Brasil: muitos juízes, pouco juízo
Por Flávio Aguiar
“Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito,
pode já estar sendo se querer o mal, por principiar. Esses homens!”
O chefe de jagunços Riobaldo, através de
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
Vivemos hoje no Brasil um movimento autoritário, golpista, cujo objetivo é aleijar a esquerda, alija-la da disputa política, enquadrar em alguma coisa penal o seu principal líder – aliás, um dos maiores que o Brasil, a América Latina e o mundo jamais tiveram – destituir a primeira mulher presidenta do Brasil e desorganizar a Constituição de 1988, no sentido de tomar de volta para as elites reacionárias aquilo que o povo obteve como conquista: a presença significativa no Orçamento Federal.
A vanguarda deste movimento – como em 54 a vanguarda do movimento reacionário foi o “Memorial dos Coronéis” que reclamava dos aumentos “excessivos” do salário mínimo – hoje se encontra em um movimento que reúne juízes, procuradores, setores da Polícia Federal, jornalistas que povoam a mídia corporativa com suas diatribes ensandecidas. Este movimento, empalmando a causa de partes da classe média, identificadas com valores da alta burguesia, e ciosas de privilégios que vêm sentindo como perdidos em nome de reconhecer direitos aos “baixios” da sociedade, vem procurando por todos os meios criminalizar as esquerdas. Brandem o hissope (instrumento para aspergir água benta entre os fiéis de um rito religioso) da luta anticorrupção, mas enquadram o cenário político com um único olho, o que mira as esquerdas.
Nisto, nada há de novo na frente ocidental. Movimentos deste tipo sempre produziram um tipo especial de agentes do aparato jurídico, amparado pelo policial, que se caracteriza pela truculência em relação a suas vítimas, transformadas em réus de processos em que devem provar sua “impossível inocência”, ao invés do contrário – e pela subserviência ao que identificam como os valores dominantes nos “apartamentos de cobertura” da pirâmide social. “Impossível inocência”: a expressão se refere ao fato de que estas vítimas são pré-julgadas culpadas, e apenas depois se tornam réus.
O agente modelar deste tipo de operação é aquele que, esteja onde esteja, usurpa funções. O juiz se faz promotor, e acusa. O promotor se faz juiz, e julga. O policial se faz de ambos, investiga, mas acusa e julga. E hoje, no Brasil, tudo fica acobertado pela mídia corporativa, que recebe os vazamentos ilegais, acusa e julga. E os réus condenados previamente que provem sua inocência, uma tarefa impossível dentro das balizas desta mesma mídia, que já pré-julgou tudo e condenou todos os que quer condenar.
Há modelos históricos para este tipo de operação. Em outras vezes já apontei alguns. Roland Freisler, o juiz preferencial do regime nazista na Alemanha, que acusava e julgava, e gritava impropérios a seus réus nos tribunais. Andrey Vychiinsky, o juiz preferido de Stalin, que fazia o mesmo do lado soviético. Joseph McCarthy, o senador norte-americano que, nos anos cinquenta, denunciava, acusava, e julgava, embora no momento não estivesse num tribunal, seus acusados de fazerem atividades comunistas e antiamericanas (bolivarianas?).
Agora estamos diante de movimentos semelhantes. Com um agravante. Vychinsky e Freisler, como tinham o apoio integral dos seus líderes, não precisavam da mídia. McCarthy sim, e obteve, até o ponto em que a própria mídia começou a destrui-lo, a partir de um programa apresentado por Edward R. Murrow, na televisão, que denunciou o quanto o senador por Wisconsin se valia de uma clima opressivo criado pelo anticomunismo comum nos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Da mesma forma, este esquadrão de juízes, promotores e policiais que querem aleijar a esquerda, criminalizando-a com exclusividade, a ponto de se cogitar a absurda cassação do registro do PT (como se fez com todos os partidos em 1964, com o Partido Comunista em 1947, e novamente com todos os partidos na “ouverture” do Estado Novo), arma processos cujo resultado é definido de antemão: se cais na rede de acusados, estás condenado. Kafka, no Brasil de hoje, seria um autor realista, com seus O processo, O Castelo, etc. Mas estes Robin Hoods dos mais ricos precisam e dependem da mídia. Dos “vazamentos seletivos”.
Deve-se revisitar um filme excepcional: O julgamento de Nuremberg, versão de 1961, dirigida por Stanley Kramer, que deu a Maximilien Schell o Oscar de melhor ator e a Abby Mann o de melhor adaptação de roteiro. O filme trata do julgamento de um grupo de juízes alemães que desistiram de seus princípios diante dos (des)mandos do regime nazista. O principal deles é Ernst Jennings (Burt Lancaster), um reputado jurista liberal que, dentre outros, julgou o caso de um cidadão judeu (baseado em eventos reais) acusado de ter relações sexuais com uma menor ariana (Judy Garland). Como ele mesmo confessa, embora houvesse indícios de que o acusado tinha propensões pedófilas, não havia provas. Mas isto não importava, sublinha Jennings em seu mea culpa. O acusado, confirma ele, não foi condenado porque seria um criminoso, mas porque era judeu. Ele estava condenado de antemão.
O mesmo acontece hoje, mutatis mutandis. Na sanha de condenar Lula e o PT – além de Dilma – a horda de juízes, procuradores e policiais é movida pela sentença que já traçaram. Assim como a horda de deputados e de senadores que votam pelo impeachment de Dilma não se baseia em nada real, apenas sua sede meio vampiresco de sangue e da ridícula (na verdade) fama que conseguiram, pela TV, em escala mundial, além dos favores do interino. Se for condenado, Lula não o será por algum crime que tenha cometido, mas porque é Lula, o presidente criativo que deve e vai figurar no panteão nacional ao lado de Vargas e Pedro II.
Faz algum tempo que este bando que o persegue – com apoio e instigação da mídia reacionária – não consegue encontrar algo novo contra ele. Então ficam requentando pratos feitos: a delação do Delcídio, o sítio em Atibaia, que não rendem muito, apenas o suficiente para que a nossa mídia provinciana e intempestiva produza manchetes na tentativa de neutralizar a verdadeira devastação que vem sendo feita nas hostes do governo provisório e adjacências.
Uma advertência deveria ser feita a estes Moros, Gilmares, Janots e janotas que se assemelham aos coronéis de 54. Freisler, Vychinsky, McCarthy entraram para a História. Na lata de lixo.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012).
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