Diversidade
Intolerância
Traficantes e pastores unidos pelo preconceito?
Uma série de ataques a terreiros de umbanda e candomblé na região metropolitana do Rio de Janeiro instaura uma onda de medo e incerteza
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Os ataques a terreiros espalham o medo no Rio de Janeiro
No próximo domingo 17, a partir da uma da tarde, acontece em Copacabana a 10ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. O babalaô Ivanir dos Santos está à frente do movimento que, neste ano, ocorre num contexto crítico no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro, em meio a uma série de denúncias de depredações em terreiros de candomblé e umbanda.
Mais do que marchar por um Estado laico e pelo respeito à Constituição e aos direitos das minorias e dos povos de matriz africana, o momento pede que estejamos unidos por garantias essenciais, como segurança, justiça e igualdade.
Acreditar que minorias devem ser subjugadas e se submeter à vontade da maioria é pressuposto de regimes antidemocráticos, nazistas, despóticos. Respeitar e conviver com a diversidade é a base de um Estado Democrático de Direito, no qual a liberdade de consciência e de crença precisa estar garantida.
Não é de hoje que os povos de matriz africana denunciam atos de intolerância: pais e mães de santo expulsos de comunidades, adeptos proibidos de usar roupas brancas e insígnias dos orixás, fiéis atacados com pedradas etc.
A mídia havia noticiado em outras ocasiões, mas os acontecimentos das últimas semanas chocam pela crueldade e por associar, conforme denúncias encaminhadas à Secretaria Estadual de Direitos Humanos, as ações de traficantes e de milícias em terreiros do Rio de Janeiro a pastores e igrejas evangélicas.
Alguns vídeos de depredações, nos quais os criminosos ameaçam frequentadores e destroem com extrema violência objetos sagrados e locais de culto, viralizaram na internet. Nesses vídeos, o nome de Jesus é evocado, sobressaindo um tom de pregação misturado a “esculachos” típicos das facções criminosas.
O clima é de medo e incerteza, uma vez que as inexpressivas medidas do Estado não dão conta de coibir a série de ataques que parecem ser orquestrados para intimidar e impedir que terreiros sigam com seus rituais.
Com base nesses fatos, precisamos pensar na violência perpetrada pelo Estado ou poder público, ainda que simbólica, como um mecanismo que incita e justifica atos cometidos isoladamente ou por grupos que tomam para si a autoridade de julgar o outro de acordo com seus padrões morais e/ou religiosos. Além disso, neste sistema capitalista, interesses financeiros denotam certa conivência do Estado com atos que contrariam o bem comum e desrespeitam populações.
O governo federal, em decreto recente, liberou uma área da Amazônia para desmatamento e exploração de garimpo, passando por cima de tratados internacionais e desconsiderando reservas ambientais e indígenas.
O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, não participa de nenhum evento que tenha a menor relação com a cultura afro-brasileira, reduziu consideravelmente a verba para as escolas de samba e pretende submeter o funcionamento de templos religiosos a sua sanção pessoal.
Em São Paulo, moradores de rua são vítimas de inúmeras ações arbitrárias e desumanas por parte da prefeitura. Em Minas Gerais, o Poder Judiciário chegou a limitar as práticas do candomblé.
Pode não haver relação direta entre as ações do Estado e os atos criminosos que têm pululado contra as minorias, mas a omissão gera um clima de impunidade e de desrespeito à lei.
Quando vemos índios assassinados por garimpeiros, traficantes associados a falsos pastores ou fanáticos fundamentalistas a destruir terreiros e perseguir seus adeptos, ou mesmo o aumento da violência contra moradores de rua, torna-se impossível não pensar que as instituições do Estado não estão cumprindo seu papel.
A seguir, um vídeo de depredação de um terreiro
Parece ocorrer no Brasil uma inversão da ordem democrática. Alguns direitos conquistados por indígenas, quilombolas, povos de matriz africana, têm sido ameaçados ou simplesmente cassados. As bancadas ruralista e evangélica pautam o debate e legislam claramente de acordo com seus interesses.
De certa forma, o Estado avaliza a sociedade para manifestar toda sorte de ódio e discriminação. Instaura-se um vale-tudo, uma terra sem lei, onde aqueles que detêm o poder seguem firmes no intento de aniquilar o outro, o diferente, o inimigo. E é como inimigo que muitos fundamentalistas evangélicos se referem aos afro-religiosos e isso se reflete em ações do Poder Público.
Um bom exemplo são os casos cada vez mais frequentes de babalorixás e ialorixás julgados por terem suas liturgias mal compreendidas, com evidências de que o racismo religioso influencia nas decisões judiciais.
Charlatanismo, estelionato, lesão corporal, cárcere privado, maus tratos de animais, perturbação da ordem, infração à lei do silêncio e vigilância sanitária, formação de quadrilha são alguns dos crimes injustamente imputados a pais e mães de santo.
Usar roupas brancas, fios de conta ou manifestar a própria fé tornou-se um risco. O Estado segue omisso, conivente e muitas vezes parece reacender o projeto de branqueamento da nação. Os ecos ressoam e aplaudem a limpeza étnica que se quer empreender.
Para exterminar um povo é preciso destruir sua cultura. Talvez isso nos faça entender o porquê de tanta perseguição às crenças de origem africana. Na base do racismo, o fato de não reconhecer o outro como humano, como igual.
Digam-me: são humanos os que demonstram tanta indignação frente a um despacho numa encruzilhada, mas não se compadecem diante da morte de cinco jovens negros alvejados com mais de cem tiros da polícia sem terem cometido crime algum? E ainda que tivessem cometido, não há delito que justifique a desumanidade.
No início do século XX, era a polícia que invadia e destruía terreiros de candomblé, agora são os bandidos. O Estado, por ação ou omissão, dá o roteiro das cenas de horror protagonizadas desde sempre contra o povo negro e sua cultura. Que as autoridades tomem as devidas providências.
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Pai Rodney de Oxóssi é antropólogo, escritor e babalorixá. Há mais de 20 anos pesquisa relações raciais, racismo e religiões de matriz africana. É sacerdote do Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá.
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Pai Rodney de Oxóssi é antropólogo, escritor e babalorixá. Há mais de 20 anos pesquisa relações raciais, racismo e religiões de matriz africana. É sacerdote do Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá.
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