sábado, 15 de abril de 2017

21 chacinas mataram pelo menos 76 pessoas no Rio e você não ficou sabendo

12/04/2017 17:49 - Copyleft

21 chacinas mataram pelo menos 76 pessoas no Rio e você não ficou sabendo

À chacina de São Jorge se somam outras 20 ocorridas no último ano no Rio de Janeiro e que mataram pelo menos 76 pessoas, além de deixarem outras 45 feridas


Juliana Gonçalves e Cecília Olliveira - The Intercept Brasil
Foto: Ana Carolina Fernandes/Folhapress
No Rio de Janeiro, fim de semana é sinônimo de baile na favela. Na noite de 19 de fevereiro passado não foi diferente. Teve festa na comunidade de São Jorge, em Engenheiro Pedreira, na Baixada Fluminense. Mas o final dela não foi feliz para ao menos três pessoas que foram mortas durante uma operação policial do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) no meio do baile. Isso oficialmente. Moradores falam em dezenas de mortos, mas a delegacia responsável pelo caso nega.
 
À chacina de São Jorge se somam outras 20 ocorridas entre março de 2016 e março de 2017 no Rio de Janeiro e que mataram pelo menos 76 pessoas, além de deixarem outras 45 feridas, segundo levantamento feito por The Intercept Brasil, baseado em dados da plataforma colaborativa Fogo Cruzado. Ainda que no imaginário do estado elas pareçam coisa do passado – afinal, a memória logo remete a Vigário (1993), Candelária (1993) ou Baixada (2005) – as chacinas nunca deixaram de fazer parte da história recente do Rio, apenas não ganham mais qualquer atenção da opinião pública ou das autoridades.
 

 


 
Há um limbo entre as informações dadas por moradores, os informes da polícia militar – que na maioria das vezes são a fonte das notícias da imprensa – e os dados do Instituto de Segurança Pública do Estado (ISP), que só são divulgados em meados do mês seguinte ao ocorrido e já foram questionados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo DATASUS por ocultarhomicídios.
 
Esse vazio encontra amparo na existência de um esquema que ajuda a disfarçar os números. De acordo com o defensor público Antônio Carlos de Oliveira, existe uma forma sofisticada de execução na Baixada Fluminense que acaba apagando as informações sobre os crimes cometidos na região. “Temos notícia de execução e os corpos não chegam nem a aparecer mais no mesmo IML, a entrega desses corpos é pulverizada. Você vê chegar três corpos aqui, quatro corpos ali. Mais três em Campo Grande. Você não vê aquela situação concreta. Para quê? Para não chamar atenção. Porque se chegarem 10 corpos no mesmo IML, vão chamar atenção”, explicou em evento realizado no último dia 30 em lembrança aos 12 anos da Chacina da Baixada.
 

 
Por conta dessa pulverização estratégica dos corpos, é difícil comprovar denúncias como a da comunidade São Jorge. Por conta disso, o Fórum Grita Baixada e o Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu pediram que a Defensoria Pública da Baixada Fluminense solicitasse os registros dos Hospitais da Posse, em Nova Iguaçu, e de Japeri, além dos casos registrados na Delegacia de Homicídios de Belford Roxo e na 63º DP de Japeri.
 
Essa desassociação dos corpos que dificulta a identificação de uma chacina não é questionada. Chacina é o termo usado para a ocorrência de múltiplos assassinatos em uma mesma ação, em um mesmo local, mas ela não tem  uma tipificação específica no Código Penal. Por isso, a Polícia Civil não a contabiliza como tal, mas como homicídio culposo qualificado (com intenção de matar, por motivo fútil) e, por consequência, o ISP segue este padrão.
 
Para Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, há quatro pontos que colaboram para a invisibilidade das chacinas no Rio: a falta de prioridade do tema na política de segurança; o registro falho – falta acesso à informação e transparência; o local onde estas chacinas acontecem – periferia na região metropolitana; e o perfil das vítimas – jovens negros moradores de periferia. “Quem está morrendo nas chacinas determina o tratamento dado ao assunto pelo poder público”, afirma Neder. Para ela, é necessário haver uma mudança que desloque o foco da política de segurança da lógica da guerra e baseada no imediatismo para os homicídios.
 
Atualmente, o sistema de informações da Polícia Civil do Rio de Janeiro – base do trabalho das estatísticas do ISP e que deveria basear a construção de políticas públicas – está fora do ar por falta de pagamento da empresa terceirizada. Os registros podem ter sido afetados também pela greve de policiais, que já dura quase três meses.
 
“O Rio de Janeiro estava à frente dos outros estados em relação à produção de informação e à sistematização, mas este sistema está sendo precarizado. Quanto menos se conhece a realidade, menos você pode pensar políticas para incidir sobre ela. Como identificar que isso é um problema? Como saber grande parte dos homicídios acontecem no marco da chacina ou não se você não tem isso registrado? Como saber se as chacinas estão aumentando ou diminuindo? Ou que áreas são mais afetadas por esse tipo de ocorrência se isso não está registrado dessa maneira?”, questiona Neder.





 
Diante deste dado espantoso e questionada sobre a existência de políticas específicas de enfrentamento à chacinas, a Secretaria Estadual de Segurança Pública – que em tese é responsável por planejamento de políticas públicas na área – afirmou que o tema é de responsabilidade da Polícia Militar, que não respondeu ao contato feito pela reportagem.  Já a Polícia Civil informou que os dados referentes a chacinas estão contabilizados dentro do espectro geral dos homicídios dolosos e que os dados sobre elucidação desses crimes são divulgados semestralmente, mas são relativos há casos ocorridos há um ano e meio, para que haja tempo para investigação. O último dado disponível no site do ISP, portanto, é do primeiro semestre de 2015: 17.09%. Informações sobre as chacinas ocorridas em março de 2016 só serão divulgadas no primeiro semestre de 2018.

 


 

Falta Justiça



Da mesma forma que a opinião pública não toma conhecimento desses casos, a Justiça também não os enxerga. Essas pequenas chacinas, registradas apenas como homicídios,  não costumam ter um desfecho. Somente em casos com grande impacto na mídia, as investigações são concluídas.
 
A falta de justiça nestes casos pode se dar – para além da falta de prioridade na agenda política do Estado – devido à precariedade de investimentos na polícia, principalmente no setor de inteligência; falta de pagamentos aos policiais, que estão de greve; e até falta de estrutura física para a execução mínima de trabalho dos policiais civis, responsáveis pelas investigações. Para além disso, nas chacinas que envolvem policiais – como a da Baixada – a atuação do Ministério Público, que é responsável pelo controle externo da atividade policial, seria essencial. Mas levantamento feito pela Human Rights Watch mostrou que apenas 0,1% dos casos de execuções extrajudiciais cometidas por policiais entre 2010 e 2015 foram adiante.
 
Para o sub-coordenador do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do estado (Geesp), Paulo Roberto Cunha Junior, existe entre os colegas a sensação de que o policial que mata está fazendo justiça, pois a vítima em questão teria envolvimento com o crime. “Durante toda a minha vida de promotor tive sempre que lutar contra o discurso de que esse policial estaria fazendo um bem.  “A morte é usada para emponderar um crime praticado por um agente de segurança pública. No caso da doutora Patrícia (Acioli) – juíza assassinada por PMs –, os policiais que a executaram não a executaram porque achavam estar fazendo certo, executaram porque usavam os autos de resistência fraudados para extorquir o tráfico e quando eles não puderam mais fazer isso eles começaram a perder dinheiro”, disse.
 


A chacina da Baixada foi a maior chacina já ocorrida no Estado do Rio de Janeiro, matou 29 pessoas sem envolvimento com crimes em 2005 e é um ponto fora da curva, por ter chegado a uma resolução. As investigações chegaram a 11 policiais, e cinco deles foram condenados.
 
“A comoção das famílias foi primordial para que a sociedade e os governantes se empenhassem, investigando para descobrir quem havia cometido aquele absurdo de matar 29 pessoas pelas ruas. Todos conheciam aquele grupo, que já era um grupo de extermínio da localidade e já tinha cometido muitos assassinatos. Só que eles tinham nítida confiança na impunidade. Mas como a comoção foi muito grande, não teve como eles saírem livres dessa história”, explica Luciene Silva, mãe de Raphael Couto, que morreu aos 17 anos na chacina da Baixada.
 
Depois da morte de Raphael, Luciene se tornou ativista contra a violência e passou a ajudar outras mães em situações semelhantes à sua. Nesse processo, conheceu outros familiares de  vítimas dos mesmos policiais que mataram seu filho. “Eu conheci uma mãe que teve o filho assassinado por integrantes da chacina, fomos no julgamento desse policial, que na chacina foi condenado apenas por formação de quadrilha. Se eles tivessem sido investigados e presos [pelos assassinatos anteriores] eles não teriam cometido a chacina aqui em 2005. Isso é um ciclo, outros policiais continuam matando e continuam trabalhando”, conta.
 
Da mesma forma que existe uma articulação para que os casos não sejam notificados, também existe para que os registrados não sejam de fato investigados. “Esses casos muitas vezes acabam sofrendo uma ociosidade muito grande por parte da Justiça, muitos não são julgados. O que acaba fortalecendo essa lógica de extermínio. Qualquer leitura de jornal da Baixada Fluminense  vai revelar que toda semana pelo menos um grupo de cinco, seis, sete pessoas é assassinado nos diferentes municípios”, comenta Adriano Araújo, coordenador do Fórum Grita Baixada.
 
Sem investigações, ou até mesmo notificações, as chacinas continuam acontecendo, como as 21 ocorridas nos últimos 12 meses, sem que ninguém, além das famílias das vítimas, se dê conta. “Quando eu enterrei o Raphael, a promessa que eu fiz era que eu não ia deixar ninguém esquecer do que aconteceu aqui (na Baixada). Essas vítimas continuam a cada dia aumentando cada vez mais”, afirma Silva.




Créditos da foto: Foto: Ana Carolina Fernandes/Folhapress




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