quarta-feira, 6 de julho de 2016

'Governos autoritários começam cerceando a liberdade de expressão'


Boletim Carta Maior - 06 de Julho de 2016


'Governos autoritários começam cerceando a liberdade de expressão'

Eliminados os sites progressistas e a comunicação pública, haveria uma situação praticamente totalitária, na qual existiria apenas uma voz.


Redação

Foto de Beto Barata, montagem de Carta Maior

Por que o governo interino – e ilegítimo – de Michel Temer quebrou contratos na ordem de irrisórios R$ 11,2 milhões (0,6% do orçamento da SECOM em 2015) com as microempresas da mídia alternativa? Por que tamanho ataque, também, contra a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC?
 
Segundo Venício Lima, um dos maiores especialistas em democratização da comunicação no Brasil, “governos autoritários sempre começam cerceando a liberdade de expressão”. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, ele dimensiona o papel dos blogs e sites progressistas e comenta a guerra travada pelo oligopólio da comunicação contra qualquer iniciativa em prol da pluralidade e diversidade de vozes no país.








Confiram a entrevista:
 
Professor, qual sua avaliação sobre a quebra de contratos de publicidade entre as estatais e as microempresas da mídia alternativa?
 
Venício Lima – É preciso avaliar essa quebra de contratos no contexto mais amplo das medidas que o atual governo interino tem tomado. Não é por acaso que a comunicação alternativa ao discurso único da grande mídia foi um dos primeiros alvos desse governo. 
 
Isso ficou claro na intervenção ilegal na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), uma empresa de comunicação pública; e na suspensão, inclusive de contratos que estavam em vigência, com sites e blogs progressistas que fazem, justamente, a oposição a esse governo interino. 
 
Essa é uma característica dos governos autoritários. Eles sempre começam cerceando a liberdade de expressão. 
 
Podemos estabelecer um paralelo entre os governos brasileiro e argentino em relação às metidas tomadas na área da Comunicação? 
 
VL – Em relação à comunicação, sim. No entanto, Maurício Macri chegou ao poder de uma forma bastante diferente do que vimos acontecer neste governo provisório. Agora, quanto às medidas em relação ao cerceamento da liberdade de expressão e, sobretudo, ao cerceamento das vozes que fazem oposição ao governo, é possível fazer uma comparação.
 
Logo após ter chegado ao poder, imediatamente, o governo Macri tratou de desconstruir - e está desconstruindo - uma conquista histórica do povo argentino: a Lei de Meios (Ley de Medios). 
 
Como ele conseguiu isso? 
 
VL - Primeiro, tomando medidas por decreto; depois, aprovando no Congresso argentino, com a promessa de que vai reestruturar e apresentar uma nova proposta “mais ampla”, inclusive, sobre a questão digital. Desta forma, ele conseguiu aprovar a desestruturação completa dos principais parâmetros da Lei de Meios, favorecendo de maneira evidente o Clarín, principal grupo de comunicação argentino.
 
Por que esse ataque à mídia alternativa?
 
VL – O Brasil tem historicamente, há décadas, um sistema predominantemente privado, comercial, sustentado pela publicidade e consolidado em torno de pouquíssimos grupos familiares, vinculados às elites políticas regionais e locais. Estamos diante de um quadro de oligopólio, em uma área onde a existência de qualquer voz alternativa a esse oligopólio passa a ter uma relevância extraordinária.
 
Não é por acaso que, historicamente, sempre houve oposição à criação de uma comunicação pública. Também não é por acaso que, historicamente, esses grupos dominantes, que são pouquíssimos, implícita ou não implicitamente, sempre tiveram aliança com os governos.
 
Eles sempre lutaram contra a possibilidade de qualquer voz alternativa à deles, considerando a importância que a comunicação tem nas democracias representativas. Isso faz com que toda a possibilidade de voz alternativa ganhe importância e, também, que o combate contra ela aumente, porque ela é a única voz dissonante. 
 
Eu vejo essa possibilidade em apenas dois locais: na comunicação pública expressa pela EBC fundamentalmente, e nos chamados sites e blogs progressistas. 
 
O poder desses veículos é pequeno perto do poder desses oligopólios...
 
VL - É um poder pequeno, mas fundamental. Sites e blogs progressistas e a comunicação pública são o único respiro que existe diante da narrativa dominante da grande mídia. Isso incomoda, mesmo sendo uma luta de David contra Golias. 
 
Se você elimina esses sites e blogs e a comunicação pública, você vai viver uma situação praticamente totalitária, na qual haverá apenas uma voz. Esse é o grande problema. Muita gente não tem consciência do que está em jogo quando se combate a comunicação pública e os sites e blogs, discorde ou não das vozes que são representadas nesses espaços.
 
Existem, inclusive, mecanismos científicos que mostram, pelo acompanhamento da grande mídia, que ela é partidarizada. Isso não é uma novidade no Brasil. A diferença é que, antes, os instrumentos de verificação eram sempre condicionados. Hoje, você tem o Manchetômetro, do grupo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), liderado pelo professor João Feres.
 
Eles fazem o acompanhamento sistemático dos principais veículos da mídia dominante. Com clareza e instrumentos transparentes, qualquer pessoa pode ir lá e olhar. Eles mostram como a grande mídia age de forma seletiva e partidarizada. Ou seja, como exclui todas as vozes que não falam igual a ela. Do meu ponto de vista, essa é a pior de todas as corrupções: a corrupção da opinião pública. 
 
O fato é que com a comunicação pública (EBC) e os blogs progressistas, por menor que sejam, abre-se uma fenda, um respiradouro nessa dominância de uma narrativa única. É exatamente isso que eles combatem com tanta violência.

Além dos sites e blogs, a EBC também está sob ataque. Qual seu papel hoje?
 
VL - A EBC existe em cumprimento a um princípio constitucional. A Constituição de 88, inseriu no capítulo da comunicação - o artigo 223 -, o princípio da complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal. O sistema estatal já existia antes da Constituição de 88 e continua existindo. 
 
O sistema privado e comercial é um sistema dominante no Brasil desde a década de 1930, quando o governo Getúlio Vargas, logo após a Revolução de 30, fez uma opção que privilegiou a exploração privada. Aliás, isso é pouco estudado entre nós. Atendeu-se, ali, a pressões não só da política externa norte-americana, mas das grandes empresas estrangeiras que estavam investindo no Brasil, inclusive, fabricantes de equipamentos para a nascente indústria do rádio. 
 
Com essa opção pela exploração comercial como a única forma de fazer radiodifusão, o modelo norte-americano foi adotado. Isso não aconteceu no resto do mundo. A Inglaterra adotou, por exemplo, o modelo oposto. 
 
Décadas depois, em 1988, por iniciativa pessoal do então deputado do MDB do Rio, Artur da Távola, introduziu-se o princípio da complementariedade na Constituição. Há, inclusive, depoimentos posteriores dele que explicam qual era a intenção na época: a de equilibrar, a partir das novas concessões e das renovações de concessões, as forças dos sistemas público e privado. Como acontece em vários países do mundo, sobretudo na Europa. 
 
Então, a EBC surge depois de uma luta de décadas, em 2007-2008, como uma proposta do governo Lula para cumprir esse mandamento constitucional, de equilíbrio entre os sistemas público, privado e estatal. Principalmente, os sistemas público e privado. O sistema estatal, aliás, é demandado pela Constituição que exige a publicidade dos atos do governo para o conhecimento da cidadania. Isso existe nas democracias representativas do mundo inteiro.
 
Como se deu essa luta, na prática?
 
VL – Desde o seu início, a criação da EBC encontrou uma resistência enorme no campo do sistema privado. O governo Lula mandou uma medida provisória que tramitou no Congresso, sofreu emendas e foi aprovada, transformando-se em lei em abril de 2008. Um ano depois, a Folha de S. Paulo, em um editorial, pedia o fechamento da EBC. Agora, passados sete anos, no final de junho, repete o pedido, dizendo que passou da hora de pôr termo ao “desperdício de dinheiro público”, é mais ou menos nessa linha o editorial. A EBC surge, portanto, com forte oposição dos grupos privados que se opõem a tudo o que não seja igual a eles, a qualquer voz que não seja a deles. 
 
Vários problemas não conseguiram ser equacionados pela Lei que criou a EBC, até porque foi aproveitada uma estrutura pré-existente, da antiga Radiobrás, e a junção de estruturas legais paralelas é muito complicada. De qualquer maneira, mesmo reconhecendo todos os problemas ainda não solucionados, a EBC é um projeto de comunicação pública em implantação. E esse é um processo permanente de aperfeiçoamento e de correção. 
 
O fato é que a Lei 11.652/ 2008, que criou a EBC, também criou mecanismos que procuram garantir a autonomia e a independência da comunicação pública. Eles têm funcionado, sobretudo o Conselho Curador, formado por 22 membros, 4 representantes do governo, um da Câmara, um do Senado, um dos funcionários e 15 da sociedade civil, escolhidos a partir de uma disputa de indicações de entidades da sociedade civil. Esses indicados passam pelo próprio Conselho Curador que faz uma lista tríplice e a encaminha para nomeação pelo Presidente da República. 
 
Isso pode ser acompanhado?
 
VL - Qualquer pessoa interessada em ver como, de fato, funciona a EBC, pode consultar as atas do Conselho Curador. Vai ver, inclusive, que ele não é aparelhado como se diz por aí. Aliás, nos últimos 7 ou 8 anos, o Conselho tem sido um vigilante atento, fiscalizando e buscando formas de garantir a autonomia e a independência da empresa. 
 
Da mesma forma, a EBC tem uma ouvidoria autônoma que acompanha o conteúdo dos seus diferentes veículos, fazendo uma vigilância permanente. 
 
A EBC é uma empresa que expressa um projeto de comunicação pública que, apesar de imperfeito, tem mecanismos para a sua própria correção e aperfeiçoamento. É exatamente isso que vem sendo feito e faz com que ela sofra, como tem sofrido, uma campanha permanente de oposição da mídia comercial dominante e, evidentemente, de seus porta-vozes.
 
Por que tamanha timidez dos governos Dilma e Lula na consolidação da mídia alternativa?
 
VL - Essa é uma questão fundamental que eu nunca soube responder e, também, nunca consegui que alguém me respondesse. Por que os governos Lula e Dilma não enfrentaram a mídia dominante? Por que não criaram condições para a consolidação da comunicação pública e para a consolidação independente dos chamados blogs progressistas? 
 
Em 2013, frente ao surgimento da internet principalmente, a União Europeia publicou um documento recomendando aos países membros, o apoio do Estado às vozes que se expressam através desses instrumentos. E isso, justamente, em nome da pluralidade e da diversidade, ou seja, do que sustenta a formação de uma opinião pública democrática. Por razões que desconheço, isso não foi compreendido ou não se conseguiu, de qualquer forma, não foi feito nos governos Lula e Dilma.
 
Os investimentos na EBC foram insuficientes?
 
VL - A EBC tem um problema de recursos. A Lei que criou a EBC também criou Contribuição para o Fomento da Difusão Pública (CFRP). Essa contribuição é dada, sobretudo pelas empresas, concessionárias e de serviços públicos de telefonia. Mas, há uma questão judicial em torno dessa CFRP e esses recursos nunca chegaram à EBC, mesmo os que já chegaram ao governo foram utilizados para outros fins. Se essa contribuição tivesse, de fato, como previsto na Lei 11.652, chegado à EBC, o problema da economia financeira da emissora estaria resolvido. Só que isso não aconteceu. A lei que cria a EBC cria também mecanismos para o seu autofinanciamento. 
 
Do ponto de vista constitucional, o Estado tem que apoiar a comunicação pública, em nome da pluralidade e da diversidade, como acontece em qualquer lugar do mundo. 
 
Em relação a isso, existe alguma questão legal que poderia enfrentar essa perseguição aos sites e blogs progressistas?
 
VL - Eu não sou advogado, mas com base nos princípios da ordem econômica isso pode gerar uma reação legal. Trata-se de uma questão de oligopólio, de monopólio, da concorrência. Eu tenho a impressão que é possível se pensar, inclusive, em ações judiciais em relação a isso. 
 
Sem falar do espírito geral da Constituição e dos princípios democráticos que podem ser invocados considerando-se a importância da pluralidade e da diversidade, em prol da saúde da democracia e até mesmo para a sua própria sobrevivência. 
 
Podemos falar em censura neste caso?
 
VL - É um cerceamento econômico que visa impedir que certas vozes circulem. Qual é o nome disso? 
 
É censura.

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