E
o banqueiro decidiu cobrar a conta do golpe
Paulo Moreira Leite
Os interessados num curso
rápido sobre Política Brasileira nos tempos de Michel Temer-Henrique Meirelles
devem debruçar-se diante do artigo "A importância da Reforma
Trabalhista", do banqueiro Roberto Setúbal. Um dos homens mais ricos do
país -- em 2012 a Forbes estimou sua fortuna em R$ 6,2 bilhões
-- Roberto Setúbal é um dos herdeiros do Itaú Unibanco, o maior banco do país,
com ativos da ordem de R$ 1,4 trilhão.
Foi o principal executivo da
instituição nas duas últimas décadas. Há menos de um mês, o banco anunciou sua
substituição por Cândido Bracher.
Numa época em que a maioria
das empresas enfrenta a pior recessão desde 1948 e os brasileiros encaram um
desemprego como nunca foi registrado, os bancos em geral e o Itaú em particular
acumulam números risonhos de prosperidade. No primeiro trimestre de 2017, o
lucro da instituição chegou a R$ 6,05 bilhões. Foi um crescimento espetacular
-- 19,6% -- em comparação com o ano passado.
Como era previsível
considerando seu papel destacado na articulação que derrubou Dilma, o Itaú
emplacou um homem de confiança na posição mais estratégica do mercado
financeiro: Ilan Goldfarb, presidente do Banco Central, era o economista-chefe
do banco. Num sintoma das mudanças implementadas desde então, nunca mais se
ouviu os porta-vozes do Estado Mínimo engrossarem o coro sobre a Independência
do Banco Central, que tanta discussão causou na campanha de 2014. Não é mais
preciso, pois o mercado passou a mandar.
(E manda tanto que, mesmo em
caso de queda do presidente da República, os patronos do golpe já trabalham
para que a equipe econômica permaneça intocável).
Poucos meses depois da posse
de Temer no Planalto e de Henrique Meirelles na Fazenda, os bancos estatais,
que haviam reforçado a musculatura na década anterior para acolher clientes
abandonados pelo setor privado, começaram a ceder espaço. Enquanto o BNDES era
esterilizado, o Banco do Brasil perdeu tamanho: 400 agencias foram fechadas e
outras 400 foram reduzidas a postos bancários. Em nome do equilíbrio
financeiro, as instituições que haviam assumido a liderança na recuperação de
2008-2009 tornaram-se menos competitivas, abandonando o esforço de ampliar a
própria clientela. A Caixa passou a cobrar a segunda maior taxa de juros do
crédito rotativo. O Banco do Brasil tornou-se dono do juro mais alto, entre os
cinco maiores bancos, para a compra de veículos. Não surpreende que, com a
economia em queda, o estoque geral de crédito tenha encolhido. A redução foi da
ordem de 6,4% em relação ao ano anterior. Mas a queda foi maior entre bancos
estatais -- 7,7% -- do que nos privados, 4,8%.
No esforço para embelezar um
projeto rejeitado pelos brasileiros na proporção de 5 contra 1, conforme
pesquisa DataFolha (2/5/2017), Roberto Setúbal emprega termos que a atual moda
ideológica chamaria de "populistas". Escreve que "capital e
trabalho são parceiros, estão no mesmo barco".
É fácil enxergar, contudo, o
risco de afogamento para quem não tem hospedagem garantida na primeira classe e
compreender que a desregulamentação -- peça chave da reforma -- implica, em
primeiro lugar, em maiores facilidades para demitir e desempregar.
Ficando no caso específico.
Entre janeiro de 2013 e maio de 2017, os bancos suprimiram 45 419 postos de
trabalho, fechando, em caráter permanente, vagas que abrigavam perto de 10% da
categoria. Desse total, quase a metade -- 20.553 vagas -- foram extintas em
2016, o ano em que Dilma caiu. Outras 9 621 foram fechadas nos primeiros cinco
meses de 2017. Não se fala, aqui, da velha rotatividade de mão de obra,
utilizada pelas empresas para pegar de volta o reajuste de salário entregue
depois de cada dissídio. É supressão de emprego, sem volta.
Numa área onde a jornada de
seis horas, fixa em lei, é alvo de uma guerra constante de funcionários e
empresas, Setúbal apoia a jornada intermitente -- aquela que não tem hora para
terminar nem para acabar, tudo de acordo com a disponibilidade do
patrão-freguês, transformando o trabalho de cada dia numa "servidão
voluntária," como lucidamente definiu o ministro Maurício Godinho Delgado,
do TST.
Claro que Setúbal acha que a
aprovação da terceirização ampliada foi uma boa ideia e reclama que o Brasil
tem sindicato demais. Defende o fim do imposto sindical com palavras liberais:
" a proposta oferece ao trabalhador um novo direito: o de escolher se quer
ou não contribuir para a associação de sua classe profissional." Mas nada
diz sobre o Sistema S, que garante às entidades patronais uma receita exclusiva
de R$ 16 bilhões, que transforma o imposto sindical, do ponto de vista
patronal, em mesada para crianças. Setúbal também imagina que o país vai sair
ganhando caso a Justiça do Trabalho deixe de ser gratuita -- e se, antes lutar
por seus direitos, todo assalariado for obrigado a pensar duas vezes antes de
entrar com uma ação que, em caso de derrota, irá custar multas impagáveis no
horizonte de quem vive de salário.
Um dos principais defensores
da noção de que os problemas atuais da economia brasileira são herança direta
dos anos Dilma, Roberto Setúbal defende as reformas em tom apocalíptico.
"Computando as projeções de mercado, só em 2021 vamos recuperar o nível
anterior, completando oito anos sem crescimento de renda. No mesmo período, a
renda média mundial terá crescido, aproximadamente, 20%,"escreve.
"Nesse contexto se insere a necessidade de fazermos reformas."
Entrevistada pelo 247, a
dirigente sindical Juvandia Moreira Leite (sem parentesco com o autor destas
linhas), que acumulou sete anos a frente do Sindicato dos Bancários de São
Paulo e tem um mandato de vice presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores do Setor Financeiro, diz que "os argumentos a favor da
reformas estão errados pelo princípio. Em poucos países como o Brasil as
empresas tem tanta facilidade de demitir, como provam os 45 000 empregos de
bancários suprimidos em cinco anos. Além disso, você não consegue explicar a
rotatividade anual da mão de obra, sem reconhecer a facilidade para demitir
funcionários."
Para Juvandia, "o que os
patrões querem é regularizar o bico, impedindo que seja motivo de ações futuras
na Justiça."
A consulta a um estudo com a
chancela da Organização Internacional do Trabalho ajuda colocar o debate no
devido lugar. Trata-se de um levantamento em 110 países, que avalia os efeitos
dos programas de desregulamentação aplicados a partir da crise de 2008-2009,
disponível em inglês ("Drivers and effects of labour market reforms:
Evidence from a novel policy compendium"). Nos parágrafos finais, após
dezenas de gráficos e tabelas, chega-se a uma conclusão instrutiva -- os
trabalhadores nunca saíram ganhando.
No menos pior dos casos,
pode-se perceber, os trabalhadores se sacrificaram, abriram mão de direitos
anteriores em troca da promessa de mais empregos mas as novas vagas não vieram.
Sem qualquer espirito panfletário, como convém a uma instituição que representa
pontos de vista de governos diferentes e até opostos, o documento fundamenta
suas conclusões com argumentos técnicos. Avaliando mudanças sobre a jornada de
trabalho (74% dos casos), contratos temporários (65%) e demissões coletivas
(62%), mostra que em boa parte dos casos avaliados a desregulamentação teve um
efeito nulo ou "estatisticamente insignificante" na criação de
empregos, tenha custado direitos mão de direitos garantidos anteriormente.
Mas o caso é diferente,
mostra a OIT, quando se analisa a situação de países que resolveram aplicar
programas de desregulamentação no meio de uma crise econômica. Como podemos
imaginar, é justamente este o caso do Brasil de Temer. O impacto das mudanças,
neste caso, agrava a crise no emprego em vez de aliviar. "Quando os
efeitos das reformas são examinados em diferentes momentos do ciclo econômico,
o resultado confirma a hipótese de que, implementadas em tempos de crise, intervenções
desreguladoras têm um efeito negativo a curto prazo." Ponto. Parágrafo.
Laboratórios de uma
experiência social perversa, os países em estágio avançado de desregulamentação
do trabalho oferecem aquele espetáculo ao alcance do olhar de todo turista:
empobrecimento, queda nos serviços públicos e, em alguns casos, surtos
autoritários e reações fascistas. Isso acontece porque as reformas colocam em
movimento uma bola de neve negativa, que começa pela perda de renda, depois o
empobrecimento e a queda no consumo, que acaba enfraquecendo a demanda e a
produção -- num conjunto que bloqueia a retomada da economia, em vez de
reanimá-la. Mesmo juros perto de zero não atrapalham mas estão longe de
alcançar o efeito desejado.
No caso brasileiro, a
destruição da CLT é mais do que uma lembrança histórica. Implica na
substituição de um projeto de crescimento apoiado numa política de
industrialização e construção de um mercado de massas, pela integração
subordinada ao mercado mundial, onde o custo do trabalhador brasileiro precisa
ser compatível com aquilo que países na mesma situação oferecem.
"Estamos falando de uma
mudança muito mais profunda do que se pensa" afirma o sociólogo Clemente
Ganz, do DIEESE, um aplicado estudioso da reforma. "O eixo da economia
deixa de ser interno para ser determinado de fora para dentro. O rendimento de
nossos trabalhadores não tem referencia suas necessidades nem as possibilidades
do país mas devem competir com o de outros assalariados. Nessa perspectiva até
os chineses se tornaram mais caros. A mão de obra brasileira está sendo
organizada para competir com trabalhadores de países mais pobres da Asia e
também da África. Deve ser compatível com isso." Clemente Ganz acha
necessário debater, sim, mudanças na legislação trabalhista. "Mas isso
precisa ser debatido, negociado. Não pode ser imposto numa posição de força,
goela abaixo."
Quando faltam poucos dias
para o Senado votar a reforma, chega a ser inquietante imaginar o tipo de
sociedade que se pretende construir a partir daí. Mesmo num país conhecido pela
estrutura desigual, o mapa de distribuição de renda no interior dos bancos
brasileiros surpreende pelo abismo construído entre a cúpula das instituições e
sua base -- aquela, do "mesmo barco". Mesmo numa instituição estatal,
como o Banco do Brasil, a diferença de rendimento entre um diretor e um esrciturário
é grande -- 42 vezes. No setor privado, contudo, é ainda maior. No Bradesco, a
distância é de 109 vezes. No Santander, fica em 144 vezes. Mas nenhuma
instituição supera o Itaú nesta matéria. Seus diretores tem um rendimento anual
de R$ 12,5 milhões, o equivalente a 255 vezes aquilo que recebe um
escriturário.
Olhando por essa perspectiva,
é possível imaginar o que a reforma trabalhista nos aguarda, caso venha ser
aprovada pelo Senado.
A vida só pode piorar.
Alguém duvida?
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