Arraes, um
político que tinha lado
Roberto Amaral
“Pois que ninguém se iluda: assim como
não conseguiram me transformar em agitador e incendiário, também não
conseguiram e jamais conseguirão me transformar em um bom moço, acomodatício
aos privilégios que sempre combati”.
(Do discurso de posse de
Miguel Arraes no governo do Estado de Pernambuco, em 1963)
Conheci o cearense Miguel Arraes nos
idos de 1961, ele prefeito do Recife, mas nosso convívio, quase diário, só se
daria a partir de 1990 quando, a meu convite e de Jamil Haddad, ingressou no
PSB, partido que, também a nosso convite, presidiria até a morte, em agosto de
2005. Naquele primeiro encontro de 1961, era eu um jovem estudante, dirigente
da UNE, que ia, na Meca da esquerda brasileira, ao encontro de seu ícone que,
ao lado de Leonel Brizola, recém-saído da resistência ao golpe parlamentar de
1961 e da ‘Cadeia da Legalidade’, era a maior liderança da esquerda brasileira.
Tempos ricos aqueles em que o papel do presente era construir o futuro. Naquele
então o Nordeste começava a tomar o destino em suas mãos e, desse Nordeste, Recife era a capital
irredenta dos prefeitos Pelópidas da Silveira e Miguel Arraes, de Celso Furtado
e da Sudene, de Paulo Freire e Germano Coelho construindo o Movimento de Cultura
Popular-MCP e novos métodos (revolucionários) de alfabetização de adultos, que
logo galvanizariam o país. Era o Pernambuco de
Francisco Julião e suas Ligas Camponesas que começavam a escrever um
capítulo exemplar na historia de resistência do povo brasileiro.
Tempos que anunciavam um amanhã que, não
sabíamos naquela altura, nascia condenado pela conspiração antinacional e
antipovo que culminaria com o golpe militar de
1964.
A caminhada de Arraes, a partir daí,
integra a História do país: govenador de Pernambuco, líder nacional, deposto em
1964, desterrado em Fernando de Noronha, preso no Rio de Janeiro, exilado na
Argélia. No desterro manteve a luta
contra a ditadura, reunindo exilados e combatentes das diversas opções,
dirigindo pessoalmente e com Márcio Moreira Alves uma frente de
contrainformação aos meios da ditadura, e só voltaria ao Brasil ao cabo de 15
anos, em 1979, com a Anistia, para ser eleito deputado federal e governador de
Pernambuco seguidas vezes.
Era um dos raros políticos brasileiros
de trajetória tão larga que podia dizer ter lado e jamais dele haver-se
afastado: o lado do povo, principalmente do povo humilde, desorganizado e
desprotegido, sobretudo o trabalhador sem terra. Assim, resistiu e venceu as
oligarquias, as atrasadas e reacionárias oligarquias pernambucanas de todos os
matizes, impondo-lhes o famoso ‘Acordo do campo’, mediante o qual os usineiros
foram obrigados a pagar o salário mínimo aos trabalhadores rurais secularmente
explorados.
Arraes esteve sempre do lado certo da
História, quase sempre o mais incômodo. Estava ao lado do presidente Getúlio
Vargas na tormenta de 1954, e logo se alistaria na defesa dos mandatos de
Juscelino Kubitschek e João Goulart (1955), ao lado de quem também se perfilou
em 1961, contra a tentativa militar de impedir sua posse na presidência, e ao
seu lado estava contra o golpe de 1º de abril de 1964, sabendo que seria, para
honra de sua biografia, uma de suas primeiras vítimas.
Contrastando com a paisagem humana de
nossos dias, era um político culto, de rara formação teórica. Dedicou-se, como
práxis e formulação teórica, nessa ordem, à díade nacional-popular, entendendo
a questão nacional (sobre o que muito escreveu), isto é, à defesa do país e “de
suas coisas”, como costumava dizer, como primeiro degrau para a defesa do
desenvolvimento econômico, estágio indispensável para a melhoria das condições
de vida do povo.
Na direção nacional do PSB, cuja postura
de hoje, sem compostura, renega sua biografia política, sempre se revelou
arredio ao pragmatismo rasteiro. Assim, foi firme no combate ao governo Collor
e firme na oposição aos governos FHC, denunciados por ele como neoliberais,
entreguistas e antissociais, como foi firme na resistência à emenda permissiva
da reeleição. Apoiou o governo Itamar Franco, mas dele exigiu que o PSB (que
ocupava o Ministério da Saúde com o presidente Jamil Haddad) se afastasse
quando Fernando Henrique Cardoso emergiu como seu ministro da Fazenda e virtual
primeiro-ministro, apresentando uma plataforma de medidas econômicas similar à
de Henrique Meirelles, apoiada pelo PSB que aí está.
O registro de seu centenário de
nascimento ocorre em momento triste de nossa História, em que as questões
essenciais do país são sotopostas em benefício de uma minoria rentista a serviço de quem se põe de
joelhos o atual governo, velho de sete meses, e precocemente agônico. Somam-se,
à crise institucional – que compreende a ilegitimidade dos Poderes – a crise
econômica alimentada por uma política deliberadamente antipopular, antinação e
antidesenvolvimentista que só serve ao capital financeiro monopolista.
Segundo o IBGE, o PIB, em queda, chegará
ao final deste 2016 marcando uma retração de 4% – por si só o dramático anúncio
de depressão econômica. É a queda dos salários, é a perda de direitos levada a
cabo por iniciativas legislativas propostas pelo Executivo e aprovadas no
Parlamento. O desemprego, crescente, chega à casa dos 12%, e a continuidade da
crise econômica inevitavelmente deve acentuar os impactos negativos na
Educação, que já sofre, como a Saúde, com a retração de recursos desde 2015.
Retração que se agravará com as consequências da “PEC da maldade”, que impõe,
por 20 anos, a retração dos investimentos governamentais. É a opção pela
pobreza e pelo atraso, é a volta da miséria, o fim das políticas sociais
compensatórias. O fim da política de distribuição de renda e combate à pobreza
que cede espaço à miséria.
Se o governo Temer conservar-se de pé, o
que é improvável, teremos, principalmente a partir de primeiro de janeiro
(quando poderá ser descartado sem o risco de uma eleição direta, de que o PSDB
foge, como o diabo da cruz), o agravamento da crise, hoje institucional,
abarcando todos os poderes conhecidos pela Constituição.
E, assim, já se anuncia uma nova crise e
uma nova luta, pois a eleição de um novo
presidente da República por um Congresso sem legitimidade somente contribuiria
para levar a crise institucional aos campos da irrupção social, para a qual
tanto contribui a atual política econômica, voltada exclusivamente ao rentismo
e aprofundadora das insuportáveis desigualdades que dividem a sociedade
brasileira.
A questão nodal da ordem do dia é a
continuidade democrática, cujo ponto de partida é a recuperação da legitimidade
da ordem constitucional com a eleição de um presidente ungido pela soberania
popular, o que se obterá com a aprovação de proposta de emenda constitucional
estabelecendo a eleição direta para o caso de vacância definitiva do cargo de
presidente até seis meses do final de seu mandato.
O silêncio das forças armadas – Em
entrevista ao O Estado de S. Paulo (11/12/2016), o general Eduardo Villas Boas,
comandante do Exército, após afirmar haver consultado o deputado Jair Bolsonaro
“para se informar melhor” sobre o ataque de vândalos ao plenário da Câmara dos
Deputados, declara respondendo a pergunta do jornal: “No que me diz respeito, o
Bolsonaro tem um perfil parlamentar identificado com a defesa das Forças
Armadas”. Podemos então concluir que as Forças Armadas brasileiras se
identificam com o discurso do trêfego parlamentar? É melhor acreditar que não e
acreditamos que não. Ainda no curso dessa entrevista, o general afirma que as
Forças Armadas não pretendem intervir na
cena política brasileira, “a não ser em caso de instabilidade (definida por ele como o “efeito [da crise]
na segurança pública), que é o que pela
Constituição pode nos envolver diretamente” e já envolve, “porque o índice de
criminalidade é absurdo”. Por fim, o
militar diz haver lembrado ao presidente da República que há temas com
potencial de esquentar a “panela de pressão”, e cita como intocáveis os soldos e a Previdência dos militares.
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