quarta-feira, 27 de setembro de 2017

“Cura gay”: uma questão de política

“Cura gay”: uma questão de política

RAPHAEL FAGUNDES
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“Cura gay”: uma questão de política
Por Raphael Silva Fagundes
Poucos sabem, mas a amizade era uma maneira que se adotava na Antiguidade Clássica para a manutenção da relação homoafetiva entre um homem e um jovem. Enquanto este ainda era um estudante, o termo que se empregava era pederastia, pederasti, pais, jovem, e erastiés, amante.[1] Observa-se que a relação entre homens era vista como mais viril que uma relação com uma mulher. Podemos ver que alguns resquícios dessa cultura existe até hoje, pois entre as pessoas mais antigas ronda a ideia de que uma amizade entre um homem e uma mulher é impossível.
Mas a relação entre dois adultos nunca foi bem vista. Por mais que a idade média tenha reprimido o homossexual, na Florença do século XV, somente os sodomitas adultos eram reprimidos. Em 1542, punia-se com a pena capital as ações desses indivíduos de mais de vinte anos.

O livro V das Ordenações Filipinas de 1604, adotado no Brasil colonial, previa punições para os que cometessem o pecado da sodomia, com a justificativa do desperdício do esperma. O antropólogo e historiador Luiz Mott mostra que havia uma “perseguição àqueles que ousassem ejacular fora do vaso natural da fecundação”.[2]Logo, a própria masturbação era considerada pecaminosa em uma sociedade baseada no “crescei e multiplicai-vos”.
Mais tarde, a medicina ocidental após Samuel-Auguste-David Tissot adotou o mesmo critério cristão, “com a de perda de substância, prejudicial ao indivíduo e à sociedade toda”.[3] Em entrevista ao Roda Viva, o caricato político Enéas, no qual se inspira o famigerado Jair Bolsonaro, disse exatamente a mesma coisa. Apoiando-se em sua formação médica condena a homossexualidade como um risco a humanidade justamente porque a relação entre dois homens não há reprodução.
O mercado usa a moral contra a esquerda
A questão é que em outros tempos o homossexualismo não era um movimento de subversão simbólica. Eram atitudes privadas, vigiadas pela polícia da moral, mas os gays não pretendiam mudar a ordem simbólica, isto é, a dominação masculina. Hoje, há um interesse não apenas em se tornar visível (embora a grande mídia divulgue apenas o homossexualismo que se resume a visibilidade), mas de alterar a questão do gênero, vista como “uma construção social, uma ficção coletiva da ordem ‘heteronormatica’, que se construiu, aliás, em parte contra o homossexual”.[4]
Hoje cresce um movimento, principalmente o queer, que luta por uma nova ordem sexual em que a distinção entre os diferentes estatutos sexuais seja indiferente
Hoje cresce um movimento, principalmente o queer, que luta por uma nova ordem sexual em que a distinção entre os diferentes estatutos sexuais seja indiferente, colocando-se contrários à doxa “direita e de direita que impõe todo tipo de domínio simbólico (branco, masculino, burguês)”, afirmando que uma discriminação histórica não é natural.[5]O próprio movimento queer se posiciona contra a “assimilação da cultura gay masculina a um sistema capitalista e excludente através do chamado ‘pink money’”. O primeiro ilustre a ser chamado de “queer” foi Oscar Wilde[6] autor de “A alma do homem sob o socialismo”.
A terceira via, uma opção que se apresentou para além da esquerda e direita, como nos mostra Anthony Giddens, perdeu o espaço dos movimentos identitários de rua. O PSDB que apoia causas como a legalização da maconha e do casamento gay, não tem espaço em meio às manifestações populares. Essas pautas fazem parte hoje dos partidos à esquerda. Sem dúvida, é o PSOL o partido que participa das diversas manifestações de gênero, questões raciais, sobre drogas etc., mas também vemos a presença do PCdoB e até mesmo do PT nas ruas em defesa das liberdades individuais.
O crescimento da direita está trazendo consigo o ódio a esquerda e a tudo o que ela representa. Desta forma, as pautas liberais defendidas pela nova esquerda que surgiu nos anos 1990 tornou-se o alvo principal da direita, inclusive, a liberdade de expressão no tocante do projeto do “escola sem partido”, ou da proibição do aborto até mesmo em caso de estupro.
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A dita “cura gay”, isto é, a terapia de “reversão sexual” liberada pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho representa nada mais que os “novos” ares de uma sociedade que caminha em direção ao passado, ao retorno a uma moralidade que acreditava garantir a ordem. As classes dominantes estão com medo do fortalecimento das causas sociais porque estas, cada vez mais, tendem à  esquerda, e para solucionar esse problema que as afeta, deixa crescer as forças ideológicas conservadoras, que se pautam, inclusive, no fanatismo.
É uma questão muito mais de política que de psicologia. A psicóloga Rosangela Alves Justino, que entrou com a ação na Justiça para a promoção do projeto da “cura gay”, é assessora de um deputado do DEM-RJ, apadrinhado pelo pastor Silas Malafaia. Já Marisa Lobo, outra psicóloga que entrou com a ação, articula seu fundamentalismo com parlamentares como Marco Feliciano e trabalhou na imagem de Marcela Temer na campanha da mulher “bela, recatada e do lar”.[7]
As esquerdas estavam cooptando parte da classe média para seus setores através destas causas e, desta forma, as fileiras dos grandes defensores do espírito capitalista estavam diminuindo o seu comprimento. As classes dominantes, que não prezam pela moral, mas pela moralidade dos que consomem para que reproduzam as relações sociais que ossificam o desejo pela mercadoria, querem evitar o crescimento das esquerdas deixando a direita ganhar corpo na mídia e nas redes sociais. Tratando com negligência o amadurecimento dos discursos radicais conservadores, os grupos dominantes mantêm o controle impedindo o avanço das esquerdas em um momento em que precisam enrijecer o mercado.

[1] HOYSTAD, Ole Martin. Uma história do coração. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 60.
[2] MOTT, Luiz. Por que os homossexuais eram perseguidos? Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, n. 73, out. p. 22, 2011.
[3] MUCHEMBLED, Robert. O orgasmo e o Ocidente. São Paulo: Martins Fintes, 2007. p. 295.
[4] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 146.
[5] Id. p. 147.

Raphael Silva Fagundes é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí. 

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