Chove dinheiro na austeridade
Lambança fiscal de Temer, o fracasso de Macri, a infecção global de juros negativos e a expansão mundial do gasto público anunciam o fim de uma era.
A indulgência da mídia com a lambança fiscal no país é reveladora da cumplicidade de certo jornalismo com o golpe que assaltou o poder democrático no Brasil há 40 dias.
E que há 40 dias e 40 noites faz chover dinheiro em Brasília.
Sitiado entre a impopularidade, o fisiologismo e a vassalagem à finança, o golpe se sustenta com padrões de gastos sem precedente em governos anteriores, acusados diuturnamente de irresponsabilidade nas contas públicas.
Guardiães da fé num paraíso pavimentado por populações a pão e água, colunistas econômicos mostravam-se implacáveis com as gestões progressistas nesse quesito.
Foram decisivos em contagiar empresários hesitantes à greve do capital, que paralisou a economia e construiu a profecia do caos.
Dilma Rousseff pode assim ser excomungada, jogada aos leões, por pecados supostos que o cerco a seu governo semeou.
A gastadora, enrustida em acrobáticas pedaladas -- das quais não se conseguiu prova nem a existência, muito menos a responsabilidade—não teria mais condições de dirigir uma nação carente de confiança, equilíbrio e austeridade.
Para o mercado retomar o investimento haveria de sair.
Assim se fez.
O que se seguiu, porém, exala um cheiro forte de enxofre que vem da sacristia, ao lado do altar erguido aos mercados racionais.
Ali os fundamentos do golpe tem sido violados de modo recorrente, com a profana cumplicidade das sentinelas na mídia.
A tradução contábil dessa ménage à trois, como se sabe, é que a previsão do déficit fiscal no governo da ‘gastadora’ Dilma praticamente dobrou na ‘austeridade’ do seu algoz.
Criou-se uma licença para a lambança de quase R$ 80 bilhões, totalizando um pontapé de R$ 170 bi no traseiro dos ratzinguers que ainda resistem nas redações.
Agora, o chefe da Casa Civil do golpe, Eliseu Padilha, já fala que ‘seria ótimo repetir o déficit de R$ 170 bi em 2017, conforme o Valor desta 3ª feira.
O golpe já autorizou reajustes constrangedores na folha do judiciário.
Comprou apoio dos governadores com R$ 50 bilhões de débitos facilitados.
Liberou R$ 21 bi do bloqueio provisório no orçamento deixado por Dilma.
Elevou em 12% o Bolsa Família --depois de a mídia demonizar os 9% fixados por ela antes do golpe.
No momento, assiste-se a uma liberação inédita e intempestiva de emendas parlamentares para deputados e senadores.
Brasília patina na lambança entre a oferta fisiológica de apoio e a demanda golpista.
A R$15, 3 milhões por cabeça, o golpe quadruplicou o valor médio das dotações previstas aos parlamentares, gerando uma concentração recorde de recursos para a Câmara e o Senado nesta época do ano.
Serão espetados, desse modo, mais R$ 9 bilhões entre o coração e a goela dos pregadores da austeridade.
Nesse São João fiscal, o estouro das contas não assusta mais quem devia.
A tolerância com o pecado a varejo, explicam colunistas da solução final, visa atingir a pedra filosofal de todos os males.
Qual?
A Constituição de 1988.
Entre as prioridades legislativas pós-impeachment está o projeto de um teto de ferro para os gastos públicos a partir de 2017.
O garrote vai ferir de morte a universalização dos direitos sociais incorporados à Carta de 88 pelo impulso do então vitorioso ciclo de lutas contra a ditadura.
Ou seja, a ‘gastança’ que se entrega agora com as duas mãos será tomado de volta com os dois pés.
No pescoço da população mais pobre. ‘Na hora propícia, haverá medidas impopulares’, confirmou Temer a uma plateia ansiosa de ruralistas, na 2ª feira.
O plano é reduzir em 30% o tamanho do Estado.
Um congelamento real de gastos sociais encolherá a participação relativa da saúde, da educação, das aposentadorias e outros benefícios no crescimento efetivo de receita em anos vindouros.
O excedente subtraído ao bem-estar social será transferido ao bem-estar antissocial.
Beneficiará os que vivem de juros da dívida pública e fazem disso seu elo com o país.
Os fins justificam o intermezzo da gastança, apressam-se em explicar os ratzinguers das redações.
Votado o impeachment, a boa doutrina cuidará de implantar as técnicas para extrair o suor adicional da população, sem ônus para o patrão.
Nisso se fia a consciência culpada das redações, mas a fé talvez não seja suficiente para materializar a alquimia esperta.
Experiências mais avançadas no mesmo rumo, com os mesmos ingredientes de sal grosso e açoite, ademais de levadas em ambiente político até mais favorável, patinam em pedagógica marcha à ré
O ‘chanceler’ Serra sabe do que se trata.
Seu amigo argentino, Maurício Macri, legitimado pelas urnas para reverter as bases da era Kirchner, jogou a toalha depois de seis meses de resultados econômicos pífios.
Relevantes, porém, para cravarem uma perda de 20% na aprovação ao seu governo.
Assumidamente neoliberal, Macri está fazendo uma baldeação a contragosto, do arrocho para algo mais perto do incentivo ‘populista’ ao consumo.
Lá como cá, competitivos gravatinhas das redações não se cansaram em pontificar a receita redentora inversa para os ‘desmandos do kirchnerismo’.
Até que o lacto-purga foi entronizada na Casa Rosada, em dezembro de 2015.
A saber: recuperar a confiança dos investidores limpando os desmandos fiscais (cortando subsídios), desregular intervenções heterodoxas nos mercados, arrochar assalariados e funcionalismo, vender e privatizar tudo o que restou, calar vozes críticas com a asfixia econômica e o cercear mídias não alinhadas --casos da TeleSur, de programas radiofônicos e jornais progressistas.
Lembra algo?
Efeitos colaterais seriam tratadas como tal: ossos do ofício.
Nivelado o terreno, a contração do gasto público despertaria a expansão saudável do investimento privado, e então o resto se arrumaria.
Macri esperou seis meses pelo acionamento hidráulico dessas comportas.
Mas a transposição para o vertedouro dos mercados perfeitos, cantado em verso e prosa pelo jornalismo conservador e os economistas de banco, não ocorreu.
Aconteceu outra coisa.
O amigo de Serra passou a ver as eleições legislativas de 2017 aproximarem-se perigosamente no horizonte, na razão inversa da dissipação dos seus índices de popularidade.
Em noventa dias de receituário ortodoxo, o número de pobres na Argentina aumentou em 1,4 milhão de pessoas.
O crescimento de cinco pontos fez a taxa de pobreza saltar para 34,5%.
Ao final do governo Cristina era de 29%, declinante.
Macri acaba de anunciar um reajuste nas aposentadorias que custará R$ 16 bilhões ao Tesouro.
Quer acudir depressa a anemia do consumo.
Com o mesmo objetivo ampliou a isenção do imposto de renda.
E vai devolver 15% de taxas sobre alimentos à população pobre.
O neoliberal, pelo qual o conterrâneo Papa Francisco não disfarça a antipatia, parece já não se importar com um déficit público que avança na direção inversa à indicada pelas sentinelas das redações.
A meta era reduzi-lo a 4,8% do PIB neste primeiro ano de governo, 1,2 ponto abaixo do ‘desgoverno Cristina’.
Em seu lugar brotou um esticão de 5,2% em relação ao primeiro semestre de 2015.
O fracasso em atrair investimentos com a retração do Estado desarranjou todo o edifício estratégico do arrocho argentino.
A montanha desordenada de ideologia e realidade apita alertas ao Brasil.
Há mais coisas entre o céu e a terra das quais depende a retomada do investimento do que o simplismo hidráulico em que se baseiam os sermões do púlpito midiático.
Por exemplo, há uma ordem econômica mundial que passou a fazer água desde o colapso financeiro de 2008 e nunca mais se recuperou.
A economia mundial deriva há oito anos.
Um divisor da história escava a sua dobra em nosso tempo.
Sem ceder à xenofobia que vende aos pobres a ardilosa versão de que o seu inimigo é o outro pobre de língua estranha, como diz Piketty, é preciso retomar o comando sobre o destino da sociedade.
A façanha só é plausível com ferramentas políticas que incorporem à soberania democrática a incidência do mercado global no local.
O laissez passer aos capitais voláteis –a desregulação da conta de capitais, um dos dogmas da cartilha neoliberal que até o FMI já questiona— sabota na origem esse requisito para inaugurar o passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
Ninguém vai comandar o próprio destino, nem as urnas, nem governos, nem Estados se essa nova ferramenta colonial do poder financeiro não for enfrentada.
É o nó górdio que a rudimentar singeleza do arrocho ortodoxo desdenha.
Os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, em dois artigos recentes no jornal Valor(‘Foi o patrão quem mandou’, de 07/06/2016 e ‘Admirável Mundo Velho’,28/06), mostram como esse constrangimento subverte mesmo os que se aplicam em fazer a lição de casa neoliberal.
No capitalismo ‘globalizado’,’financeirizado’, dizem eles, ‘as políticas econômicas "internas" estão limitadas pela busca de condições atraentes para os capitais em movimento’ (...) assim (...) a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas; ‘taxas reais de juros não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites exigidos pelos investidores .... a volatilidade dos fluxos financeiros (tornou-se assim) o fio desencapado que detona choques de juros na instância fiscal e traumas de valorização/desvalorização do câmbio, desorganizando as expectativas de longo prazo, leia-se, as decisões de investimento’. ‘A ocorrência desde 1980 de aproximadamente 150 episódios de convulsões associadas a fluxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard, Dani Rodrik, de que esses "dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional; eles são a história principal", enfatizam Belluzzo e Galípolo.
A captura da política monetária pela conta de capitais ajuda a entender como o Brasil, apesar de acumular superávits fiscais por 16 anos seguidos, entre 1998/2013, conforme Belluzzo e Galípolo, viu sua dívida, ainda assim, crescer do equivalente a 40% do PIB para 58% dele, mesmo com aumento de 6% da carga fiscal registrada no período.
A chave do paradoxo evidencia a inadequação do arrocho fiscal nos seus próprios termos.
Noventa por cento do déficit público brasileiro no 1º trimestre deste ano deve-se ao pagamento dos juros siderais da dívida, e não aos gastos adicionais com pessoal ou políticas de desenvolvimento.
Fosse o país dotado de um espaço ecumênico de mídia, capaz de debater as consequências desse ardil para o desenvolvimento, possivelmente a sociedade não estaria nesse momento refém de ‘salvadores’ da categoria de um Cunha ou um Temer.
Ou capturada por instituições sombrias, como o califado de Curitiba e uma Suprema Corte anexada aos violadores do Estado de Direito.
O dramático corte de direitos e investimentos previsto pelo golpe não vai destravar a encruzilhada em que se encontra o Brasil.
Deve agravá-la, como mostra a prefiguração argentina, pelo simples fato de que aprofundará a recessão e turbinará a incerteza, inibindo mais o investimento privado.
A anemia do comércio mundial fecha o lacre com duplo cadeado.
De um lado, a retomada pelas exportações fica mais difícil, sobretudo agora que o Brexit adicionou freios à já mitigada recuperação europeia.
De outro, a taxa de juros absurdamente elevada no Brasil entope o país de capitais especulativos, sem opção num mundo em que 30% dos títulos públicos oferecem remuneração negativa.
O resultado é a valorização do real, que dificulta adicionalmente a exportação e recoloca para o país a imperiosa necessidade de repactuar o motor do seu desenvolvimento.
O fiasco de Macri e a necrose europeia mostra que os mercados aos quais se pretende delegar o destino da sociedade, não vão a lugar algum sem políticas de Estado indutoras e garantidoras da estabilidade do investimento público e privado.
A pergunta a responder é qual Estado, mas ela não deve ser dirigida ao golpe, nem será respondida pelo jornalismo de arrocho.
A questão da democracia para quê, para quem e como é a esfinge que desafia as forças progressistas na questão crucial subjacente ao passo seguinte do desenvolvimento: quem terá o poder de decidi-lo?
A solução hidráulica com a qual a mídia doutrinou o debate econômico por aqui – ‘sai Estado, entra mercado; sai consumo, entra arrocho’— colide com o seu próprio sujeito.
É o que mostra a lambança fiscal de Temer, o recuo de Macri, a infecção de juros negativos no mundo (US$10 trilhões de títulos públicos pagam menos que a inflação) e a tendência global, pela primeira vez em seis anos, de que os gastos governamentais cresçam acima do PIB em 2016.
Vive-se, como se vê, uma travessia de época que o golpe prometeu equacionar empurrando o país na ladeira de onde o mundo tenta sair.
Não é tarefa para golpes, mas para uma repactuação corajosa entre desenvolvimento e democracia.
E que há 40 dias e 40 noites faz chover dinheiro em Brasília.
Sitiado entre a impopularidade, o fisiologismo e a vassalagem à finança, o golpe se sustenta com padrões de gastos sem precedente em governos anteriores, acusados diuturnamente de irresponsabilidade nas contas públicas.
Guardiães da fé num paraíso pavimentado por populações a pão e água, colunistas econômicos mostravam-se implacáveis com as gestões progressistas nesse quesito.
Foram decisivos em contagiar empresários hesitantes à greve do capital, que paralisou a economia e construiu a profecia do caos.
Dilma Rousseff pode assim ser excomungada, jogada aos leões, por pecados supostos que o cerco a seu governo semeou.
A gastadora, enrustida em acrobáticas pedaladas -- das quais não se conseguiu prova nem a existência, muito menos a responsabilidade—não teria mais condições de dirigir uma nação carente de confiança, equilíbrio e austeridade.
Para o mercado retomar o investimento haveria de sair.
Assim se fez.
O que se seguiu, porém, exala um cheiro forte de enxofre que vem da sacristia, ao lado do altar erguido aos mercados racionais.
Ali os fundamentos do golpe tem sido violados de modo recorrente, com a profana cumplicidade das sentinelas na mídia.
A tradução contábil dessa ménage à trois, como se sabe, é que a previsão do déficit fiscal no governo da ‘gastadora’ Dilma praticamente dobrou na ‘austeridade’ do seu algoz.
Criou-se uma licença para a lambança de quase R$ 80 bilhões, totalizando um pontapé de R$ 170 bi no traseiro dos ratzinguers que ainda resistem nas redações.
Agora, o chefe da Casa Civil do golpe, Eliseu Padilha, já fala que ‘seria ótimo repetir o déficit de R$ 170 bi em 2017, conforme o Valor desta 3ª feira.
O golpe já autorizou reajustes constrangedores na folha do judiciário.
Comprou apoio dos governadores com R$ 50 bilhões de débitos facilitados.
Liberou R$ 21 bi do bloqueio provisório no orçamento deixado por Dilma.
Elevou em 12% o Bolsa Família --depois de a mídia demonizar os 9% fixados por ela antes do golpe.
No momento, assiste-se a uma liberação inédita e intempestiva de emendas parlamentares para deputados e senadores.
Brasília patina na lambança entre a oferta fisiológica de apoio e a demanda golpista.
A R$15, 3 milhões por cabeça, o golpe quadruplicou o valor médio das dotações previstas aos parlamentares, gerando uma concentração recorde de recursos para a Câmara e o Senado nesta época do ano.
Serão espetados, desse modo, mais R$ 9 bilhões entre o coração e a goela dos pregadores da austeridade.
Nesse São João fiscal, o estouro das contas não assusta mais quem devia.
A tolerância com o pecado a varejo, explicam colunistas da solução final, visa atingir a pedra filosofal de todos os males.
Qual?
A Constituição de 1988.
Entre as prioridades legislativas pós-impeachment está o projeto de um teto de ferro para os gastos públicos a partir de 2017.
O garrote vai ferir de morte a universalização dos direitos sociais incorporados à Carta de 88 pelo impulso do então vitorioso ciclo de lutas contra a ditadura.
Ou seja, a ‘gastança’ que se entrega agora com as duas mãos será tomado de volta com os dois pés.
No pescoço da população mais pobre. ‘Na hora propícia, haverá medidas impopulares’, confirmou Temer a uma plateia ansiosa de ruralistas, na 2ª feira.
O plano é reduzir em 30% o tamanho do Estado.
Um congelamento real de gastos sociais encolherá a participação relativa da saúde, da educação, das aposentadorias e outros benefícios no crescimento efetivo de receita em anos vindouros.
O excedente subtraído ao bem-estar social será transferido ao bem-estar antissocial.
Beneficiará os que vivem de juros da dívida pública e fazem disso seu elo com o país.
Os fins justificam o intermezzo da gastança, apressam-se em explicar os ratzinguers das redações.
Votado o impeachment, a boa doutrina cuidará de implantar as técnicas para extrair o suor adicional da população, sem ônus para o patrão.
Nisso se fia a consciência culpada das redações, mas a fé talvez não seja suficiente para materializar a alquimia esperta.
Experiências mais avançadas no mesmo rumo, com os mesmos ingredientes de sal grosso e açoite, ademais de levadas em ambiente político até mais favorável, patinam em pedagógica marcha à ré
O ‘chanceler’ Serra sabe do que se trata.
Seu amigo argentino, Maurício Macri, legitimado pelas urnas para reverter as bases da era Kirchner, jogou a toalha depois de seis meses de resultados econômicos pífios.
Relevantes, porém, para cravarem uma perda de 20% na aprovação ao seu governo.
Assumidamente neoliberal, Macri está fazendo uma baldeação a contragosto, do arrocho para algo mais perto do incentivo ‘populista’ ao consumo.
Lá como cá, competitivos gravatinhas das redações não se cansaram em pontificar a receita redentora inversa para os ‘desmandos do kirchnerismo’.
Até que o lacto-purga foi entronizada na Casa Rosada, em dezembro de 2015.
A saber: recuperar a confiança dos investidores limpando os desmandos fiscais (cortando subsídios), desregular intervenções heterodoxas nos mercados, arrochar assalariados e funcionalismo, vender e privatizar tudo o que restou, calar vozes críticas com a asfixia econômica e o cercear mídias não alinhadas --casos da TeleSur, de programas radiofônicos e jornais progressistas.
Lembra algo?
Efeitos colaterais seriam tratadas como tal: ossos do ofício.
Nivelado o terreno, a contração do gasto público despertaria a expansão saudável do investimento privado, e então o resto se arrumaria.
Macri esperou seis meses pelo acionamento hidráulico dessas comportas.
Mas a transposição para o vertedouro dos mercados perfeitos, cantado em verso e prosa pelo jornalismo conservador e os economistas de banco, não ocorreu.
Aconteceu outra coisa.
O amigo de Serra passou a ver as eleições legislativas de 2017 aproximarem-se perigosamente no horizonte, na razão inversa da dissipação dos seus índices de popularidade.
Em noventa dias de receituário ortodoxo, o número de pobres na Argentina aumentou em 1,4 milhão de pessoas.
O crescimento de cinco pontos fez a taxa de pobreza saltar para 34,5%.
Ao final do governo Cristina era de 29%, declinante.
Macri acaba de anunciar um reajuste nas aposentadorias que custará R$ 16 bilhões ao Tesouro.
Quer acudir depressa a anemia do consumo.
Com o mesmo objetivo ampliou a isenção do imposto de renda.
E vai devolver 15% de taxas sobre alimentos à população pobre.
O neoliberal, pelo qual o conterrâneo Papa Francisco não disfarça a antipatia, parece já não se importar com um déficit público que avança na direção inversa à indicada pelas sentinelas das redações.
A meta era reduzi-lo a 4,8% do PIB neste primeiro ano de governo, 1,2 ponto abaixo do ‘desgoverno Cristina’.
Em seu lugar brotou um esticão de 5,2% em relação ao primeiro semestre de 2015.
O fracasso em atrair investimentos com a retração do Estado desarranjou todo o edifício estratégico do arrocho argentino.
A montanha desordenada de ideologia e realidade apita alertas ao Brasil.
Há mais coisas entre o céu e a terra das quais depende a retomada do investimento do que o simplismo hidráulico em que se baseiam os sermões do púlpito midiático.
Por exemplo, há uma ordem econômica mundial que passou a fazer água desde o colapso financeiro de 2008 e nunca mais se recuperou.
A economia mundial deriva há oito anos.
Um divisor da história escava a sua dobra em nosso tempo.
Sem ceder à xenofobia que vende aos pobres a ardilosa versão de que o seu inimigo é o outro pobre de língua estranha, como diz Piketty, é preciso retomar o comando sobre o destino da sociedade.
A façanha só é plausível com ferramentas políticas que incorporem à soberania democrática a incidência do mercado global no local.
O laissez passer aos capitais voláteis –a desregulação da conta de capitais, um dos dogmas da cartilha neoliberal que até o FMI já questiona— sabota na origem esse requisito para inaugurar o passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
Ninguém vai comandar o próprio destino, nem as urnas, nem governos, nem Estados se essa nova ferramenta colonial do poder financeiro não for enfrentada.
É o nó górdio que a rudimentar singeleza do arrocho ortodoxo desdenha.
Os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, em dois artigos recentes no jornal Valor(‘Foi o patrão quem mandou’, de 07/06/2016 e ‘Admirável Mundo Velho’,28/06), mostram como esse constrangimento subverte mesmo os que se aplicam em fazer a lição de casa neoliberal.
No capitalismo ‘globalizado’,’financeirizado’, dizem eles, ‘as políticas econômicas "internas" estão limitadas pela busca de condições atraentes para os capitais em movimento’ (...) assim (...) a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas; ‘taxas reais de juros não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites exigidos pelos investidores .... a volatilidade dos fluxos financeiros (tornou-se assim) o fio desencapado que detona choques de juros na instância fiscal e traumas de valorização/desvalorização do câmbio, desorganizando as expectativas de longo prazo, leia-se, as decisões de investimento’. ‘A ocorrência desde 1980 de aproximadamente 150 episódios de convulsões associadas a fluxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard, Dani Rodrik, de que esses "dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional; eles são a história principal", enfatizam Belluzzo e Galípolo.
A captura da política monetária pela conta de capitais ajuda a entender como o Brasil, apesar de acumular superávits fiscais por 16 anos seguidos, entre 1998/2013, conforme Belluzzo e Galípolo, viu sua dívida, ainda assim, crescer do equivalente a 40% do PIB para 58% dele, mesmo com aumento de 6% da carga fiscal registrada no período.
A chave do paradoxo evidencia a inadequação do arrocho fiscal nos seus próprios termos.
Noventa por cento do déficit público brasileiro no 1º trimestre deste ano deve-se ao pagamento dos juros siderais da dívida, e não aos gastos adicionais com pessoal ou políticas de desenvolvimento.
Fosse o país dotado de um espaço ecumênico de mídia, capaz de debater as consequências desse ardil para o desenvolvimento, possivelmente a sociedade não estaria nesse momento refém de ‘salvadores’ da categoria de um Cunha ou um Temer.
Ou capturada por instituições sombrias, como o califado de Curitiba e uma Suprema Corte anexada aos violadores do Estado de Direito.
O dramático corte de direitos e investimentos previsto pelo golpe não vai destravar a encruzilhada em que se encontra o Brasil.
Deve agravá-la, como mostra a prefiguração argentina, pelo simples fato de que aprofundará a recessão e turbinará a incerteza, inibindo mais o investimento privado.
A anemia do comércio mundial fecha o lacre com duplo cadeado.
De um lado, a retomada pelas exportações fica mais difícil, sobretudo agora que o Brexit adicionou freios à já mitigada recuperação europeia.
De outro, a taxa de juros absurdamente elevada no Brasil entope o país de capitais especulativos, sem opção num mundo em que 30% dos títulos públicos oferecem remuneração negativa.
O resultado é a valorização do real, que dificulta adicionalmente a exportação e recoloca para o país a imperiosa necessidade de repactuar o motor do seu desenvolvimento.
O fiasco de Macri e a necrose europeia mostra que os mercados aos quais se pretende delegar o destino da sociedade, não vão a lugar algum sem políticas de Estado indutoras e garantidoras da estabilidade do investimento público e privado.
A pergunta a responder é qual Estado, mas ela não deve ser dirigida ao golpe, nem será respondida pelo jornalismo de arrocho.
A questão da democracia para quê, para quem e como é a esfinge que desafia as forças progressistas na questão crucial subjacente ao passo seguinte do desenvolvimento: quem terá o poder de decidi-lo?
A solução hidráulica com a qual a mídia doutrinou o debate econômico por aqui – ‘sai Estado, entra mercado; sai consumo, entra arrocho’— colide com o seu próprio sujeito.
É o que mostra a lambança fiscal de Temer, o recuo de Macri, a infecção de juros negativos no mundo (US$10 trilhões de títulos públicos pagam menos que a inflação) e a tendência global, pela primeira vez em seis anos, de que os gastos governamentais cresçam acima do PIB em 2016.
Vive-se, como se vê, uma travessia de época que o golpe prometeu equacionar empurrando o país na ladeira de onde o mundo tenta sair.
Não é tarefa para golpes, mas para uma repactuação corajosa entre desenvolvimento e democracia.
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