoveu a
interrupção moderada do processo de privatização do Estado e que permitiu a
criação de mecanismos educacionais, de financiamento e culturais, para um
ascenso, não mais molecular dentro da pirâmide de classes, mas mais massivo em
direção ao mercado, de milhões de brasileiros que vegetavam na miséria ou na
pobreza extrema. Nem isso as classes dominantes brasileiras aceitaram, pois
quando a crise mundial apresentou-se por inteiro, suas elites dirigentes que
nunca se preocuparam com a moralidade pública, passaram a apontar os mecanismos
de corrupção, que eles mesmo criaram ao longo da História (e que setores do PT
acessaram com galhardia), como motivação para a derrubada da Presidenta.
Não interessam a essas elites, na
verdade, as “filigranas” jurídicas, se existe ou não crime de responsabilidade,
se a presidenta cometeu ou não algum outro crime. A forma pela qual essa elite
dirigente hoje acessa ao poder, para reorganizar a sua dominação plena sobre
sobre o Estado, se apoia em outros protocolos de legitimação. Os “golpes
militares” não servem mais de instrumento, não só porque dificilmente os
militares aceitariam “doar” o pré-sal -com privatizações simuladas- para
refinanciar a economia (na verdade refinanciar a dívida pública), como também
não aceitariam apoiar uma ruptura violenta da legalidade, comprometendo-se com
a repressão, que seria necessária, para estabilizar um Golpe de Estado
clássico. Mesmo porque, o que está em jogo, no país de hoje, não é uma disputa
pelo socialismo, mas sim uma disputa pelo futuro da república e da democracia, nas
quais as Forças Armadas sempre terão um papel relevante.
Na verdade, a agonia do projeto
democrático liberal, em escala global, é o êxtase do neoliberalismo e do
rentismo. Dilma chegou ao Governo no período em que esta agonia passou a se
expressar intensamente na nossa economia. Época em que neoliberalismo se
empenha em substituir a utopia da esquerda, de uma sociedade sem classes, por
uma sociedade aparentemente “desclassificada”, na qual todos se igualam na
expectativa do consumo, mas se diferenciam radicalmente na possibilidade da sua
fruição. As políticas de inclusão social ou as políticas compensatórias, com
esse projeto, só são suportáveis na medida em que não comprometam o pagamento
da dívida pública e a transferência da renda financeira, que ele promove, do
setor do trabalho produtivo para o setor financeiro, que acumula sem trabalho.
O sentimento anticorrupção, que tomou as
ruas num dado momento, devidamente manipulado pela grande mídia, foi a
sinalização política para uma grande composição destinada a isolar o Governo
Dilma e destruir o PT, protagonista das tímidas reformas sociais que estiveram
em curso: o oligopólio da mídia (coordenado pela Rede Globo), dirigentes
políticos de vários partidos, intelectuais “liberais” cheios de ódio à esquerda
e a ampla maioria da elite econômica do país -tanto a rentista como a burguesia
subsidiada da Avenida Paulista- conseguiram motivar um bloco político original.
Conseguiram unir a parte mais investigada e processada do Governo Dilma, com a
oposição neoliberal mais denunciada e processada pela Justiça, para redimir o
Brasil da corrupção! A expressão “Cunha nos representa” e a palavra de ordem
“sonegação é legítima defesa”, tomaram conta dos ideais que movimentaram as
classes médias, quando o ódio de classe passou a ser o maior fator de unidade
moral e política das ruas.
Pregaram uma peça na classe média alta,
arrastaram alguns setores da população, cansados da crise e da inércia do
Governo perante a mesma, chegando a imitar, em alguns momentos, a “Marcha sobre
Roma”. A movimentação só não descambou para a violência de rua generalizada,
por dois motivos: primeiro, porque o comando golpista conseguiu maioria para o
impedimento da Presidenta com mais rapidez do que previam, num Parlamento que é
símbolo do atraso do nosso sistema político; segundo, porque a reação popular
ao golpe se disseminou, rapidamente, na base da sociedade, mostrando que grande
parte dela não troca a soberania popular pelo falso atalho do golpismo
redentor.
O resultado de tudo isso -se o
“impeachment” vencer- colocará na liderança do país Temer, Cunha, Padilha,
Gedel, Agripino, com apoio de Aécio e Fernando Henrique, o que não só não
significa nenhuma renovação, mas também não demarca em nada contra a corrupção,
mas, ao contrário, abre a possibilidade de uma nova época de inércia perante a
mesma, ou até mesmo de obstrução dos trabalhos daquela parte da burocracia
estatal realmente interessada em persegui-la, independentemente da sua maior ou
menor proximidade ideológica com a oposição ou com o Governo. O golpismo renova
a corrupção e não a sanidade do Estado e o liberalismo político, travestido de
economicismo rentista, não renova a “classe dirigente”, mas consolida a
hegemonia do atraso e da submissão.
O grande problema é o que faremos de
tudo isso, num momento em que os pressupostos da soberania popular mantêm as
“regras do jogo”, mas se relativizam, e o oligopólio da mídia se transformou
realmente no partido “novo tipo” da dominação do capital financeiro, quando as
próprias classes dominantes reafirmam seu poder -por dentro dos estatutos da
democracia formal- com uma enorme capacidade hegemônica. Esta capacidade não é
ilimitada, mas foi capaz de promover “exceções não declaradas” e um golpe por
dentro do Parlamento, num contexto em que o próprio partido de esquerda, mais
importante da época, perdeu a sua capacidade dirigente e “queimou” seu período
áureo, pelo uso dos métodos tradicionais de gestão política do Estado, próprios
dos seus inimigos e adversários.
Votado o afastamento da Presidenta
teremos um Governo ilegítimo, mas não é um Governo de força constituído por um
golpe militar. Trata-se da vitória de um golpismo inovador, no qual os
predadores do Estado -representantes do capital que acumulam através do
controle da dívida pública- recuperaram a hegemonia e o controle político do
Estado, que tinham momentaneamente acordado ceder para Governos de corte mais
popular e mais democrático, pressionados por eleições legítimas. Trata-se de
uma luta que deve se dar dentro dos parâmetros da Constituição e da Democracia,
na cena pública das ruas, nos processos eleitorais, no Parlamento e nas
instituições da sociedade civil, de fora para dentro do Estado e no interior do
aparato estatal.
O Partido dos Trabalhadores -o meu
Partido- deve ser um dos integrantes desta nova força social e política, que
deve surgir para enfrentar um processo de longo curso, mas que não tem, no
presente, nem capacidade institucional, nem autoridade política para ser o seu
centro. Esse novo controle deve vir de” baixo para cima”, para, em algum
momento, constituir-se como força frentista de natureza eleitoral, com vocação
de ser poder republicano. Uma Frente que reúna lideranças como de Bresser a
Ciro, de Lula a Requião, de Jean Whyllis a Randolfe Rodrigues, de Stédile a
Boulos, de Jandira Feghalli a Fernando Haddad, de Luiza Erundina a Roberto
Amaral, buscando na academia, nos movimentos sociais e nos centros de
inteligência democráticos que existem no país, subsídios para um programa
econômico e social, que seja passível de ser aplicado num horizonte próximo,
política e economicamente viável, para enfrentar os estragos que se avizinham e
recuperar a utopia democrática. Lembremo-nos que o “ajuste” não será somente
devastação e que esta será direcionada, especialmente, contra o campo popular,
mas ele -o ajuste- também cria a sua própria base social de apoio e militância,
que corteja as beiradas do rentismo e as políticas compensatórias que o
acompanham. É o fim de um ciclo, mas não é o fim da democracia.
* Tarso Genro foi Governador do Estado
do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro
da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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