terça-feira, 4 de outubro de 2016

NYT: Política brasileira reprime as ambições do Oscar para Aquarius

30/09/2016 18:29 - Copyleft

NYT: Política brasileira reprime as ambições do Oscar para Aquarius

O comitê do Oscar do governo brasileiro decidiu por rejeitar o filme Aquarius como o candidato da nação para melhor filme estrangeiro


Simon Romero, New York Times
Reprodução
SÃO PAULO, Brasil — Poucos filmes chegaram a tocar nos nervos no Brasil, nos últimos anos, como fez “Aquarius”. Estrelando Sônia Braga como uma avó usuária de maconha que entra em conflito com promotores imobiliários, o filme ganhou prêmios em festivais desde Amsterdã até Sidney, Austrália. As audiências brasileiras aplaudem de pé nos cinemas. Muitos aqui viram “Aquarius” como um bom representante do país no Oscar.

Mas esse mês, o comitê do Oscar do governo brasileiro decidiu pelo contrário, rejeitando o filme como o candidato da nação para melhor filme estrangeiro e incitando um grande debate sobre a linha tênue que divide política e arte.

A escolha do comitê não teve nada a ver com os méritos artísticos do filme, dizem os críticos. Ao contrário, eles condenam a decisão como uma forma de retaliação política, feita somente pelo desgosto do elenco e do público pelo novo presidente do Brasil, Michel Temer.

Durante um protesto em maio no Festival de Filmes de Cannes, os membros do elenco e da equipe de “Aquarius” levantaram placas denunciando o processo de impeachment que expulsou do cargo a primeira presidente mulher do Brasil e promoveu Temer, seu rival mais conservador, direto para o poder.






Agora, o comitê do governo escolheu um filme chama “Pequeno Segredo” para representar o Brasil no Oscar, preferindo um drama familiar sentimental que está sendo criticado duramente e que iniciou uma discussão nacional sobre se algo consegue escapar da política nessa sociedade profundamente dividida.

“O comitê do Ministério da Cultura escolheu um dos piores filmes do cinema brasileiro dos últimos anos”, disse Alcino Leite Neto, crítico de cinema da Folha de S. Paulo, um dos jornais mais influentes do país. Ele chamou “Pequeno Segredo” de “um oceano de clichês e sentimentalismo”.

“Aquarius”, que explora as tensões raciais e de classe no nordeste do Brasil, não mergulha explicitamente na instabilidade política recente do país, na qual o a ex-presidente, Dilma Rousseff, foi deposta em um julgamento de impeachment controverso mês passado.

Mas depois do protesto em Cannes, o ministério da Justiça deu a “Aquarius” uma avaliação rara de 18 (não recomendado para menores de 18), citando cenas de sexo e uso de drogas. Depois de críticos terem chamado a decisão de retaliatória, apontando que outros filmes com cenas de sexo explícito receberam avaliações mais lenientes, as autoridades mudaram “Aquarius” para 16 .

A briga não acabou ali, no entanto. Figuras proeminentes da indústria cinematográfica do Brasil expressaram preocupação quando o ministério da Cultura nomeou Marcos Petruceli, um crítico que tem desafiado as visões políticas de Kleber Mendonça Filho, diretor de “Aquarius”, ao comitê de seleção para nomeado ao Oscar.

Para apoiar “Aquarius”, três diretores brasileiros retiraram seus próprios filmes da lista de opções do comitê para o Oscar, e um diretor e um ator do comitê saíram de seus postos.

Entrando na briga, comentadores conservadores começaram a eviscerar “Aquarius” e seus apoiadores. Chamando o diretor de “petralha”, um xingamento comumente usado para insultar esquerdistas no Brasil, Reinaldo Azevedo, um colunista influente e comentador de rádio disse, “a tarefa das pessoas de bem é boicotar 'Aquarius'”.

Os produtores do filme simplesmente pegaram a sugestão e a colocaram nas publicidades do filme, alimentando o fogo por propósitos de marketing. Nos cinemas ao redor do Brasil, as audiências têm gritado, “Fora Temer”, no auge de “Aquarius”, que está emergindo como um campeão de bilheteria.

“De um modo intenso, toda a retaliação contra 'Aquarius' está sendo como um tiro no pé”, disse Mendonça Filho, o diretor. Ele comparou as paixões por “Aquarius” com as envolvendo “Network”, o filme de 1976 sobre a transmissão de notícias na era Watergate, no qual um âncora persuade seus telespectadores a gritar pelas suas janelas, “eu estou muito bravo e não vou aceitar mais isso!”

De repente, “Aquarius” também se tornou um catalisador para demonstração de indignação em um país mergulhado em recessão e atribulado por escândalos de corrupção. Manifestantes agora estão perseguindo o novo ministro da Cultura, Marcelo Calero, depois de ele ter afirmado que os protestos contra o governo em Cannes prejudicaram a imagem do Brasil no exterior.

Em dois festivais de filme brasileiros onde “Aquarius” foi exibido nas últimas semanas – nas cidades de Gramado e Petrópolis – membros da audiência denunciaram Calero como “golpista”. Em Petrópolis, Calero e os manifestantes iniciaram uma briga em gritos capturada em vídeo e compartilhada nas redes sociais.

Carlos Andreazza, um editor que trabalha com autores conservadores, afirmou que a controvérsia acerca de “Aquarius” também revelou a intolerância dos esquerdistas para com aqueles com opiniões distintas.

Em uma coluna no jornal O Globo, ele escreveu que o Brasil estava se tornando um país no qual alguém que critica o PT ou seu apoiador é automaticamente taxado de “golpista”. “Isso tem um nome: fascismo”, escreveu Andreazza.

Alguns fãs de “Aquarius” se preocupam que a discordância esteja distraindo a atenção dos atributos do filme. A estréia do diretor, “Neighbouring Sounds”, que foi a indicação do país em 2012 para o Oscar, também teve que lidar com tensões de classe ao focar nas maneiras nas quais mestres e serventes se relacionavam em um quarteirão em Recife.

“Aquarius”, enquanto também toca nessa tensão, vai além explorando o modelo de desenvolvimento urbano que prevalece nas cidades ao redor do Brasil, onde magnatas da construção operam amplamente com impunidade. Destruindo jóias da arquitetura, eles erguem torres de apartamento medíocres que contribuem com o congestionamento no trânsito e com o isolamento da classe média atrás de altos muros.

Braga, 66, interpreta Clara, uma compositora aposentada, que se recusa a fazer orçamento quando corretores tentam comprar seu apartamento Art Deco. Eles utilizam táticas como jogar excremento nos corredores do seu prédio e usam um apartamento vizinho vazio para realizar orgias, o que provoca uma série de reações em Clara.

O filme se assemelha à raiva latente no Brasil contra as gigantes construtoras que estão no centro dos escândalos de corrupção que envolvem o establishment político. Mas Bruno Barreto, o diretor que presidiu o comitê do Oscar, disse que o júri não estava sob pressão do governo de Temer para votar contra “Aquarius”.

Ao explicar a seleção, Barreto, 61, que dirigiu o filme de 1976 “Dona Flor e seus Dois Maridos”, que também contou com Braga no papel principal, disse aos repórteres que o comitê “tinha que escolher um filme que não é necessariamente o melhor, mas que tem o perfil da Academia de Hollywood, que é feita de pessoas idosas”.

Por sua parte, David Schurmann, diretor de “Pequeno Segredo”, que irá representar o Brasil no Oscar, mesmo que esteja agendado o lançamento nacionalmente só depois de novembro, disse que gostou de “Aquarius” ao ponto de ovacioná-lo em Cannes.

“Eu entendo inteiramente a controvérsia”, ele disse aos repórteres. “Mas 'Pequeno Segredo' está mais adequado ao Oscar”.

Outros na indústria cinematográfica do Brasil não concordam, dizendo que é claro que “Aquarius” foi vítima da mudança à direita pelo governo.

“O processo de seleção do comitê foi opaco ao ponto de ser ilegítimo”, disse Gabriel Mascaro, um dos diretores que retirou seu filme da lista de consideração para o júri do Oscar esse ano. “É uma vergonha, mas é um indicativo do momento político que estamos atravessando no país”. 


Créditos da foto: Reprodução




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