10/07/2017 14:56 - Copyleft
Leonardo Isaac YarochewskyO juiz Jeiza ou a violação do princípio do juiz natural
Alguns juízes se portam como se Jeiza fossem. Para esses magistrados não há limites de competência ou qualquer outro
Jeiza é o nome da personagem interpretada pela talentosa e bela PAOLLA DE OLIVEIRA na novela das 21:00 horas da Globo “A Força do Querer”. Jeiza é major e participa praticamente de todas as operações policiais na cidade do Rio, local em que se passa a novela. Além de adestrar seu fiel cão Iron, a major Jeiza comanda blitz, efetua prisões, faz apreensões, ouve conversas “grampeadas”, participa de busca a foragidos e, mesmo quando está teoricamente de folga, encontra tempo para proteger travestis e mulheres vítimas da violência. Jeiza já fez até às vezes de “parteira” ajudando no parto de outra personagem que estava dando a luz dentro de um táxi no meio de um tiroteio. Longe do trabalho, a major Jeiza sobe no octógono para as lutas do UfC.
A major Jeiza é onipresente, sua competência é “universal”, ela não está restrita a sua área de atuação ou a qualquer circunscrição. A major não conhece as limitações da Constituição da República e do Código de Processo Penal. Mesmo assim, Jeiza foi alçada a condição de heroína no combate ao crime.
Alguns juízes se portam como se Jeiza fossem. Para esses magistrados não há limites de competência ou qualquer outro. Eles acreditam ter competência “universal” para julgarem todos e em qualquer lugar, desde que assim lhes convenham. Para os juízes Jeiza não existe o princípio do juiz natural, jurisdição e competência são obras de ficção. Em nome do combate ao crime e sob o lema vil de que “os fins justificam os meios” os juízes Jeiza atropelam os princípios e garantias fundamentais próprios do Estado democrático de direito.
O princípio do juiz natural, em sua formulação mais madura, se deve ao pensamento iluminista francês do século XVIII e às declarações revolucionárias de direitos. Surgiu em oposição aos juízes “comissários nomeados” pelo rei para “julgar um cidadão”.[1]
Observa o jurista italiano LUIGI FERRAJOLI que a garantia do juiz natural significa três coisas diferentes, ainda que entre si conexas: “a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais”.[2]
O processualista AURY LOPES JUNIOR assevera que:
O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para sua própria existência. Como exemplificamos anteriormente, na esteira de MARCON, o Princípio do Juiz Natural é um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico-penal. [3]
RUBENS CASARA e ANTONIO MELCHIOR[4] observam que o princípio do juiz natural (do juiz constitucional ou do juiz legal) é um dos “pilares do devido processo legal”. A garantia do juiz natural surgiu, ainda de acordo com os eminentes autores, “para limitar o poder e, em especial, para extremar (e garantir) a separação entre os órgãos encarregados da administração e os órgãos com funções jurisdicionais”. O princípio do juiz natural constitui a um só tempo, uma garantia para o acusado e garantia da própria atividade jurisdicional.
Não é despiciendo destacar que a Constituição da República proclama que:
Art. 5º. (…)
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
O Supremo Tribunal Federal analisando o alcance do princípio do juiz natural decidiu que:
O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (…). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, represente fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004).
É em razão do princípio do juiz natural – com competência clara e pré-determinada por lei anterior ao fato a ser julgado – que se evita os males causados pelo “juiz de encomenda”. Como observam, uma vez mais CASARA e MELCHIOR, “a definição do órgão jurisdicional competente é obra do legislador e, para se dar concretude ao princípio do juiz natural, essa declaração legal deve ocorrer antes do fato a ser julgado”.[5]
No Brasil de “tempos sombrios”, chama a atenção as arbitrariedades que são empreendidas no âmbito da chamada “Operação Lava-Jato” em nome de um fantasmagórico poder punitivista e do combate à corrupção. Tem causado espécie nos juristas, verdadeiramente comprometidos com a legalidade democrática, o modo como tem sido conduzido pelos procuradores da República da “Força Tarefa” e pelo juiz Federal Titular da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR os processo que dizem respeito à famigerada operação.
No que se refere à violação do princípio do juiz natural e a incompetência do juiz Titular da 13ª Vara Federal de Curitiba-PR, MARIA LÚCIA KARAM é categórica ao dizer que:
Todos os totalitários desvirtuamentos do processo penal brasileiro, registrados de forma especialmente eloquente nos procedimentos relativos às ações penais de naturezas cautelar e condenatória, reunidas sob a midiática denominação de ‘operação lava-jato’, vêm sendo conduzidos, em primeiro grau, por juízo incompetente. Valendo-se de uma inexistente prevenção, quando nem abstratamente sua competência poderia ser identificada, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, menosprezando o princípio do juiz natural, voluntariosamente se transformou em uma espécie de ‘juízo universal’ messianicamente destinado a pôr fim à corrupção no Brasil.[6]
Mais adiante, MARIA LÚCIA KARAM conclui:
Talvez esteja aqui a ‘mãe’ de todas as violações cotidianamente explicitadas na midiática ‘operação lava-jato’. O juiz que age ilegitimamente, rompendo as amarras impostas pelo princípio do juiz natural, não terá pruridos em seguir avançando no menosprezo a outros princípios e garantias inscritos em normas constitucionais e em declarações internacionais de direitos humanos. [7]
O juiz Jeiza – de “encomenda” ou “incompetente” – afronta o próprio Estado democrático de direito. Magistrados Jeiza e tribunais de exceção são compatíveis apenas e tão somente com os estados fascistas, com os regimes autoritários e de exceção em que prevalece a vontade do homem em detrimento da vontade da lei.
Com precisão cirúrgica RUBENS CASARA destaca que: “O Estado Constitucional é Estado de Direito, mas é também e sobretudo Estado democrático. Isso significa que o poder, além de limitado, deve exercer-se de forma democrática e direcionada à concretização do projeto constitucional (leia-se: voltado à realização dos direitos fundamentais de todos)”.[8]
Assim e por tudo, que somente nas novelas (obras de ficção) tem lugar para Jeizas, no campo do direito e, portanto da realidade, nem mesmo a bela e talentosa atriz PAOLLA DE OLIVEIRA acredita nos superpoderes de sua personagem. Na vida real, do soldado ao general, do juiz de piso ao ministro do STF, todos, sem exceção, devem se guiar pelo respeito à Constituição da República, doa a quem doer.
.
Inverno de 2017.
Notas e Referências:
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantistmo penal. 4ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 544.
[2] FERRAJOLI, op. cit. p. 543.
[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade consitucional. Vol. I. 5ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 430.
[4] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica vol I. Lumen Juris, 2013, p. 136 e segs.
[5] Idem, p. 138
[6]Disponívelem:<http://emporiododireito.com.br/a-midiatica-operacao-lava-jato-e-a-totalitaria realidade-do-processo-penal-brasileiro/
[7] Idem, ibidem.
[8] CASARA, Rubens. Jurisdição penal autoritária in Brasil em Fúria: democracia, política e direito. Giane Ambrósio Alves et al. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017.
A major Jeiza é onipresente, sua competência é “universal”, ela não está restrita a sua área de atuação ou a qualquer circunscrição. A major não conhece as limitações da Constituição da República e do Código de Processo Penal. Mesmo assim, Jeiza foi alçada a condição de heroína no combate ao crime.
Alguns juízes se portam como se Jeiza fossem. Para esses magistrados não há limites de competência ou qualquer outro. Eles acreditam ter competência “universal” para julgarem todos e em qualquer lugar, desde que assim lhes convenham. Para os juízes Jeiza não existe o princípio do juiz natural, jurisdição e competência são obras de ficção. Em nome do combate ao crime e sob o lema vil de que “os fins justificam os meios” os juízes Jeiza atropelam os princípios e garantias fundamentais próprios do Estado democrático de direito.
O princípio do juiz natural, em sua formulação mais madura, se deve ao pensamento iluminista francês do século XVIII e às declarações revolucionárias de direitos. Surgiu em oposição aos juízes “comissários nomeados” pelo rei para “julgar um cidadão”.[1]
Observa o jurista italiano LUIGI FERRAJOLI que a garantia do juiz natural significa três coisas diferentes, ainda que entre si conexas: “a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais”.[2]
O processualista AURY LOPES JUNIOR assevera que:
O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para sua própria existência. Como exemplificamos anteriormente, na esteira de MARCON, o Princípio do Juiz Natural é um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico-penal. [3]
RUBENS CASARA e ANTONIO MELCHIOR[4] observam que o princípio do juiz natural (do juiz constitucional ou do juiz legal) é um dos “pilares do devido processo legal”. A garantia do juiz natural surgiu, ainda de acordo com os eminentes autores, “para limitar o poder e, em especial, para extremar (e garantir) a separação entre os órgãos encarregados da administração e os órgãos com funções jurisdicionais”. O princípio do juiz natural constitui a um só tempo, uma garantia para o acusado e garantia da própria atividade jurisdicional.
Não é despiciendo destacar que a Constituição da República proclama que:
Art. 5º. (…)
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
O Supremo Tribunal Federal analisando o alcance do princípio do juiz natural decidiu que:
O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (…). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, represente fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004).
É em razão do princípio do juiz natural – com competência clara e pré-determinada por lei anterior ao fato a ser julgado – que se evita os males causados pelo “juiz de encomenda”. Como observam, uma vez mais CASARA e MELCHIOR, “a definição do órgão jurisdicional competente é obra do legislador e, para se dar concretude ao princípio do juiz natural, essa declaração legal deve ocorrer antes do fato a ser julgado”.[5]
No Brasil de “tempos sombrios”, chama a atenção as arbitrariedades que são empreendidas no âmbito da chamada “Operação Lava-Jato” em nome de um fantasmagórico poder punitivista e do combate à corrupção. Tem causado espécie nos juristas, verdadeiramente comprometidos com a legalidade democrática, o modo como tem sido conduzido pelos procuradores da República da “Força Tarefa” e pelo juiz Federal Titular da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR os processo que dizem respeito à famigerada operação.
No que se refere à violação do princípio do juiz natural e a incompetência do juiz Titular da 13ª Vara Federal de Curitiba-PR, MARIA LÚCIA KARAM é categórica ao dizer que:
Todos os totalitários desvirtuamentos do processo penal brasileiro, registrados de forma especialmente eloquente nos procedimentos relativos às ações penais de naturezas cautelar e condenatória, reunidas sob a midiática denominação de ‘operação lava-jato’, vêm sendo conduzidos, em primeiro grau, por juízo incompetente. Valendo-se de uma inexistente prevenção, quando nem abstratamente sua competência poderia ser identificada, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, menosprezando o princípio do juiz natural, voluntariosamente se transformou em uma espécie de ‘juízo universal’ messianicamente destinado a pôr fim à corrupção no Brasil.[6]
Mais adiante, MARIA LÚCIA KARAM conclui:
Talvez esteja aqui a ‘mãe’ de todas as violações cotidianamente explicitadas na midiática ‘operação lava-jato’. O juiz que age ilegitimamente, rompendo as amarras impostas pelo princípio do juiz natural, não terá pruridos em seguir avançando no menosprezo a outros princípios e garantias inscritos em normas constitucionais e em declarações internacionais de direitos humanos. [7]
O juiz Jeiza – de “encomenda” ou “incompetente” – afronta o próprio Estado democrático de direito. Magistrados Jeiza e tribunais de exceção são compatíveis apenas e tão somente com os estados fascistas, com os regimes autoritários e de exceção em que prevalece a vontade do homem em detrimento da vontade da lei.
Com precisão cirúrgica RUBENS CASARA destaca que: “O Estado Constitucional é Estado de Direito, mas é também e sobretudo Estado democrático. Isso significa que o poder, além de limitado, deve exercer-se de forma democrática e direcionada à concretização do projeto constitucional (leia-se: voltado à realização dos direitos fundamentais de todos)”.[8]
Assim e por tudo, que somente nas novelas (obras de ficção) tem lugar para Jeizas, no campo do direito e, portanto da realidade, nem mesmo a bela e talentosa atriz PAOLLA DE OLIVEIRA acredita nos superpoderes de sua personagem. Na vida real, do soldado ao general, do juiz de piso ao ministro do STF, todos, sem exceção, devem se guiar pelo respeito à Constituição da República, doa a quem doer.
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Inverno de 2017.
Notas e Referências:
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantistmo penal. 4ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 544.
[2] FERRAJOLI, op. cit. p. 543.
[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade consitucional. Vol. I. 5ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 430.
[4] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica vol I. Lumen Juris, 2013, p. 136 e segs.
[5] Idem, p. 138
[6]Disponívelem:<http://emporiododireito.com.br/a-midiatica-operacao-lava-jato-e-a-totalitaria realidade-do-processo-penal-brasileiro/
[7] Idem, ibidem.
[8] CASARA, Rubens. Jurisdição penal autoritária in Brasil em Fúria: democracia, política e direito. Giane Ambrósio Alves et al. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017.
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