A transposição
do São Francisco e o combate às desigualdades
Rodrigo Freire*
Na Paraíba, a transposição do rio São
Francisco projeta “um abastecimento seguro para 127 municípios e 2,5 milhões de
pessoas”, segundo o Ministério da Integração Nacional. Além da obra, portanto,
há que se democratizar o acesso à terra e ampliar o apoio às iniciativas de
produção agropecuária articuladas com o paradigma da convivência com o
semiárido
A inauguração popular da transposição do
rio São Francisco pelos ex-presidentes Lula e Dilma, em 19 de março de 2017,
entra para a história como um dos mais importantes atos políticos do Nordeste
brasileiro contemporâneo. A história daquele ato é bem conhecida.
A transposição do São Francisco é uma
demanda antiga do povo do semiárido nordestino, continuamente lembrada pelos
governantes desde D. Pedro II. Durante a Primeira República, a transposição
compôs a pauta de governos como os de Afonso Pena e Epitácio Pessoa, que
tentaram incluí-la no rol das chamadas “obras contra a seca”, conforme o
espírito da época. Nos estertores da ditadura militar, o presidente João
Figueiredo retomou o tema da transposição, que seria uma resposta política ao
flagelo das secas que, naquele início dos anos 1980, ganhava contornos
midiáticos após sua exposição em programas de TV e matérias de jornal do sul do
país. Ficou-se nas intenções. Também nos governos de Itamar Franco e de
Fernando Henrique Cardoso a transposição do rio São Francisco foi considerada
como um projeto prioritário, sobretudo porque na década de 1990 a questão das
secas ganhou novos contornos, com a crise hídrica atingindo o abastecimento
d’água das grandes cidades da região, como Fortaleza, Recife, Caruaru e Campina
Grande. Mesmo assim a transposição do São Francisco não passou da fase dos
projetos.
Foi apenas no governo do presidente Lula
que a transposição do São Francisco foi elevada à condição de decisão política.
A transposição figurou como eixo do Plano Estratégico de Desenvolvimento
Sustentável do Semiárido (PDSA), apresentado em 2005 pelo então ministro da
Integração Nacional Ciro Gomes, tendo sido projetada, licitada e iniciada no
governo Lula. Para chegar a esse ponto, o governo teve de transpor obstáculos
de ordens técnica – relacionadas ao licenciamento e licitação da obra – e
política. Nesse último caso, a oposição estava localizada principalmente nos chamados
“estados doadores” das águas do São Francisco (Bahia, Alagoas e Sergipe),
envolvendo desde as elites do poder aos movimentos sociais, com destaque para a
greve de fome realizada por Dom Cappio, bispo de Barra (BA), que se apegava,
principalmente, a importantes argumentos ambientalistas. As obras da
transposição tiveram continuidade no governo da presidenta Dilma e, quando ela
foi afastada da Presidência pelo golpe de abril de 2016, o orçamento da
transposição do São Francisco já beirava os 90% de execução. Ou seja, era uma
obra muito próxima da conclusão.
A transposição abastecerá de água a
porção setentrional do semiárido nordestino através de dois eixos, o Eixo Norte
e o Eixo Leste. O Eixo Norte capta água do rio São Francisco na barragem de
Cabrobó (PE) e leva água para os estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e
Ceará. A água transposta pelo Eixo Norte chegará ao sertão paraibano através
das bacias hidrográficas do rio Piranhas-Açu e do rio do Peixe, fortalecendo
reservatórios como o açude de Engenheiros Ávidos, em Cajazeiras (PB), que em
março de 2017 estava com apenas 5% da sua capacidade1. Já o Eixo
Leste capta a água do rio São Francisco na barragem de Itaparica (entre os
estados de Bahia e Pernambuco), entra na Paraíba pela cidade de Monteiro, na
fronteira com Pernambuco, e se integra ao rio Paraíba, fortalecendo o açude de
Boqueirão, um dos mais importantes do Nordeste, que abastece Campina Grande e
municípios vizinhos, e que estava com 3,2% da sua capacidade em março de 20172.
O Eixo Leste também levará água ao Canal Adutor das Vertentes Litorâneas (ou
“Canal Acauã-Araçagi”), obra do PAC 2 iniciada em 2008, com 112,5 km de
extensão. Em março de 2017, o açude de Acauã encontrava-se com apenas 6,2% da
sua capacidade3. É pelo Eixo Leste que a água do rio São Francisco
chega à Paraíba nesse início de 2017.
O objetivo principal da transposição do
rio São Francisco não poderia ser mais evidente: aumentar a oferta de água no
semiárido nordestino, complementando os reservatórios e açudes já existentes.
Trata-se de uma tarefa fundamental numa região onde a seca persistente evapora
a água dos reservatórios num ritmo muito superior à sua recomposição com novas
chuvas, causando o seu esgotamento. Coerente com o mesmo objetivo, o governo
federal implantou em 2003 o programa de construção de cisternas para o
armazenamento de água da chuva destinado às famílias rurais de baixa renda,
para o consumo e para a produção de alimentos, além das cisternas escolares,
priorizando as áreas do semiárido nordestino. Segundo dados do Ministério da
Integração Nacional, entre 2003 e 2015 foram construídas 1.152.630 cisternas
nos estados que compõem o chamado “polígono das secas”4, das quais
89.692 foram construídas na Paraíba5.
A construção de cisternas apoia-se no
novo paradigma de “convivência com o semiárido”, construído particularmente a
partir dos movimentos sociais da agricultura ecofamiliar, como a Articulação do
Semiárido (ASA), superando a antiga ideia de “combater a seca”. O Relatório de
Impacto Ambiental (Rima) da transposição do rio São Francisco (BRASIL, 2004)
afirma que as cisternas são importantes “para suprir complementarmente o meio
rural – especialmente populações distantes dos rios e dos açudes –, sendo
capazes de ofertar água com relativa segurança” (Idem, p. 26) para o uso
“estritamente doméstico”, não atendendo a demanda de produção de alimentos. A
experiência das cisternas de produção, construídas pelo próprio governo
federal, diretamente ou em parceria com organizações da sociedade civil, como a
ASA, vão de encontro à afirmação do citado Rima, que minimizou o potencial das
cisternas para a convivência com o semiárido.
Mesmo assim, a utilização das cisternas
como fonte de abastecimento de água encontra seu limite na taxa de urbanização
do semiárido nordestino, que atingiu 62,2% em 2010 (OLIVEIRA, 2014). Em 2010, o
abastecimento de água no semiárido paraibano, por exemplo, era feito pela rede
geral em 70,89% dos domicílios particulares; por poço/nascente em 4,59%; por
cisterna em 6,47%; e por outras formas em 17,98%. Entretanto, na área rural do
semiárido paraibano, o abastecimento pela rede geral abrangia apenas 17,18% dos
domicílios particulares, frente a 13,66% abastecidos por poços/nascentes, 19,6%
por cisternas e 49,36% por outras formas (LEITE, 2013). Esses dados, somados
com a persistência das secas, reforçam a necessidade da transposição do rio São
Francisco, ao tempo que deixam clara a importância do programa de cisternas.
Na Paraíba, a transposição do rio São
Francisco projeta “um abastecimento seguro para 127 municípios [e] 2,5 milhões
de pessoas”, segundo informa o site do Ministério da Integração Nacional6. O entusiasmo oficial,
entretanto, não pode mascarar um cenário de assoreamento de largos trechos das
bacias dos rios Paraíba e Piranhas, agravado pelo aumento da intervenção humana
facilitada pela estiagem prolongada, e de desmatamento das matas ciliares. Além
do mais, é necessário garantir que a água transposta efetivamente chegue às
famílias e à irrigação.
No seu discurso em Monteiro, durante a
inauguração popular da transposição do rio São Francisco, a presidenta Dilma
lembrou que aquela era uma obra fundamental para a diminuição das desigualdades
regionais no país, princípio basilar da Constituição Federal de 1988. Nada mais
justo. A falta de água tem flagrantes impactos negativos sobre o desempenho da
economia e sobre o desenvolvimento sustentável do Nordeste. Um exemplo recente
está no município de Sousa, no alto sertão paraibano, que por muitos anos foi o
principal produtor do coco-da-baía do estado, destinando parte da sua produção
para exportação. Com a persistência da estiagem, a produção desse fruto vem
diminuindo na região, em virtude da redução do volume de água nos açudes de São
Gonçalo e de Coremas, cujas águas são utilizadas para a irrigação dessa lavoura7.
Esses dois açudes, que estão entre os maiores do semiárido nordestino, estão
destinados a receber as águas do Eixo Norte da transposição do São Francisco.
Como lembra o professor Ademir Melo, “o
problema principal que se apresenta ao desenvolvimento da agropecuária
paraibana reside no alto grau de vulnerabilidade dos seus sistemas produtivos
face às adversidades do clima, com secas periódicas que alcançam e às vezes
ultrapassam 80% do território estadual” (Melo, 2013, p. 175). Considerando que
a taxa de urbanização do semiárido paraibano em 2010 era de 67,8% – o que
equivalia a uma população de 1.419.000 paraibanos, contra 674 mil residindo na
zona rural do semiárido –, e que a agricultura representava apenas 4,64% da
atividade econômica da região em 2011, face a 18,74% da indústria e 76,63% do
setor de serviços (OLIVEIRA, 2014)8, percebemos que a ausência de
segurança hídrica constitui-se como um entrave para o desenvolvimento do
conjunto da atividade econômica do semiárido na Paraíba.
Dos 223 municípios paraibanos, 170 estão
no semiárido, abrangendo 86,2% do seu território, ou 48.677 km². Em 2013,
2.159.006 de paraibanos residiam no semiárido, o que equivalia a 55,15% da sua
população total, de 3.914.418 pessoas. Entretanto, a densidade demográfica do
semiárido paraibano em 2013 era de 44,4 hab./km², contra uma densidade de 225,3
hab./km² na região não semiárida (Idem). Tal disparidade pode ser facilmente
identificada como consequência da seca, que empurra parte expressiva da população
do semiárido para os grandes centros urbanos, aumentando as periferias e os
bolsões de pobreza. De acordo com dados do Instituto de Desenvolvimento
Municipal e Estadual (IDEME), das quatorze regiões geoadministrativas da
Paraíba, apenas duas ampliaram sua participação no total da população do estado
entre 2000 e 2010, e ambas estão localizadas fora do semiárido: a 1ª região,
sediada em João Pessoa, e a 14ª região, localizada em Mamanguape.
O semiárido paraibano é sensivelmente
mais pobre do que a região não semiárida do estado. O PIB dessa região
correspondia a apenas 43% do PIB estadual de 2011. Para o mesmo ano, enquanto o
PIB per capita da Paraíba era de R$ 9.349, no semiárido era de apenas R$ 7.256,
atingindo R$ 11.952 na porção não semiárida do estado (OLIVEIRA, 2014). O IDHM
do semiárido paraibano em 2010 atingiu modestos 0,59, bem abaixo do IDHM
paraibano, de 0,658, e do nacional, de 0,727. A esperança de vida ao nascer no
semiárido da Paraíba, em 2010, era de 70,36 anos, menor que as esperanças de
vida da Paraíba (72 anos) e do Brasil (73,94 anos). Já a mortalidade de
crianças de até 5 anos de idade atingiu 28,6% no semiárido paraibano, frente a
18,83% no Brasil e 13,25% em João Pessoa, capital do estado9.
Nos últimos anos, a estiagem agravou a
insegurança hídrica na região. Os 109 reservatórios de água monitorados pelo
Instituto Nacional do Semiárido (INSA) no semiárido paraibano dispunham de um
volume equivalente a apenas 14% da sua capacidade total de armazenamento em
2015. Além disso, 27% desses reservatórios estavam em colapso (capacidade de
armazenamento igual a zero) ou em situação crítica (menos de 10% da sua
capacidade de armazenamento), e nenhum estava cheio ou vertendo água
(sangrando). O açude de Boqueirão, que abastece a cidade de Campina Grande,
estava 14,4% da sua capacidade em outubro de 2015, quando o Insa realizou esse
seu monitoramento (MEDEIROS, 2015). Como a seca permanece, Boqueirão estava
beirando o colapso quando as águas do São Francisco começaram a chegar à
Paraíba, como vimos. Já em abril de 2017, o governo da Paraíba decretou estado
de emergência em 196 municípios, devido à estiagem.
O acesso à água é um direito humano,
sendo fundamental para o combate à pobreza. Entretanto, desde a Operação
Nordeste de Celso Furtado aprendemos que a pobreza da região não está apenas
associada à ausência de água, mas também a uma estrutura agrária concentradora,
bem como à apropriação privada das águas dos açudes pelas elites. Além da
transposição do rio São Francisco, portanto, há que se democratizar o acesso à
terra e ampliar o apoio às iniciativas de produção agropecuária articuladas com
o paradigma da convivência com o semiárido, que são praticadas principalmente
pela agricultura ecofamiliar, que gera emprego, fixa o trabalhador no seu local
de origem – o que é importante sobretudo quando se considera que o nordestino é
um povo culturalmente telúrico – e, ao contrário do agronegócio, garante a
construção de um “Brasil rural com gente”, nas belas palavras da economista
Tânia Bacelar10. Nesse caso, entretanto, a tendência atual é de
retrocesso, com o esvaziamento dos direitos da cidadania patrocinado pelo
governo golpista que, já nas suas primeiras medidas, fechou os ministérios do
Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social, importantes instrumentos
de políticas públicas para o semiárido nordestino desde 2003, com programas
como o Pronaf e o Bolsa Família.
Eu tive a oportunidade de participar da
inauguração popular da transposição do rio São Francisco, em Monteiro. Cheguei
cedo, e pude conversar com diversos populares que estavam lá para ver Dilma e
Lula, vindos de diversas regiões do Nordeste. O sentimento geral era de
gratidão e de identificação com um modelo de governança que reorientou as
prioridades do Estado brasileiro para as políticas sociais e para o combate das
desigualdades. Tratando-se do Nordeste brasileiro, região historicamente marcada
pelo subdesenvolvimento, o impacto foi muito forte, dinamizando a economia da
região e melhorando substancialmente a qualidade de vida, particularmente do
povo mais humilde. Naquele dia, vendo as manifestações de afeto e de
solidariedade populares dirigidas aos dois ex-presidentes, eu me perguntava:
que liderança política, no mundo contemporâneo, consegue reunir,
espontaneamente, tanta gente? Desconheço.
Essa força popular é transformadora, e
precisa ser mobilizada em defesa da democracia e de um programa de governo que
enfrente com radicalidade, a partir de 2019, as desigualdades que persistem na
sociedade brasileira, impactando negativamente a qualidade da sua democracia.
Referências
AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS. Conjuntura
dos Recursos Hídricos: Informe 2016. Brasília: 2016.
BRASIL. RIMA – Projeto de Integração da
Bacia do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional.
Brasília: Ministério da Integração Nacional, 2004.
LEITE, Jurandyr Carvalho Ferrari [et
al.]. O Novo Perfil do Nordeste Brasileiro no Censo Demográfico 2010.
Fortaleza: BNB, 2013.
MEDEIROS, Salomão [et. al.].
Monitoramento dos Reservatórios da Região Semiárida, v. 2, n. 11. Campina
Grande: INSA, nov. de 2015.
MELO, Ademir Alves de. Paraíba em
Números 2013. João Pessoa: UFPB, 2013.
OLIVEIRA, Hamilton Reis de [et. al.].
Nordeste do Brasil: Sinopse Estatística 2014. Fortaleza: BNB, 2014.
SILVA, Rodrigo Freire de Carvalho e.
Paraíba 2000-2013. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.
*
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva é professor de Ciência Política na
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e militante do PT de João Pessoa
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