Líbia sepultada
no crime e no silêncio
Completam-se
em março próximo 6 anos do início da agressão à Líbia pela OTAN. O país foi
destruído. O povo líbio vive no inferno. Mas deixou de ser assunto para as
grandes mídias internacionais, até porque operações semelhantes prosseguem
noutros lugares, nomeadamente na Síria.
Higino Polo
Enquanto Obama se despede da presidência
dos EUA, é indispensável não deixar esquecer nenhuma peça do seu criminoso
currículo. O imperialismo, do qual os EUA constituem a mais agressiva potência,
é o pior inimigo de toda a humanidade.
Não sabemos quantas pessoas morreram na
Líbia em consequência da brutal intervenção da OTAN em 2011. Algumas fontes
falam de uns trinta mil mortos; outras aumentam esse número. A Cruz Vermelha,
por seu lado, calcula uns cento e vinte mil mortos, mas não há dúvida de que
essa guerra que a OTAN iniciou destruiu o país e afundou os seus seis milhões
de habitantes num pesadelo sinistro.
Em março próximo passam seis anos sobre
o início da matança: os EUA, França e Reino Unido lançaram a partir de navios e
aviões um diluvio de bombas e de misseis de cruzeiro. Justificaram a guerra e a
carniçaria com a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que apenas
falava de utilizar as “medidas necessárias” para proteger a população civil que
“estivesse ameaçada”, e que autorizou uma zona de exclusão aérea, mas não a
invasão do país. Não havia autorização alguma para iniciar uma intervenção
militar, nem muito menos um ataque para derrubar o governo. China e Rússia, bem
como a Índia e a Alemanha, abstiveram-se naquela votação do Conselho de
Segurança e, posteriormente, perante a guerra imposta, tanto Moscou como Pequim
denunciaram a abusiva interpretação que Washington, os seus aliados europeus e
a OTAN tinham feito da resolução do Conselho. A África do Sul, que também tinha
votado a favor da resolução, denunciou depois o uso desmesurado do acordo para
forçar uma “mudança de regime e a ocupação militar do país”.
Foi tal a hipocrisia de Washington,
Londres e Paris, que os seus aviões chegaram a bombardear a população civil em
Bengasi e Misrata, entre outras cidades líbias, matando centenas de pessoas,
apesar de supostamente intervirem em sua defesa. Previamente, as “forças
rebeldes” foram treinadas por instrutores militares norte-americanos e de
outros países da OTAN, ao mesmo tempo que lhes forneceram armamento sofisticado
e informação, e o Departamento de Estado norte-americano trabalhou para criar
um Conselho Nacional de Transição para o impor como novo governo após a derrota
de Kadafi. De fato, desde antes do início da agressão militar, comandos
militares britânicos e norte-americanos (em operações aprovadas por Cameron e
Obama, violando a legalidade internacional) infiltraram-se na Líbia e levavam a
cabo ações de sabotagem e assassinatos seletivos. Os militares ocidentais
chegaram ao extremo de utilizar vestimenta similar aos milicianos do bando
rebelde, para camuflar a sua intervenção ante as instituições internacionais:
eram militares da OTAN, mas nunca reconheceram a sua condição, e treinaram os
rebeldes e lutaram junto a eles.
Durante o verão de 2011, a OTAN lançou
milhares de missões de combate, e enviou comandos de “operações especiais” para
reforçar os ataques dos rebeldes, armados e apoiados pela aliança ocidental. Em
20 de outubro, sem forças para resistir, Kadafi fugiu de Sirte, a coluna em que
se deslocava foi atacada por aviões norte-americanos e franceses e, finalmente,
foi detido por destacamentos rebeldes, ajudados por esses “comandos de
operações especiais” norte-americanos. Depois assassinaram-no a sangue frio.
Cinco dias antes do assassinato de Kadafi o primeiro-ministro britânico,
Cameron, e o presidente francês, Sarkozy, voaram até à Líbia, para a zona
controlada pelos rebeldes, enquanto as equipas da CIA norte-americana
trabalhavam para localizar Kadafi e assassiná-lo. A sua morte foi celebrada por
Obama, Cameron e Sarkozy.
Violando a resolução da ONU, utilizando
de novo a guerra como instrumento da sua política externa, os EUA e seus
aliados alcançaram os seus propósitos. Os bombardeios da OTAN destruíram
aeroportos, infraestruturas e portos do país, instalações oficiais, quartéis,
estradas e, segundo estimativas da ONU, centenas de milhares de pessoas foram
forçadas a fugir, convertendo-se em refugiados na sua própria terra. As
reservas e recursos do país no estrangeiro foram objeto de intervenção pelos
governos ocidentais. Hoje, a economia do país é apenas um terço parte do que
era antes da intervenção da OTAN em 2011. Depois, estalou a luta de bandos
entre os diferentes grupos armados (como sucedeu no Afeganistão após o triunfo
dos “senhores da guerra”, apoiados também pelos EUA); chegaram ao país o caos,
a devastação, os milicianos fanáticos e bandidos armados que se apoderaram de
tudo. A Líbia passou a ser um pesadelo, onde os sequestros, os centros
clandestinos de tortura, os assassínios, as violações de mulheres tomaram conta
da vida cotidiana no inferno; e onde inclusivamente faltam alimentos e remédio,
a ponto de em muitas cidades, como em Bengasi, os habitantes se verem obrigados
a comer alimentos podres e ratos.
A essa paisagem de inferno une-se a
destruição de centros públicos, de praças, parques e lugares onde a população
acorria antes da guerra; junta-se o roubo de propriedades, os fuzilamentos e
decapitações públicas organizadas pelos grupos jihadistas, que passaram a ser
moeda corrente da nova Líbia. Fontes independentes falam de centenas de
pessoas, talvez milhares, decapitadas pelos destacamentos armados de fanáticos
milicianos religiosos. Grupos salafistas e jihadistas continuam a controlar
importantes áreas do território e, embora Washington tenha tentado erguer um
cenário democrático, nas eleições de junho de 2014, sobre um censo de três
milhões e meio de personas, apenas 18% da população votou. Muitas cidades
ficaram convertidas em ruinas, e as minas antipessoa são um perigo mortal para
os sobreviventes.
Várias centenas de grupos armados,
enfrentados entre si, pugnam pelo controlo do território e da riqueza do país,
juntamente com as mafias que traficam pessoas, que condenam emigrantes a
trabalhos forçados, que matam com total impunidade, enquanto dois governos e
dois “parlamentos”, em Trípoli e em Tobruk, (este, apoiado então pela OTAN),
tentavam derrotar o adversário e obter o reconhecimento exterior. Para sair do
caos, os governos ocidentais impulsionaram o chamado “governo de unidade
nacional”, criado em Marrocos em dezembro de 2015, presidido por Fayez
al-Sarraj, embora este continue sem estabelecer sua autoridade em todo el país,
e seja inclusivamente incapaz de controlar Trípoli, onde existem varias dezenas
de milícias armadas cuja agenda se centra em apoderar-se do petróleo para o
exportar, em extorsão à população, aos imigrantes, e em traficar pessoas.
Em outras importantes cidades líbias,
como Sirte, Misrata, Tobruk, sucede o mesmo. Por seu lado, o general Jalifa
Haftar controla agora Tobruk, com ajuda militar e financeira do Egito e
Emirados Árabes Unidos. Haftar é um militar líbio que, após romper com Kadafi,
foi transferido pela CIA para os EUA nos anos 1990, para, posteriormente,
encabeçar a milícia armada que a agência norte-americana financiou. A estes há
que acrescentar as forças controladas pelo DAESH, o autodenominado Estado
Islâmico, que conta com importantes conivências nas monarquias do golfo
Pérsico.
Nesse caos infernal, Washington continua
enviando “grupos de operações especiais” (como o que chegou em Dezembro de 2015
à base militar de Al-Watiya, no distrito de An Nuqat al Khams, junto à
fronteira tunisina, comando que foi bloqueado por grupos armados e obrigado
depois a sair do país), e utiliza a sua aviação para bombardear milícias que
não são do seu agrado, enquanto apoia o governo de Fayez al-Sarraj, embora
continue a contar com o trunfo de Haftar, velho empregado da CIA. Na prática,
as diferentes milícias bloqueiam-se entre si, e o caos é tal que não existe um
bando capaz de se impor aos demais. Os EUA tentam estabilizar a situação
através do governo de Fayez al-Sarraj, embora não desdenhassem apoiar um
governo de Haftar se este conseguisse impor-se na maior parte do país: querem
contar com um governo cliente que assegure os seus interesses, e o Departamento
de Estado é capaz de tornar apresentável qualquer governo de bandidos.
Os EUA e seus aliados europeus (Reino
Unido, França) responsáveis pela tragédia do país, estão interessados em
questões diferentes: Bruxelas tenta conter a chegada de emigrantes vindos da
Líbia, que algumas fontes calculam em 150.000 anuais, assunto que preocupa
especialmente a Alemanha; Washington pretende controlar o DAESH (com quem
contemporiza na Síria onde, de fato, é visto como um aliado na guerra para derrubar
o governo de Damasco), desativar as centenas de milícias, e recuperar a
produção de petróleo. Por seu lado, o enviado especial da ONU para a Líbia,
Martin Kobler, tenta, sem sucesso, mediar no meio do caos.
Entretanto, as televisões e a grande imprensa
internacional há tempo que deixaram de mostrar interesse pela Líbia, seguindo
um roteiro utilizado com êxito muitas vezes. A Líbia, convertida num estado
falhado, com presença do DAESH (que acaba de perder Sirte), onde todos os
grupos e milícias cometem crimes de guerra ante a indiferença ocidental, é hoje
um país pelo qual nenhuma potência da OTAN assume responsabilidade, embora uma
terça parte da população necessite de ajuda alimentar urgente, embora os líbios
tenham que comer ratos e beber águas pestilentas, embora se vejam obrigados a
contemplar constantes assassínios e decapitações, embora ali a vida não valha
nada, e os governos dessas potências sejam conscientes de que os líbios foram
condenados a viver num inferno.
www.vermelho.org.br 04/01/2017
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