Anatomia do golpe: as pegadas
americanas
Tereza Cruvinel
“O golpe em curso no Brasil é
sofisticada operação político-financeira-jurídico-midiática, tipo guerra
híbrida. E será muito difícil deslindá-la", diz o jornalista Pepe Escobar.
E mais difícil fica na medida em que surgem contradições entre seus próprios artífices.
A enxurrada de conversas que Sergio Machado, ex-presidente da TRANSPETRO e um
dos operadores do Petrolão, teve e gravou com cardeais do PMDB, induz à
ilusória percepção de que o impeachment da presidente Dilma Rousseff foi apenas
um golpe tupiniquim, armado pela elite política carcomida para deter a
Lava-Jato e lograr a impunidade. O procedimento “legal” que garantiu a troca de
Dilma por Temer, para que ela faça o que está fazendo, foi peça de operação
maior e mais poderosa desencadeada ainda em 2013 para atender a interesses
internos e internacionais. E nela ficaram pegadas da ação norte-americana.
Interesses internos: remover Dilma,
criminalizar o PT, inviabilizar Lula como candidato a 2018 e implantar uma
política econômica ultraliberal, encerrando o ciclo inclusivo e
distributivista. Interesses externos: alterar a regra do pré-sal e inverter a
política externa multilateralista que resultou nos BRICS, na integração
sul-americana e em outros alinhamentos Sul-Sul.
As gravações de Machado desmoralizam o
processo e seus agentes e complicam a evolução do governo Temer, mas nem por
isso o inteiro teor da trama pode ser reduzido à confissão de Romero Jucá, de
que uma reunião de caciques do PMDB, PSDB, DEM e partidos conservadores
menores, em reuniões noturnas, decidiram que era hora de afastar Dilma para se
salvarem. E daí vieram a votação de 17 de abril na Câmara, a farsa da comissão
especial e a votação do dia 11 de maio no Senado.
Um longo caminho, entretanto, foi
percorrido até que estes atos “legais” fossem consumados. Para ele contribuíram
a Lava-Jato e suas estrelas, a FIESP com seu suporte a grupos pró-impeachment e
o aliciamento de deputados, o mercado com seus jogos especulativos na bolsa e
no câmbio para acirrar a crise, Eduardo Cunha e seus asseclas com as pautas
bombas na Câmara. E também as obscuras, mas perceptíveis ações da NSA, Agência
Nacional de Segurança dos Estados Unidos, e da CIA, na pavimentação do caminho
e na fermentação do clima propício ao desfecho. Os grampos contra Dilma, autoridades
do governo e da Petrobras, os protestos contra o governo, o desmanche econômico
e a dissolução da base parlamentar, tudo se entrecruzou entre 2013 e 2016.
Se os que aparecem agora nas conversas
gravadas buscaram poder, impunidade e retrocesso ao país de poucos e para
poucos, os agentes externos miraram o projeto de soberania nacional e o
controle de recursos estratégicos, em particular o petróleo do Pré-Sal. Não por
acaso, a aprovação do projeto Serra, que suprime a participação mínima obrigatória
da Petrobras em 30%, na exploração de todos os campos licitados, entrou na
agenda de prioridades legislativas do novo governo.
Muito já se falou da coincidente chegada
ao Brasil, em agosto de 2013, de Liliana Ayalde como embaixadora dos Estados
Unidos, depois de ter servido no Paraguai entre 2008 e 2011, saindo pouco antes
do golpe parlamentar contra o ex-presidente Fernando Lugo. Num telegrama ao
Departamento de Estado, em 2009, vazado por Wikileaks, ela disse: “Temos sido
cuidadosos em expressar nosso apoio público às instituições democráticas do
Paraguai – não a Lugo pessoalmente”. E num outro, mais tarde: “nossa influência
aqui é muito maior que as nossas pegadas”.
O que nunca se falou foi que a própria
presidente Dilma, tomando conhecimento dos encontros queAyalde vinha tendo com
expoentes da oposição no Congresso, mandou um emissário avisá-la de que via com
preocupação tais movimentos. Eles cessaram, pelo menos ostensivamente. Ayalde
havia chegado pouco antes da Lava-Jato esquentar e no curso da crise
diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos, detonada pela denúncia do
Wikleaks de que a NSA havia grampeado Dilma, Petrobras e outros tantos. Segundo
Edward , o ex-agente da NSA que denunciou a bibilhotagem, “em 2013 o Brasil foi
o país mais espionado do mundo”. Em Brasília funcionou uma das 16 bases
americanas de coleta de informações, uma das maiores.
A regra de exploração do pré-sal e a
participação do Brasil nos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia.
China e África do Sul), especialmente depois da criação, pelo bloco, de um
banco de desenvolvimento com capital inicial de US 100 bilhões, encabeçaram as
contrariedades americanas com o governo Dilma.
Recuemos um pouco. Em dezembro de 2012,
as jornalistas Cátia Seabra e Juliana Rocha publicaram na Folha de São Paulo
telegrama diplomático vazado por Wikileaks, relatando a promessa do candidato
José Serra a uma executiva da Chevron, de que uma vez eleito mudaria o modelo
de partilha da exploração do pré-sal fixado pelo governo Lula: a Petrobras como
exploradora única, a participação obrigatória de 30% em cada campo de extração
e o conteúdo nacional dos equipamentos. Estas regras, as petroleiras americanas
nunca aceitaram. Elas querem um campo livre como o Iraque pós-Saddam. A Folha
teve acesso a seis telegramas relatando o inconformismo delas com o modelo e
até reclamando da “falta de senso de urgência do PSDB”. Serra perdeu para Dilma
em 2010, mas como senador eleito em 2014, apresentou o projeto agora encampado
pelo governo Temer.
No primeiro mandato, Dilma surfava em
altos índices de popularidade até que, de repente, a pretexto de um aumento de
R$ 0,20 nas tarifas de ônibus de São Paulo, estouraram as manifestações de
junho de 2013. Iniciadas por um grupo com atuação legítima, o Movimento Passe
Livre, elas ganham adesão espontânea da classe média (que o governo não
compreendeu bem como anseio de participação) e passam a ser dominadas por
grupos de direita que, pela primeira vez, davam as caras nas ruas. Alguns,
usando máscaras. Outros, praticando o vandalismo. Muitos inocentes úteis
entraram no jogo. Mais tarde é que se soube que pelo menos um dos grupos, o
MBL, era financiado por uma organização de direita norte-americana da família
Koch. E só recentemente um áudio revelou que o grupo (e certamente outros)
receberam recursos também do PMDB, PSDB, DEM e Solidariedade.
Aparentemente a ferida em Dilma foi
pequena. Mas o pequeno filete de sangue atiçou os tubarões. Começava a corrida
para devorá-la. A popularidade despencou, a situação econômica desandou, veio a
campanha de 2014 e tudo o que se seguiu.
Mas nesta altura, a espionagem da NSA já
havia acontecido, tendo talvez como motivação inicial a guerra do pré-sal.
Escutando e gravando, encontraram outra coisa, o esquema de corrupção. E aqui
entram os sinais de que as informações recolhidas foram decisivas para a
decolagem da Lava-Jato. Foi logo depois do Junho de 2013 que as investigações
avançaram. A partir da prisão do doleiro Alberto Youssef, numa operação que não
tinha conexão com a Petrobras, o juiz federal Sergio Moro consegue levar para
sua alçada em Curitiba as investigações sobre corrupção na empresa que tem sede
no Rio, devendo ter ali o juiz natural do caso. Moro havia participado, em
2009, segundo informe diplomático também vazado por Wikileaks, de seminário de
cooperação promovido pelo Departamento de Estado, o Projeto Pontes, destinado a
treinar juízes, procuradores e policiais federais no combate à lavagem de
dinheiro e contraterrorismo. Participaram também agentes do México, Costa Rica,
Panamá, Argentina, Uruguai e Paraguai. Teria também muitas conexões com procuradores
norte-americanos.
Com a prisão de Youssef, a Lava-Jato
deslancha como um foguete. Os primeiros presos já se defrontam com uma força
tarefa que detinha um mundo de informações sobre o esquema na Petrobras.
Executivos e sócios de empreiteiras rendiam-se às ofertas de delação premiada
diante da evidência de que negar era inútil, só agravaria suas penas. O estilo
espetaculoso das operações e bem-sucedida tática de comunicação dos
procuradores e delegados federais semeou a indignação popular. Vazamentos
seletivos adubaram o ódio ao PT como “cérebro” do esquema.
As coisas foram caminhando juntas, na
Lava-Jato, na economia e na política. A partir do início do segundo mandato de
Dilma, ganharam sincronia fina. Na Câmara, Eduardo Cunha massacrava o governo e
a cada derrota o mercado reagia negativamente. A Lava-Jato, com a ajuda da
mídia, envenenava corações e mentes contra o governo. Os movimentos de direita
e pró-impeachment ganharam recursos e músculos para organizar as manifestações
que culminaram na de 15 de março. A FIESP entrou de cabeça na conspiração e a
Lava-Jato perdeu todo o pudor em exibir sua face política com
a perseguição a Lula, a coerção para depor no Aeroporto de Congonhas e
finalmente, quando ele vira ministro, a detonação da última chance que
Dilma teria de rearticular a coalizão, com o vazamento da conversa entre os
dois.
No percurso, Dilma e o PT cometeram
muitos erros. Erros que não teriam sido fatais para outro governo, não para um
que já estava jurado de morte. Mas este não é o assunto agora, nesta
revisitação em busca da anatomia do golpe.
Em março, a ajuda externa já fizera sua
parte, mas as pegadas ficaram pelo caminho. O governo já não conseguia
respirar. Mas, pela lei das contradições, a Lava-Jato continuou assustando a
classe política, sabedora de que poderia “não sobrar ninguém”. É quando os
caciques se reúnem, como contou Jucá, e decidiram que era hora de tirar Dilma
“para estancar a sangria”.
Desvendar a engrenagem que joga com o
destino do Brasil desde 2013 é uma tentação frustrante. Faltam sempre algumas
peças no xadrez. Mas é certo que, ainda que incompleta, a narrativa do golpe
não é produto de mentes paranoicas. No futuro, os historiadores vão contar a
história inteira de 2016, assim como já contaram tudo ou quase tudo sobre 1964.
Nenhum comentário:
Postar um comentário