ESPECIAL
Transamazônica, 45 anos | A capital do cacau à sombra dos urubus
Terceiro capítulo da série sobre a rodovia Transamazônica, baseada em um relato de viagem pelo Pará
Para sair do município de Altamira em direção ao maior polo produtor de cacau, na região da Amazônia, é preciso seguir na direção sudoeste pela avenida Jader Barbalho, que se encontra com a BR-230, a 3,5 km da orla do rio Xingu, no Pará.
O nome da avenida, uma das maiores da cidade, homenageia o ex-governador, senador pelo PMDB, e pai do atual ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, mesmo a Lei nº 12.781, de 2013, proibir batizar ruas com o nome de pessoas vivas.
Jader Barbalho não só está vivo, como bem-disposto. Ele acaba de completar 73 anos. Além disso, cumpre mandato em Brasília pelo PMDB e é considerado um “ficha suja”, conforme os critérios da Lei da Ficha Limpa.
Quanto à não exploração de trabalho escravo, outra condicionante expressa na Lei de 2013, o senador passa raspando. Em 2008, auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT) encontraram empregados sem carteira em alojamentos precários em uma fazenda da agropecuária Rio Branco, que pertencia a ele. Seis anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) o absolveu por falta de provas.
Político mais influente do Pará e acionista da TV Tapajós, afiliada da Rede Globo no estado, Jader Barbalho responde por crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Também é investigado pelo suposto recebimento de propina para a construção da Usina de Belo Monte, ao lado dos colegas de partido Romero Jucá, Renan Calheiros e Valdir Raupp.
Nos primeiros 45 km, a rodovia é asfaltada: as condições de tráfego são as melhores desde a cidade de Marabá. Os problemas de pavimentação e sinalização da pista recomeçam a partir do trevo que dá acesso ao município de Brasil Novo, distante cerca de 500 km da capital paraense, Belém.
Crônico
A chamada “Vila do km 50” é um cartão de visitas para a buraqueira que virá a seguir, com inúmeros desvios em estrada de terra e as famosas pontes de madeira e ferro improvisadas. Elas suportam até 24 toneladas, o que equivale a 20 carros populares. Porém, não há espaço para dois automóveis lado a lado, e os motoristas passam um de cada vez.
Por entre os alicerces enferrujados, correm rios como o Jarucu, o Arrependido e o Penetecal II, onde os moradores pescam, lavam a louça e as roupas.
Sidney de Sousa Filho, conhecido como Bruce, conhece cada pedaço daquela estrada traiçoeira. Por isso mesmo, ressalta que não viaja de moto sem capacete, hábito que o difere de quase todos os motociclistas da região.
Segundo vereador mais votado no município de Medicilândia, que se encontra logo à frente, Bruce atribui os buracos e desvios na pista ao descaso do governo federal. “Vai fazer oito meses que está assim. E não é nem culpa da empresa, é que o terreno é muito ruim. A situação é delicada, e nós estamos abandonados porque não chega o recurso”, afirma o político.
A empresa Sanches Tripoloni é responsável pelo asfalto e pelas chamadas "obras de arte", como drenagem, acostamento, sarjeta e hidrossemeadura, para recuperar áreas degradadas na lateral da rodovia.
O licenciamento para asfaltar e restaurar 845 km da Transamazônica paraense, da divisa com Tocantins até Rurópolis, foi emitido em agosto de 2013, no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2).
A pavimentação não avança, entre outros motivos, porque o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) divergem sobre os possíveis impactos da realização da obra – os Parakanã e os Arara vivem à margem da rodovia e detêm o controle formal da área.
Os dois trechos em litígio localizam-se entre os km 232 e 310 (próximo a Novo Repartimento e à terra indígena Parakanã) e entre os km 728 e 850 (próximo a Rurópolis e ao local onde vivem os Arara).
Os problemas no asfalto entre Altamira e Medicilândia também são de natureza econômica. A Sanches Tripoloni levou três anos para pavimentar 86 km de rodovia, e, em 2016, foi contratada novamente para recuperação de oito pontos críticos. Depois de seis meses de chuva, quando estava pronta para concluir a reforma, em junho deste ano, a empresa teve suas máquinas retiradas da BR-230 pelo governo federal, segundo o deputado federal Zé Geraldo (PT), por falta de verba para pagar o serviço.
Só no último inverno, o governo interditou 50 pontes na região de Medicilândia devido a enchentes. O recurso liberado para manutenção era suficiente para reformar apenas 150 metros de estrada e o escoamento da produção foi interrompido por mais tempo que o previsto. A história se repete a cada estação chuvosa, com o agravante da crise econômica.
Mais homenagens
A cidade onde vive o vereador Bruce foi batizada em referência ao general Emílio Garrastazu Médici, ditador que idealizou a rodovia Transamazônica nos anos 1970, época em que Jader Barbalho era deputado estadual. Medicilândia está a 80 km de Altamira e se autointitula “capital nacional do cacau”.
Desde o trevo de Brasil Novo, a planta que dá origem ao chocolate começa a aparecer dos dois lados da rodovia, em meio às palmeiras de açaí e às castanheiras. O polo cacaueiro da Transamazônica concentra 75% da produção estadual. Com 29 mil habitantes, Medicilândia é o maior município produtor: colheu 40 mil toneladas no ano passado.
Um cacaueiro adulto tem de quatro a cinco metros de altura. O nome botânico, Theobroma cacao, significa “comida dos deuses”. As folhas são alongadas e o fruto é amarelo, de casca dura, um pouco maior que um mamão papaya. Dentro de um cacau há cerca de 40 sementes ou amêndoas, que são torradas para fabricação de chocolate.
Na rota do cacau
A produção cacaueira, no Pará, gera 255 mil empregos – 51 mil diretos e 204 mil indiretos. À medida que as condições da estrada pioram e os pés de cacau despontam na paisagem, os borracheiros e cerealistas se tornam figurinhas fáceis à beira da rodovia. Estes últimos são responsáveis pelo transporte, compra e venda das amêndoas de cacau, e também são conhecidos como “atravessadores”.
As lavouras estão concentradas nos chamados travessões, principalmente no lado sul – margem esquerda da pista. No lado direito, ou norte, predomina a pecuária extensiva e a produção de eucaliptos.
Travessões são vilas ou comunidades rurais estruturadas a cada cinco quilômetros, a sul e a norte da Transamazônica. Em Medicilândia, por exemplo, é comum ouvir dizer “moro no [km] 85 sul”, ou “trabalho no [km] 90 norte”.
Para acelerar a fermentação das amêndoas, as grandes propriedades dispõem de estufas ou secadores – chamados de “barcaças” –, enquanto nas plantações mais modestas o produto descansa sobre uma lona. As amêndoas ficam expostas ao sol, durante o dia, e são recobertas por um telhado móvel à noite. Após a fermentação, elas são recolhidas e ensacadas pelos meeiros.
Entre os grandes cacauicultores de Medicilândia, o gaúcho Élido Trevisan é um dos poucos que tem uma lavoura à beira do asfalto – no km 76 sul –, o que facilita o escoamento das amêndoas.
Meio a meio?
A forma mais comum de contratação ou vínculo trabalhista na produção de cacau é a chamada “meação”. Os donos de fazendas, como Trevisan, contratam grupos de trabalhadores – ou meeiros – e firmam contratos de parceria. Em geral, o dono da propriedade fica com metade da produção e o empregado, com a outra metade.
O recorte étnico é evidente. Quase sempre, os meeiros têm a pele mais escura e são migrantes ou filhos de migrantes nordestinos. Os proprietários de terra são brancos, oriundos do Sul e Sudeste brasileiros e têm sobrenomes italianos ou alemães.
O meeiro pode morar ou não na propriedade do patrão. Nas maiores fazendas, vivem até 40 famílias. Os sindicatos de trabalhadores rurais da região não reivindicam carteira assinada para todos os empregados – admitem que esse é um privilégio para poucos, no Brasil –, e aceitam o contrato de parceria como um vínculo legítimo, que “pode ser bom para os dois lados”.
Na primeira reportagem desta série, a cacauicultura foi descrita como alternativa de produtividade e preservação da floresta amazônica. No entanto, existe uma série de problemas sociais que decorrem desta atividade, conforme demonstram os baixos índices de desenvolvimento humano em Medicilândia.
Élido Trevisan possui 120 hectares cultivados, com a ajuda de dez “parceiros”, e tem pavor de ouvir falar no MPT. Não é por acaso. O produtor gaúcho foi autuado em março de 2012. O processo está em andamento na Vara Única de Altamira, e não houve sentença em primeira instância.
Fuga de impostos
Existem dois tipos de atravessadores na região. Além das dezenas de cerealistas que recebem ou coletam as amêndoas dos produtores na beira da estrada, entre os municípios de Medicilândia e Rurópolis, existe um mercado muito mais restrito em Altamira – para onde o produto costuma ser encaminhado sem emissão de nota fiscal. Da capital da Transamazônica, a matéria-prima do chocolate viaja para São Paulo ou para a Bahia, para começar a etapa de processamento.
Essa dinâmica implica em uma “fuga de impostos”, que a população das regiões produtoras sente na pele: as carências em educação, saúde e infraestrutura saltam aos olhos a cada esquina. Mesmo nas raras ocasiões em que o atravessador emite nota fiscal, a arrecadação dos municípios é baixa, em comparação com o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) gerado em Altamira pelas transações interestaduais.
Para se ter uma ideia, em todo ano passado, a produção de cacau significou uma arrecadação de apenas R$ 39 mil para Medicilândia. E a evasão fiscal custa caro. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHm) é equivalente a 0,582, considerado “baixo”. Segundo dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda per capita é inferior a R$ 350,00 por mês – a menor do polo Transamazônico. A cada dez casas, seis não têm banheiro, esgoto nem água encanada.
Basta um passeio pela capital do cacau para confirmar que baixa arrecadação significa precariedade dos serviços públicos municipais. Os problemas de saneamento e coleta de lixo nos bairros, por exemplo, fizeram aumentar a população de urubus-de-cabeça-preta, uma espécie de praga na região central da cidade. Eles parecem estar em todo lado: em frente ao açougue, em volta de latões de lixo, no pátio das escolas. As aves, de cabeça depenada e rugosa, fazem parte do cenário, e ninguém parece se incomodar com o risco de doenças ou bicadas.
O ambiente ora hostil, ora pitoresco da zona urbana – contaminado pelas queimadas que irrompem no horizonte – contrasta com a natureza intocada das áreas menos habitadas dos travessões. A cachoeira do km 110 é um dos pontos turísticos mais conhecidos da região, embora a rotina dos agricultores não lhes permita desfrutar dela quanto gostariam.
Corda no pescoço
Quem tem uma pequena roça de cacau ou trabalha para um patrão está quase sempre “com a corda no pescoço”. Na época da viagem que deu origem a esta reportagem, o quilo da amêndoa era vendido a R$ 5,80.
Para conseguir pagar as contas e colocar comida na mesa, os pais se acostumaram a levar os filhos para a roça. As crianças contribuem nas atividades manuais de menor risco como tirar as amêndoas de dentro da cabaça – mas adoram “brincar” de quebrar a casca do cacau com facão. É assim na casa de seu Vilimar, no travessão do km 90 sul, e em centenas de lares de Medicilândia onde a agricultura é a principal fonte de renda.
Sem a colaboração dos filhos e sobrinhos, de 11 a 14 anos, Vilimar não conseguiria manter a filha mais velha na faculdade, nem comprar remédios para a mãe, de 90 anos. Ele e o irmão Lucio moram na comunidade Cristo Rei, têm quatro mil pés de cacau e também criam porcos, para subsistência. Nos fundos da casa de madeira, a família tem uma despolpadeira de açaí. A fruta, abundante naquela região, é rica em antioxidantes e serve como repositor energético natural após o trabalho na roça.
Dona Veronica Wagner, mãe de Lucio e Vilimar, completou 90 anos movida a cigarro e chimarrão. A família dela foi trazida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Palmitinho, no Rio Grande do Sul, até Medicilândia no final de 1971, durante as obras da Transamazônica. Naquela época, para sair do centro da cidade em direção à agrovila onde vivem hoje, era preciso caminhar 9 km por dentro da mata fechada.
Enquanto assiste à TV Globo, toda a tarde de domingo, Veronica Wagner dá um jeito de prevenir qualquer mal-estar que a idade possa lhe trazer. Acomodada em uma cadeira de balanço, ao lado das caixinhas de remédio e do copo de açaí que acabou de beber, ela faz um auto-diagnóstico conveniente: “A minha doença é falta de ar. Aí, tenho que ficar o dia inteiro sentada na frente do ventilador”, explica, sem afastar o cigarro da boca.
Quase cinco décadas após migrarem ao Pará, eles dispõem de luz elétrica e água encanada e não ousam reclamar da estrada, que fica impraticável no inverno: a queixa se resume à “merreca” que é paga em troca da amêndoa do cacau.
Perguntado sobre os motivos da queda de preço, em relação ao ano passado, Vilimar, semianalfabeto, responde de maneira genérica: “Deve ser coisa do governo, que não valoriza a gente”.
Agricultores e atravessadores do cacau com maior grau de escolarização, diante do mesmo problema, respondem que seria “melhor para todos” se Medicilândia tivesse uma grande fábrica para beneficiamento e processamento das amêndoas. Assim, o município poderia exportar diretamente para grandes marcas, como Nestlé e Cargill, arrecadaria mais impostos e “sobraria mais na ponta da cadeia”.
A única fábrica de chocolate com sede em Medicilândia é a Cacauway, vinculada à Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans). A Cacauway tem um padrão de qualidade na seleção da matéria-prima superior ao de qualquer outra marca, nacional ou internacional, e por isso costuma pagar aos produtores um valor maior por quilo. No entanto, a cooperativa processa menos de 1% das amêndoas produzidas na cidade e, não há como garantir que o chocolate comercializado em suas lojas seja livre de trabalho infantil.
Abandono
A legislação proíbe qualquer atividade laboral antes dos 16 anos – a partir dos 14, existe uma brecha para os chamados “menores aprendizes”. O argumento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para condenar essa prática é a necessidade de zelar pela formação intelectual, psicológica, social e moral dos seres humanos.
No entanto, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) indica que 2,6 milhões de brasileiros de 5 a 17 anos trabalham. Na região Transamazônica, então, nada mais comum do que criança “ajudar na roça de cacau”. As próprias conselheiras tutelares de Medicilândia, embora critiquem a situação degradante a que são submetidos os cacauicultores, adotam uma postura pragmática. Ou seja, se a criança frequentar a escola, não há problema em ajudar os pais no contraturno.
Os dados mais recentes sobre escolarização em Medicilândia indicam que, a cada três jovens de 15 a 17 anos, só um terminou o ensino fundamental. Entre os adultos, sete a cada dez não terminaram a 8ª série e trabalham sem carteira assinada.
Um casal de urubus revoa em meio à poeira que sobe da estrada de chão, em frente ao Conselho Tutelar. Parece mentira que aquela cidade foi construída (há menos de 30 anos) em pleno ecossistema amazônico, famoso pela diversidade de fauna e flora. O canto insistente da arara vermelha, no quintal casa ao lado, soa como um alerta – ou um pedido de socorro.
Na agrovila do km 95 norte, conhecida como Aeroporto, funciona uma pista para pousos particulares, emergenciais e clandestinos. Os adolescentes que vivem no entorno, a cerca de 7 km da Transamazônica, se agitam de curiosidade sempre que um avião se aproxima – em média, uma ou duas vezes por semana.
A escola Marechal Rondon está a 200 metros da pista, e as crianças não têm medo de se aproximar dela no recreio. Quando voltam à sala de aula, sempre trazem novidades sobre a aeronave que pousou. “Para não dar problema”, os adultos fingem que não viram nada.
No dia 1º de agosto, uma agência do Banco do Brasil foi assaltada por 20 homens no centro de Medicilândia. A polícia informou que os explosivos usados por eles eram roubados de empresas mineradoras. Adolescentes que moram no entorno da pista do km 90 contam que viram um avião pousar com sacos de dinheiro, horas depois do crime. Alguns dias antes, reza a lenda que uma aeronave desembarcou um corpo enrolado em um lençol: ninguém garante, mas ninguém duvida. No fim das contas, essas histórias curiosas, cheias de mistério, ajudam a quebrar a monotonia de uma comunidade esquecida pelo Estado. Uma professora da escola arrisca dizer que “eles [os alunos] até gostam, ficam agitados quando ouvem barulho de avião”.
Dona Isaílde está desempregada, tem quatro filhos matriculados na escola Marechal Rondon e vive a 2 km de distância. Para almoçar, as crianças dependem da ajuda dos vizinhos que moram mais perto. De manhã e à tarde, a merenda é garantida: pão e achocolatado “com o leite bem branquinho” – descreve a mãe, sem se dar conta da ironia de viver na capital nacional do cacau.
Toda a estrutura de funcionamento da escola é improvisada. Nos últimos cinco anos, foram três reformas, com três construtoras diferentes, mas a obra não avança. São duas sedes, lado a lado. Da estrutura antiga, só a cozinha e a sala de informática continuam sendo usadas; na nova sede, apenas uma sala está pronta, com as paredes no reboco.
A sala de informática demonstra que o problema não é apenas a falta de investimento. Dois dos cinco computadores funcionam. Os outros estão parados desde 2012, e a Prefeitura promete colocá-los para funcionar em janeiro do ano que vem. São três impressoras de alta qualidade, mas nenhuma foi instalada e os cartuchos estão secos: as professoras precisam tirar dinheiro do próprio bolso para imprimir o trabalho das crianças no centro de Medicilândia.
Na escola municipal Magalhães Barata, 2 km adentro, só a diretora é concursada. Os professores fazem contratos a cada seis meses com a Prefeitura, e não recebem as férias. O salário médio é inferior a R$ 1,1 mil. A merenda tem feijão, arroz, macarrão e frango, porque a escola aderiu ao programa Mais Educação, criado em 2007 pelo governo federal para oferecer oficinas e recreação no contraturno das aulas.
Enquanto a mãe trabalha na educação infantil, Jonas, de 15 anos, cuida da irmã de oito meses que dorme em uma rede. A exemplo do irmão Elias, de 17, ele planeja se formar, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e estudar Medicina em São Paulo.
Jonas está no 8º ano porque precisou faltar muitas aulas em 2015, para ajudar os pais na safra do cacau. São Paulo é um sonho distante, embora possível graças às políticas de ação afirmativa (cotas). Até hoje, o menino nunca saiu do Pará: o mundo que ele viu com os próprios olhos tem 300 km de extensão e vai de Placas, no Baixo Amazonas, até Santarém.
Na cabeça de Jonas, o futuro brilhante na Medicina coexiste com outro desejo, que talvez lhe pareça mais próximo: “Em Brasil Novo, tem um concurso para ver quem quebra cacau mais rápido. Eu sonho que um dia vou participar e vou ganhar”.
A viagem que deu origem a esta reportagem coincidiu com o encontro de aniversário de 25 anos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Transamazônica. Símbolo do enfrentamento aos ruralistas nos rincões do Brasil, as CEBs reúnem cristãos insatisfeitos com as desigualdades sociais, que decidem se organizar contra as injustiças. No entanto, mesmo naquele encontro, no centro de Medicilândia, é difícil encontrar um discurso divergente, que problematize o uso das crianças como mão de obra. A maior preocupação dos religiosos com os adolescentes à margem da BR-230 é combater a exploração sexual e o consumo de álcool e drogas.
A venda de chocolate movimenta cerca de R$ 300 bilhões por ano no mundo, e o lucro das empresas multinacionais contrasta com a vida miserável dos que estão na ponta da cadeia. Enquanto o mercado europeu se delicia com o “cacau da Amazônia”, a população de Medicilândia trabalha de sol a sol com estoicismo, tentando se contentar com as migalhas que sobram da colheita das amêndoas.
A morte da memória
Chico Mendes, assassinado em 1988 por defender a preservação da floresta e das seringueiras nativas. Dezenove trabalhadores rurais sem terra, vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás, na luta pela reforma agrária, em 1996. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, ambientalistas mortos em maio de 2011, por enfrentar os latifundiários e pecuaristas da região de Marabá.
Como se faltassem mártires ou lideranças brasileiras a se homenagear, em plena Amazônia, a maior escola de Medicilândia leva o nome de um estadunidense – e não é o da irmã Dorothy Stang, vítima de pistoleiros em Anapu, há 12 anos. A escola se chama Abraham Lincoln, uma referência ao ex-presidente dos EUA, que também deu nome a uma usina açucareira da região. O colégio fica no centro da cidade, ao lado da igreja que sediou o encontro das CEBs.
No canteiro em frente à porta de entrada, um pau-brasil de quase 15 metros é o ponto de encontro dos adolescentes que esperam o transporte de volta para casa. Prêmio de consolação aos que morreram em nome da floresta, a árvore inusitada, que sequer é nativa da Amazônia, faz recordar a quem pertencem as riquezas, o suor e o sangue desta terra, que padece à sombra dos urubus.
Na quarta e última reportagem da série, novos-velhos problemas entram em cena às margens da BR-230: a exploração do ouro por empresas estrangeiras e o corte ilegal de madeira.
*Pessoas com idade inferior a 18 anos são apresentadas neste relato com nome fictício.
Edição: Simone Freire
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