terça-feira, 5 de setembro de 2017

Bolsonaro é socialista: a retórica de uma direita em desespero A ESPERTEZA DA DIREITA

Bolsonaro é socialista: a retórica de uma direita em desespero

RAPHAEL FAGUNDES
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Bolsonaro é socialista: a retórica de uma direita em desespero
Por Raphael Silva Fagundes
Se houvesse um suposto segundo turno entre Bolsonaro e algum candidato do PSDB, como Doria ou Alckmin, qual seria o “menos pior”? Essa situação é muito similar a que o filósofo esloveno Slavoj Zizek descreveu sobre disputa entre Donald Trump e Hillary Clinton: “Trump é evidentemente “pior” na medida em que promete uma guinada à direita e encena uma degradação da moralidade pública; no entanto, enquanto ele ao menos promete uma mudança Hillary também é a “pior” na medida em que faz com que não mudar nada pareça desejável”. Bolsonaro é o politicamente incorreto que defende a rigidez de costumes tradicionais, enquanto Doria apenas continuaria a política de privatizações iniciada por Temer. No entanto, não consigo me identificar com a ideia do “mal menor” para o nosso caso, como o fez Zizek ao preferir Trump a Hillary.
A língua de madeira
No último 21 de agosto, Bolsonaro, em meio às falas polêmicas que nutre a sua campanha, mostrou-se “favorável, de modo geral, às privatizações, mas faz ressalvas para setores estratégicos, como a geração de energia, que na opinião dele devem ter a presença do Estado”. Em relação à Amazônia ressaltou que os indígenas ameaçam a soberania nacional tanto quanto os interesses internacionais.
Em vídeo, demonstra-se claramente contra as estatais porque, segundo ele, dão enormes prejuízos, mas é contrário às privatizações porque quem compraria as empresas brasileiras seria a China, ou melhor, as estatais chinesas. Diz que viraríamos inquilinos de outros países. Isto é, nessa situação, o deputado parece se posicionar contrário a venda para outras nações, não para outros empresários. Mas, como um político malicioso, Bolsonaro lança mão da “língua de madeira”, uma estratégia discursiva que procura ser intencionalmente ambígua para refutar interpretações indesejadas. O medo de Bolsonaro é perder o mercado americano, já que discursa contra a privatização, ao mesmo tempo em que embarca para os EUA para divulgar sua candidatura à presidência.
A demonização da esquerda
Já os defensores da política econômica de Temer reverenciam as atitudes do presidente não eleito sem ambiguidades. No artigo de Adriano Pires para o Estado de S. Paulo isso é evidente: “O Ministério de Minas e Energia anunciou que vai privatizar a Eletrobras. A notícia com certeza é a melhor já dada pelo governo Temer e consolida a postura moderna e pró-mercado da gestão do ministro Fernando Coelho”. Além disso, não deixam de relacionar tudo que é estatal ao PT, deixando subentendido que as empresas estatais são corruptas, ou algo que não dá certo. Passou-se a usar a mesma estratégia retórica quando se quer depreciar algo: associar ao PT e, de tabela, à esquerda.
Todos conhecem o discurso de ódio produzido por Bolsonaro e seus seguidores no que tange às esquerdas. No início, esse movimento foi apreciado por toda a direita. Mas agora, a direita liberal, desesperada para dar cabo de seus adversários, incluindo o famigerado “mito”, passou a forjar um argumento que exprime a ideia de que estamos lidando com um indivíduo criado pela própria esquerda, ou que é muito semelhante a esta.
Todos conhecem o discurso de ódio produzido por Bolsonaro e seus seguidores no que tange às esquerdas. No início, esse movimento foi apreciado por toda a direita
Rodrigo Constantino, o “liberal sem medo”, disse que a mentalidade militar de Bolsonaro, que o faz ser contrário às privatizações, é de esquerda. “Mas é exatamente a mentalidade típica da esquerda, que desconfia do livre mercado e defende mais estado sempre, e também a de muito militar, justamente porque aprendeu a enxergar o mundo pela lente de guerras. É por isso que tanto socialistas como militares gostam de falar em ‘setor estratégico’ e controle estatal, ou confundir recursos naturais como riquezas efetivas”, argumenta aquele que diz patrulhar a esquerda “politicamente correta”.
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Usando um recurso textual que na fala poderia ser facilmente classificado como uma pausa retórica, comenta: “Eu confesso que não escutava falar de ‘setor estratégico’ como argumento contra a privatização desde… o PT!”. Em seguida, Constantino conclui que a visão do deputado federal “parece muito com a dos próprios socialistas!”, e ainda que Bolsonaro adota “o mesmo discurso da esquerda quando o assunto é privatização e globalização”.
Mas acredito que ninguém é melhor que Carlos Andreazza para criar um malabarismo retórico que associa Bolsonaro à esquerda: “O autocrata Bolsonaro é obra-prima do plano de hegemonia esquerdista, aquele que, ao ocupar todos os espaços de produção-divulgação do pensamento, empastelou a chance de que aqui houvesse um partido conservador ao menos”. Em seguida com uma parcela de razão: “Num País desprovido de representação conservadora, (Bolsonaro) aceitou a ponta que seria dada a qualquer um que não se constrangesse em encenar o papel de extremista escrito pela narrativa da esquerda”. “Ele cresceu — cresce — com Lula. Lula torce para tê-lo como adversário”. Ao longo do seu texto, Andreazza quer mostrar que a verdadeira oposição ao PT é o PSDB, no entanto, a demonização da política, o empobrecimento do debate, que chama de “hegemonia esquerdista”, pariu um Bolsonaro como representante da direita.
Dizer A pensando não-A
Jamais poderemos comparar o pensamento de Bolsonaro ao de Trump, mas sua retórica sim. E falo de uma retórica que pretende “dizer A mas pensar não-A”, tão examinada nos textos do filósofo Michel Meyer. Aquela que Patrick Charaudeau chamou de máscara que, além de ser uma dissimulação e uma fraude, é um símbolo de identificação, “a ponto de nela se confundirem o ser e o parecer, a pessoa e o personagem, tal como no teatro grego”. Aquela retórica que o historiador Michel de Certeau apreendeu no Barroco, quando “uma sociedade inteira diz o que está construindo, com as representações do que está perdendo”.
Bolsonaro é a favor da privatização, votou pelo pré-sal, quem não se lembra? Foi aos EUA buscar apoio para a sua candidatura. A única coisa que a direita liberal condena, é o seu discurso radical sobre armas e ideologia de gênero. Mas nas questões que promovem um impacto direto nas lutas de classes, como o modo de gerar emprego e riquezas, os dois são cúmplices. Quem se coloca ao lado do operário em relação aos interesses do patrão? Inclusive, os dois se esforçam em ocultar o antagonismo entre esses interesses. Isto é, (desculpem-me por dizer o óbvio, embora Brecht me daria razão) Bolsonaro nunca foi ou será de esquerda.
O discurso das esquerdas está (ou deveria estar) em prol dos trabalhadores, sem, todavia, ser apenas um artifício retórico, isto é, “dizer A mas pensar não-A”, como fez o PT, em muitos casos, quando agradou aos setores empresariais e desenvolveu uma política de conciliação de classes. Ser socialista é (ou deveria ser) compreender que “o poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”.
A luta de classes como evidência
Portanto, temos que ter em vista que Bolsonaro usa o discurso (entendido aqui como uma arquitetura retórica e não como enunciados provenientes de uma mesma formação discursiva) do “patriota” e os liberais o da “globalização” e o da “pluralidade cultural” com o objetivo de salvar o mercado e promover os interesses empresariais em detrimento dos interesses dos trabalhadores. Os dois usam discursos em declínio: o do patriota devido ao surgimento da globalização e o da globalização pela crise do patriotismo. No fim, os dois discursos incorporados pelas direitas, que se resumem a si mesmos assimetricamente, visam ocultar as lutas sociais como lutas de classes.
A luta de classes é um fato que não se alimenta apenas do discurso. É algo real. É a política em sua essência, pelo menos na sociedade dos últimos 200 anos. Está nas leis de destruição dos povos indígenas para ampliar a produção, nas conquistas por melhores condições de vida e de trabalho que, hoje, estão sendo retiradas.
Nem Bolsonaro, muito menos Doria, representam as classes trabalhadoras. Inclusive, a palavra “trabalhador” raramente é citada em seus discursos. A função da direita é fazer com que os trabalhadores não se reconheçam enquanto classe. Dividi-los com polêmicas superficiais. Esse é o momento das esquerdas marxistas reagirem à retórica que pretende cooptar o trabalhador a defender causas que não são suas, a ter sonhos que não são seus.

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