quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Brasil-China: complementaridade ou dependência?


Brasil-China: complementaridade ou dependência?

O novo governo estimula uma parceria iniciada na era PT cujas consequências são, em grande medida, deletérias
por Alessandra Cardoso — publicado 15/09/2016 04h51
Beto Barata / PR
Michel Temer e Xi Jinping
Michel Temer e Xi Jinping, o presidente da China. Parceria segue em frente
Em comentário sobre os recentes acordos de investimentos da China no Brasil, um negociador afirmou que “as relações bilaterais ganham novos galhos onde antes havia apenas o tronco”.
De fato, os anúncios das intenções de investimentos chineses no País indicam que, a despeito da crise política que se instalou e da crise econômica que dela se alimentou, continuam sendo dados passos objetivos para que as empresas privadas e estatais chinesas ampliem ainda mais seus investimentos no Brasil.
Os investimentos anunciados em eventos de negócios paralelos à reunião do G20 na China são um desdobramento das negociações bilaterais que já vinham sendo conduzidas pelos governos Lula e Dilma e, evidentemente, dos fortes e específicos interesses da China no Brasil e na América Latina.
De ambos os lados, tais relações bilaterais têm sido assumidas pela diplomacia como mutuamente benéficas, complementares e baseadas em laços de solidariedade sul-sul. Narrativa esta, inclusive, reforçada no âmbito dos BRICS, também como meio de promover formas de liderança internacional alternativas.
A nós cabe perguntar: que tronco é esse e quais galhos e frutos dele brotarão?
Já é consensual entre pesquisadores a percepção de que os laços comerciais entre a China e a América Latina são baseados na demanda chinesa por um conjunto relativamente limitado de recursos naturais: o cobre do Chile, as commodities em geral, em especial minério de ferro e petróleo, do Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Argentina. Em contrapartida, os elevados fluxos de comércio da China para a região são dominados por bens manufaturados de média e alta tecnologia.
Há um outro consenso já formado de que o ciclo de preços das commodities, expresso na elevação dos volumes transacionados e valores a partir de 2002, com pico em 2011, e fortes evidências de esgotamento nos três últimos anos, guarda relação direta com a dinâmica de crescimento da economia chinesa.
Alguns estudiosos vão além e argumentam que, por trás da demanda chinesa por commodities, em especial de minerais, esteve um ciclo de negócios puxado pelo incremento na sua produção industrial a qual alimentou a rápida urbanização e o desenvolvimento de infraestrutura conduzidos pelo Estado chinês. Um ciclo que se esgotou, pelo menos na intensidade com que se expressou na primeira década deste século. 
Já no Brasil, o boom de commodities e seu fim têm nos mostrado como foram desiguais e perigosos os fluxos comerciais, principalmente de commodities, com a China. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontam que o Brasil acumulou superávit de US$ 46 bilhões com os chineses entre 2009 e 2015, vendendo commodities.
Entre os efeitos ainda pouco compreendidos para o Brasil deste intenso fluxo comercial baseado em recursos naturais estão a sobrevalorização do real e a perda de competitividade de vários segmentos da produção manufatureira, retroalimentada pelo aumento das importações de manufaturados chineses – de 4% em 2001 para 21% em 2015, segundo a CNI. Esses efeitos explicam, em parte, a atual e profunda crise econômica brasileira. 
Tão perverso quanto foram os impactos sociais e ambientais produzidos por essa corrida por minérios e terras patrocinada pela demanda chinesa, o desastre do Rio Doce, com o rompimento de uma barragem da Samarco-Vale-BHP em Mariana (MG) é uma síntese perfeita do que significa essa corrida pela extração de volumes sempre recordes de minérios, a custos cada vez mais menores.
Em vez de termos uma maior reflexão sobre a natureza desse ‘tronco’ e quais efeitos e consequências das relações construídas entre Brasil e China, estamos vendo essa parceria ser acriticamente e irresponsavelmente adubada pelo atual governo para que produza longos galhos, atendendo aos interesses chineses: a infraestrutura necessária para garantir fluxos contínuos e cativos de recursos naturais para a China e de bens manufaturados da China ao Brasil e região. 
Além da oferta de extenso “cardápio” de investimentos em infraestrutura – incluindo concessões, outorgas e privatização – o governo brasileiro deu perigosos passos no campo da regulação. A aprovação da Medida Provisória Nº 727 alçou os investimentos em infraestrutura à condição de prioridade nacional, garantindo-lhes celeridade na liberação das licenças necessárias.
Na prática, a nova legislação impõe um regime de aceleração (fast tracking) do licenciamento ambiental aos projetos de infraestrutura. Isso, diante do quadro de crescente fragilidade das capacidades e recursos dos órgãos ambientais e daqueles que protegem os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, significará ainda maiores violações dos direitos ambientais e também desses grupos e das demais populações afetadas por grandes obras que têm no licenciamento a única via de avaliação, mitigação e compensação dos impactos causados.
Criou-se, ainda, uma nova institucionalidade, o Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, com o papel e o poder de coordenar e “enquadrar” os demais órgãos e entes públicos para viabilizar a execução célere e rentável dos projetos que interessarem aos investidores. 
Do lado da China, algumas das principais escolhas no “cardápio”, cuja oferta soma US$ 269 bilhões, foram esclarecedoras:
i) Construção da ferrovia transoceânica, negociada ainda em 2015 e com projeto de análise de viabilidade econômica concluído, que abrirá a rota de exportação pelo Pacífico, barateando custos de transporte de minérios e grãos para a China;
ii) Acordo entre a China Communication and Construction Company Internacional (CCCC) e o grupo WPR para investimento no terminal multicargas de uso privado em São Luis (MA), para transporte de grãos, celulose e fertilizantes.
iii) Acordo para a criação de um Fundo de Investimento do Desenvolvimento da Agricultura do Brasil e China que participará da cadeia do setor agrícola brasileiro, especialmente em serviços agrícolas e melhoramento de infraestrutura, incluindo armazenamento, logística e portos.
iv) Aquisição de 50,1% da Rio Bravo Investimentos pelo grupo Fosun. A Rio Bravo é uma administradora de investimentos que, entre outros serviços, monta e administra fundos e carteiras de infraestrutura para investidores institucionais e pessoas físicas, com foco em projetos de energia e logística.
O “menu” oferecido aos chineses, juntamente aos serviços adicionais de mudança de regulação e institucionais para viabilizar projetos a toque de caixa, coadunam com as fortes preferências dos investidores por infraestruturas que visam ampliar o escoamento de commodities para a China e de manufaturas para o Brasil e região.
A complexidade das relações comerciais e de investimentos Brasil-China ficaram em grande medida nubladas pela narrativa dos interesses sul-sul que contribuiu para mascarar uma relação de fortes assimetrias que aprofundam a dependência histórica do País, e latino-americana, por exportações de commodities, e exponenciam seus inúmeros impactos. 
*Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc. Convidada do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Fonte: Carta Capital

Nenhum comentário:

Postar um comentário