quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A Coreia Popular e o eurocentrismo racista da modernidade

A Coreia Popular e o eurocentrismo racista da modernidade

YURI MARTINS FONTES
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A Coreia Popular e o eurocentrismo racista da modernidade
Por Yuri Martins Fontes
A Coreia Popular – vulgarmente chamada pela mídia ocidental de Coreia do Norte – é uma nação soberana intensamente fustigada pela superpotência imperialista há cerca de meio século. Não é intenção aqui discutir se seu modelo socioeconômico é uma forma “pós-capitalista de acumulação estatal de capital”, ou um “socialismo burocrático”, ou ainda uma “ditadura familiar” ou “do povo”; e nem debater se os gestos “supostamente” autoritários de seu governo são conjunturalmente necessários ou frutos de uma tirania pessoal insana (digo "supostamente" porque, em realidade, as "evidências" apresentadas pelo Ocidente são, como se sabe, bem pouco confiáveis, e ainda, neste caso, têm pouco fundamento empírico, dado o “fechamento” do país). Mas decerto, o que se sabe é que se trata de um modelo não-capitalista neoliberal, que foge do alinhamento com as grandes potências mundiais de maneira geral – inclusive mantendo-se a uma distância regulamentar da parceira China.
O que se quer colocar aqui como reflexão é tanto a forma como a mídia global capitalista vem julgando e condenando as decisões soberanas desta nação (segundo interessados e mesquinhos parâmetros eurocêntricos), como ainda o modo como tais parâmetros afetam também uma parte da consciência social-reformista – pessoas muitas vezes engajadas em causas humanistas, mas cuja mente ainda colonizada (por nossa pobre formação educacional e midiática) reproduz graves preconceitos.
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A atual situação de escassez material coreana é um reflexo da necessidade de se armar, desde sua Revolução Socialista, para proteger sua soberania. Após a vitória na Segunda Guerra contra os invasores imperiais-fascistas japoneses (aliados dos nazistas), a Coreia se dilacera em uma guerra civil, sendo invadida pelos Estados Unidos em 1950; a China de Mao Tsé-Tung, contudo, apoia as tropas socialistas, equilibrando o conflito; a guerra termina com a divisão do país em 1953 – após a morte de 5 milhões de coreanos no total, além de 1 milhão de chineses. Nesta guerra, como em várias outras (caso do Vietnã), os EUA se utilizaram de armas químicas (como o sufocante napalm e outras bombas incendiárias), assassinando cerca de 20% da população norte-coreana, segundo estima o comandante da força aérea Curtis LeMay (em matéria publicada no portal da – conservadora – CNN-España). E apenas para ilustrar a discrepância entre a “periculosidade” estadunidense e as demais, vale aqui uma digressão para citar que desde meados do século XX, os Estados Unidos – ora “guardiães da paz” e da luta contra o “terrorismo” em nome de seu deus – exterminaram desde a Segunda Guerra cerca de 20 milhões de seres humanos, em dezenas de nações atacadas, conforme o estudo publicado no portal Global Research: “US has killed more than 20 million people in 37 'victim nations' since World War II”). Ademais, diz este estudo, segundo denúncias de John H. Kim, veterano de guerra dos EUA e membro do Comitê Coreano de Veteranos pela Paz, o exército de seu país é diretamente responsável pelo assassinato de 3 milhões de civis na Guerra da Coreia, despejando sobre o território 650 mil toneladas de bombas, sendo 43 mil toneladas do combustível asfixiante napalm.
Passada a Guerra, nos anos 1970, a Coreia Popular se distancia dos modelos socialistas predominantes (soviético e chinês), adotando a ideologia juche – que consiste em uma leitura nacional do marxismo, a qual prevê a “autossuficiência” econômica e a “soberania política”.
Conforme observa o historiador da USP, Lincoln Secco, em seu recente e fora-de-linha artigo “Coreia Popular e o seu direito a existir” (Boitempo / Portal Vermelho), o isolamento político norte-coreano acabou obrigando o país a investir na Defesa grande parcela de seu orçamento – o que conformaria em algumas décadas o arsenal poderoso que hoje, segundo a mídia hegemônica, “ameaça o mundo”. Porém, sem suas “forças armadas descomunais” – prossegue o professor – “a Coreia Popular há muito teria sucumbido”, e como é óbvio em um “país armado até os dentes”, não se poderia esperar que lá houvesse “a mais pura democracia”; se é obviamente louvável que – como defende Marx – os governos de modo geral gradualmente “fossem varridos” e que as comunidades dispusessem para si dos “trilhões de dólares já gastos no mundo com a violência” (de inúmeras guerras provocadas por disputas capitalistas), o que está em jogo hoje é antes “uma progressiva propaganda” do governo estadunidense para destruir mais uma nação opositora – como já se viu nas recentes “histórias” do arsenal químico de Saddam Hussein, ou mais recentemente de Bashar Al-Assad. Há realmente “um grande perigo” de guerra nuclear, e os “loucos” podem mesmo provocá-la, mas eles estão antes em Washington, que em Pyongyang – pondera Lincoln.
De fato, se o arsenal coreano é motivo de real preocupação, ao que se sabe, até hoje, este país jamais ameaçou invadir ou bombardear alguma outra nação – exceto em resposta às recorrentes ameaças dos Estados Unidos contra si. E ao se tocar nesse tema, não nos esqueçamos que os Estados Unidos, muito pelo contrário, não só usou bombas atômicas (e inclusive de modo desnecessário, para arrasar a já rendida nação e esmigalhar a moral japonesa que restava, mandando ao mundo sua mensagem de “a superpotência”), como também armaram seus aliados israelitas-sionistas com essas temíveis armas nucleares, sempre em prol de fomentar seus interesses geopolíticos e econômicos (no caso, controlando de perto territórios petroleiros, além de satisfazer os interesses da alta-burguesia financista ianque-sionista, em grande parte parlamentar).
Assim, se for verdadeiro o “discurso” massivamente construído há décadas pelas agências informativas centrais do capitalismo (que pautam as manchetes do mundo: France-Presse, EFE, Reuters, Associated Press) – e acatado sem crítica pela subalterna grande imprensa acéfala brasileira –, “narrativa” que descreve o líder norte-coreano como um “insano” que ameaça a “paz mundial” (leia-se, “pax ianque”), ainda neste caso não se pode deixar de levar em consideração nesta análise que a Coreia Popular, “ditadura perversa” ou não, está quieta em seu canto. E isto, enquanto os EUA armam a monarquia tão “respeitadora de direitos humanos” – petrolífera, corrupta, teológico-machista e absolutista – da Arábia Saudita (vide o recente acordo armamentístico milionário de Trump, que inclui os modernos mísseis Thaad), gesto que se segue à destruição de algumas das principais nações laicas e opositoras “não-alinhadas” (Líbia e Síria); isso, enquanto os EUA aprovam e ratificam, através de vetos, as barbáries ao estilo de “apartheid” cometidas pelo superpoderoso Estado nuclear de Israel contra o povo palestino e seus vizinhos árabes; isso, enquanto os EUA e a UE promovem a xenofobia e o fascismo com culpabilizações e leis anti-imigração para controlar o tsunami populacional motivado pelas desagregações nacionais generalizadas que eles mesmos provocaram com seus “golpes laranjas” (pró-neoliberais) no Oriente-Médio e África e Europa.
Contaminação eurocêntrica de mentes progressistas
Se a grande mídia burguesa – que como demonstra Walter Benjamin, foi um dos principais instrumentos da consolidação do capitalismo – acusa a Coreia Popular de promover o “terror” (como acusa de “terroristas” a todos seus opositores, sejam socialistas farianos, zapatistas ou desarmados sem-terra, ou sejam fundamentalistas do Talibã – por eles formados – ou mesmo “anarco-hackers” que apenas expõem publicamente suas maracutaias), esta imprensa o faz de modo inteiramente coerente: pois aos inimigos deve-se caluniar, fustigar, provocar, agredir – esta é a “arte da guerra”.
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Todavia, o que parece absurdo é que mesmo parte da (frágil) imprensa progressista, reformista ou socialista, procede da mesma maneira: divulgando a pequena e acuada Coreia como o "grande perigo do mundo" e fazendo vistas grossas ao fato de que não há porta-aviões norte-coreanos próximos ao litoral estadunidense – mas exatamente o contrário. A infeliz matéria da jornalista francesa Martine Bulard – publicada na versão brasileira do tradicional periódico centro-esquerdista Le Monde Diplomatique –, intitulada “Coreia do Norte: uma viagem vigiada”, é exemplo disso; sob o pretexto de uma “exótica” crônica, reproduz discursos e valores da mídia neoliberal, segundo uma visão eurocêntrica que é – sem eufemismos – descarada.
Logo na chamada, a autora afirma ansiosa que tardou quase dois anos pra conseguir um “visto” de viagem ao misterioso país asiático e reclama do policiamento – embora nada mencione sobre o estado de encurralamento nacional ali vivido; ou sobre os vistos jamais emitidos para a maior parte da população mundial absolutamente proibida de entrar no centro capitalista europeu e estadunidense por falta de dólares no banco que validem seu passaporte; ou sobre os vistos franceses negados aos cidadãos de países africanos colonizados pela França e que tiveram suas economias tradicionais destroçadas em nome da “liberdade, igualdade e fraternidade” (lema que nas entrelinhas da história se pôde ler que era válido somente aos franceses e aos demais patrões do globo); ou ainda sobre o conhecido policiamento “diferenciado” que os franceses impõem aos imigrantes e mesmo aos franceses – filhos e netos de imigrantes – moradores das periferias, em que a famosa polidez francesa passa ao longe (inclusive com casos de policiais homens revistando e destratando mulheres, como a mim pessoalmente relatado em 2013 por uma das vítimas).
Mas prossigamos: na sequência, a jornalista europeia acusa a “contradição” dos mercados informais coreanos e do discreto contrabando na fronteira chinesa, além da pobreza que ela vê em variadas partes do país (apesar do excessivo “controle” sobre o viajante); contudo, ela nada menciona sobre os embargos econômicos sofridos pelo país, e muito menos sobre a exploração colonial de séculos promovida pelas nações europeias para a construção de seu próprio estado de bem-estar social (que ora rui); nem sobre as câmeras de vigilância (“controle social”) que cobrem cada metro quadrado das metrópoles europeias, ou do “excessivo” armamento de guerra usado pelo batalhão do exército francês que cotidianamente também “controla” as visitações de pontos turísticos.
Diante de todos estes “fatos” – e afinal, em cada olha há uma escolha – a francesa conclui sagazmente que há uma distância entre a imagem nacional propagada pelo governo (de “prosperidade” nacional) e a humilde realidade nacional – e neste ponto caberia a ela quem sabe a leitura da própria história europeia, no capítulo referente aos discursos chauvinistas de consolidação dos Estados-nação.
Quanta perspicácia da autora! Mais perspicaz ainda seria ela se resolvesse investigar um pouco sobre o “paradigma moderno eurocêntrico” que destrói há séculos as formas produtivas tradicionais por todo o planeta; ou se tivesse a curiosidade de sair de sua redação, na chique urbe gaulesa, aquecida com boa calefação fruto do desmatamento, e caminhasse a pé pela periferia – e caso esteja pela "Cidade-luz", não precisará caminhar muito para perceber a desigualdade: ali mesmo da cêntrica Place de la République ou nas margens gélidas do Rio Sena já se vê a miséria de inúmeros sem-teto parisienses (da gema, não estrangeiros!) com suas barracas de lona, ou a meros dois quilômetros do Centro ela pode conferir o povo se arranjando mediante contrabandos e contravenções pelas ruas, a fugir como gazelas das gentis autoridades; ou ainda, a jornalista poderia se informar sobre as dignas e não menos “austeras” formas de trabalho assalariado impostas na e pela união UE-EUA ao mundo (ou o que dele ainda resta diante da crise estrutural do trabalho), e sobre os enormes contingentes de pessoas “democraticamente” lançadas às margens do sistema, desprezadas como párias pelo novo capitalismo automatizado mundo afora – e quem sabe aí ela vislumbrasse que a situação do camponês que ela viu “trabalhando com as próprias mãos” talvez não corresponda à mais horrível miséria atualmente existente no mundo, ou que ao menos as diferenças são mais tênues do que ela nos quis fazer supor em seu texto.
A jornalista, enfim, independente de suas críticas terem ou não razão – e ela infelizmente não é um ponto fora da curva –, acaba por mostrar apenas uma face tendenciosa da realidade abjeta desta modernidade construída sob o poder ocidental, abstendo-se comodamente de qualquer crítica à visão eurocêntrica que desmantelou e segue a arruinar o que resta de humano no homem, bem como os recursos naturais de que se necessita para viver.
O erro essencial de tal perspectiva racista – que endeusa determinados valores em detrimento de outros, e que enreda (este é o ponto que se quer focar) mesmo mentes lúcidas na armadilha de avaliações repletas de preconceito étnico-cultural (por vezes xenófobas) – consiste em apenas se acusar as consequências do fato, sem serem minimamente capazes de abranger suas causas: o modelo bronco de “desenvolvimento” aos moldes da cultura moderna eurocêntrica, pautado pela ideia suicida (hoje, comprovadamente estúpida, insustentável) de “crescimento econômico infinito”.
O modelo de “progresso” ocidental
Não creio que seja possível aqui, nestes breves comentários, uma conclusão acerca de tão complexas questões, no sentido de se apontar para possíveis soluções; mas cabe sim uma constatação que por mais dura e triste que seja, parece bastante sólida e atualmente irrefutável: as únicas nações realmente soberanas no mundo são potências nucleares, ou ao menos, potências econômicas conjunturalmente desarmadas (Alemanha e Japão pós-Segunda Guerra) mas aliadas incondicionais dos EUA e em vias de se rearmar.
Se a Coreia Popular não seguisse este que é exatamente o “modelo de progresso ocidental”, certamente já teria sido destruída militar e culturalmente – tal qual a Coreia capitalista e o Japão, países que abandonaram suas tradições em prol de uma desastrada “adaptação” da cultura ocidental, gerando um amálgama naife, artificial, individualista ao extremo, e que em última análise os autoexclui, posto que eles não têm o fenótipo “ocidental” no qual se pautam (veja-se o modo como o cinema mercadológico hollywood ridiculariza com frequência a “modernidade” desses povos).
A lógica seguida pela Coreia Popular é, portanto, a mesmíssima lógica que lhe foi ensinada pelo hegemônico paradigma moderno ocidental – que domina armas e mentes há séculos. A lógica produtiva moderna, focada na exploração de massas humanas cada vez maiores e mais precárias, sempre se deu mediante a representatividade das armas. Se o dólar não-lastreado dos Estados Unidos pôde se tornar a moeda do mundo, isso não se deu pela grande amizade e confiança que os demais países do globo depositam nesta nação, mas devido à força de suas armas. Se Israel, manda e desmanda na política do Meio-Oriente e massacra a conta-gotas a Palestina – em especial no grande campo de concentração que é Gaza hoje –, enquanto zomba de “decisões” e “ultimatos” da ONU, é porque detém armas poderosíssimas que lhes foram passadas em meados do século pelos EUA, inclusive armas atômicas (jamais declaradas, nem "investigadas”, ao contrário daquelas iranianas e coreanas). E aliás, se a ONU há muito deixou de ter qualquer poder decisório efetivo, passando a ser apenas um parlamento moral anódino e desprezado, isso ocorre justamente porque essa desmoralizada organização não conta com um comando armado – ao contrário da OTAN (esta sim, com imensos “poderes” e promovendo guerras pelos quatro cantos do mundo).
Os tempos modernos, desde seus primórdios de há 5 séculos –  quando o europeu inicia a pilhagem de recursos (e saberes tradicionais) americanos – foram constituídos sob uma ideia de "progresso" intrinsecamente ligada à tecnologia, à revelia do desenvolvimento humano. Embora para a periferia do capitalismo (colonias, etc), a modernidade jamais tenha tido um viés "progressista", para a Europa em si, o iluminismo incentivou períodos de aparente progresso (movimento anti-absolutista), o que porém, logo despertaria a fúria da reação: e assim se constituiria no século XIX a sociologia positivista, para controlar as populações revoltosas – chamada no princípio de "física social", já que teve como diretrizes a metodologia empírica restrita das ciências naturais, com suas consequentes técnicas, sempre tendo em vista a instrumentalização da repressão social. A modernidade, com sua "razão instrumental", teve no começo o lema de "dominar a natureza" (Francis Bacon), ideia que acabou logicamente se estendendo ao domínio também da “natureza” do próprio homem – para manter caladas as enormes massas alijadas pela Revolução Industrial de seus meios produtivos e organização laboral.
No século XX, a modernidade, sempre em nome do progresso e da razão (aos moldes eurocêntricos, obviamente), promoveria algumas das piores atrocidades irracionais já cometidas pelo homem: a primeira e a segunda guerras mundiais, e a nuclearização da guerra fria.
A Coreia é somente uma parte integrante deste movimento – que põe nas armas seu requerimento de paz. Trata-se de um movimento autodestrutivo, que cabe ser freado com urgência – mas freado como um todo, e não apenas segundo os interesses dos mais fortes, pois que quanto maior o desequilíbrio de forças, maiores as chances de abusos e catástrofe. Para o bem de todos, os Estados Unidos parecem ainda ter consciência disso, como mostra seu secretário de Defesa, James Mattis (em coletiva de imprensa no Pentágono, 20 de maio): “Como vocês sabem, se optamos pela solução militar [na Coreia Popular], isto seria uma tragédia em escala inacreditável”.
Yuri Martins Fontes é doutor em História Contemporânea (USP/CNRS), com formação em Filosofia e Engenharia; exerce atividades como pesquisador e jornalista, além de coordenar os projetos de educação popular do Núcleo Práxis-USP.

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